portugal dos pequeninos

15-12-2019
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Li, de fio a pavio, o livrinho de Zita Seabra sobre a sua militância no PCP entre 1966 e 1988. "Sempre cândida e às vezes comovedora", escreve Vasco Pulido Valente na contracapa. Não exageremos. Zita passou à clandestinidade com apenas dezassete anos, depois de uma promissora adolescência de burguesinha do Norte. Podia ter ido parar a um romance de Agustina e nem num de Manuel Tiago, afinal, coube. Filha única, mimada, familiares da "oposição", deixou-se tentar pelo romantismo revolucionário prometido pelo "partido". Quis experimentar e acreditou que a coisa era mesmo "cientifica" como ressumavam os manuais. Teve sorte. Nunca foi presa, torturada ou expelida do país. Mergulhou apenas no Portugal profundo da oposição tal como o PC e a sua máquina o concebiam: secreto, misterioso, desconfiado, umbiguista e alheio ao "outro". O "outro" era sempre o mesmo, os mesmos. Cresceu politicamente nessa dureza e, se ainda o não era, ficou uma mulher dura para o resto da vida. Quando eu tinha dezasseis anos e a conheci na UEC - estava então grávida -, Zita era famosa pela sua intransigência típica de filha dilecta "adoptiva" do proletariado. O melhor do livro são as peripécias da clandestinidade sem "malícia" da "camarada", o salto de casa em casa e os relatos de algumas conversas surrealistas da época. Nunca houve ingenuidade nem candura. Zita jamais poderia ter tido a mão livre para criar e sedimentar a UEC se não fosse um quadro bem cotado. Uma profissional. Levou vinte e poucos anos a perceber o logro ou a enjoar-se dele. Em 1987, na primeira maioria de Cavaco, ainda era da comissão política do PC de onde foi expulsa no ano seguinte. O relato podia ser mais interessante quanto a Cunhal. Por mais de uma vez, a autora repete-se em relação ao "Camarada" e em aspectos perfeitamente banais. Não acredito - dada a proximidade até praticamente ao fim - que Zita não tivesse mais para contar acerca do secretário-geral. Foi, diz ela, intelectualmente "libertada" por dois ex-esquerdistas (do "radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista", nos termos de Cunhal), agora grandes e insuportáveis "liberais" do regime, os drs. Espada e Carlos Gaspar. E teve o apoio paternalista de Mário Soares que merece os maiores encómios como uma espécie de "grande educador nacional para a democracia e a liberdade". A frieza e o profissionalismo da personagem Zita Seabra - a militante comunista, a dirigente estudantil implacável, a dissidente, a social-democrata, a editora - estão inteiros (sem nenhum tipo de rasgo literário ou pretensão de "historiadora" que, aliás, rejeita logo no início) nas quatrocentas e trinta e tal páginas de Foi Assim. Se alguém aprendeu com Álvaro Cunhal - e nunca por nunca com Soares - foi Zita Seabra. Daí, talvez, a imperfeição do "retrato" do homem da amarga derrota dos últimos tempos, remetido melancolicamente a um andar nos Olivais. Propositada? Não saberemos nunca verdadeiramente que "história" Zita Seabra teria para contar.


Li, de fio a pavio, o livrinho de Zita Seabra sobre a sua militância no PCP entre 1966 e 1988. "Sempre cândida e às vezes comovedora", escreve Vasco Pulido Valente na contracapa. Não exageremos. Zita passou à clandestinidade com apenas dezassete anos, depois de uma promissora adolescência de burguesinha do Norte. Podia ter ido parar a um romance de Agustina e nem num de Manuel Tiago, afinal, coube. Filha única, mimada, familiares da "oposição", deixou-se tentar pelo romantismo revolucionário prometido pelo "partido". Quis experimentar e acreditou que a coisa era mesmo "cientifica" como ressumavam os manuais. Teve sorte. Nunca foi presa, torturada ou expelida do país. Mergulhou apenas no Portugal profundo da oposição tal como o PC e a sua máquina o concebiam: secreto, misterioso, desconfiado, umbiguista e alheio ao "outro". O "outro" era sempre o mesmo, os mesmos. Cresceu politicamente nessa dureza e, se ainda o não era, ficou uma mulher dura para o resto da vida. Quando eu tinha dezasseis anos e a conheci na UEC - estava então grávida -, Zita era famosa pela sua intransigência típica de filha dilecta "adoptiva" do proletariado. O melhor do livro são as peripécias da clandestinidade sem "malícia" da "camarada", o salto de casa em casa e os relatos de algumas conversas surrealistas da época. Nunca houve ingenuidade nem candura. Zita jamais poderia ter tido a mão livre para criar e sedimentar a UEC se não fosse um quadro bem cotado. Uma profissional. Levou vinte e poucos anos a perceber o logro ou a enjoar-se dele. Em 1987, na primeira maioria de Cavaco, ainda era da comissão política do PC de onde foi expulsa no ano seguinte. O relato podia ser mais interessante quanto a Cunhal. Por mais de uma vez, a autora repete-se em relação ao "Camarada" e em aspectos perfeitamente banais. Não acredito - dada a proximidade até praticamente ao fim - que Zita não tivesse mais para contar acerca do secretário-geral. Foi, diz ela, intelectualmente "libertada" por dois ex-esquerdistas (do "radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista", nos termos de Cunhal), agora grandes e insuportáveis "liberais" do regime, os drs. Espada e Carlos Gaspar. E teve o apoio paternalista de Mário Soares que merece os maiores encómios como uma espécie de "grande educador nacional para a democracia e a liberdade". A frieza e o profissionalismo da personagem Zita Seabra - a militante comunista, a dirigente estudantil implacável, a dissidente, a social-democrata, a editora - estão inteiros (sem nenhum tipo de rasgo literário ou pretensão de "historiadora" que, aliás, rejeita logo no início) nas quatrocentas e trinta e tal páginas de Foi Assim. Se alguém aprendeu com Álvaro Cunhal - e nunca por nunca com Soares - foi Zita Seabra. Daí, talvez, a imperfeição do "retrato" do homem da amarga derrota dos últimos tempos, remetido melancolicamente a um andar nos Olivais. Propositada? Não saberemos nunca verdadeiramente que "história" Zita Seabra teria para contar.

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