Banco Corrido.: Sair do Euro e nacionalizar a economia. Se a saída é essa, amiga, não vamos longe. Resposta a Mariana Mortágua.

04-03-2020
marcar artigo

Mariana Mortágua deu-se aotrabalho de responder à minha reflexão sobre o papel da evolução dos custos detrabalho nas opções políticas da esquerda e agradeço-lhe por isso. É certo que o título do seu texto, bem como o primeiro e o último parágrafos estão longe de ser cumprimentos, contributos para a discussão ou sequer elegantes mas não creio que isso deva evitar o confronto de visões sobre o caminho a seguir. Quem se interessar por esse tópico pode passar já para o post-scriptum e evita deixar-se contaminar por uma discussão de ideias. Eu julgo que o debate deve continuar.

A tese de Mariana Mortágua tem elementos de diagnóstico da situação com os quais concordo. Portugal entrou sobrevalorizado no Euro; há defeitos de configuração institucional no sistema do Euro; o preço da energia e a ineficiência do sistema de justiça prejudicam o país; os custos do financiamento pesam sobre as empresas.

A entrada sobrevalorizada doescudo no Euro foi uma das últimas prendas que a política económica do hoje Presidente Cavaco Silva deixou ao país. Os defeitos do sistema do Euro são óbvios. Os outros factores que enuncia derivam de obstáculos corporativos fortes a reformas institucionais – como na justiça – ou de escassa concorrência - como na energia – ou ainda são efeitos derivados da própria crise – como o custo do crédito. E podíamos acrescentar a desigualdade em Portugal e as distorções fiscais e ainda outros factores.

Mas diagnósticos identificam problemas, não os resolvem e é na terapêutica que nos dividimos. Mariana Mortágua acusa a Alemanha, que “espremeu” os trabalhadores, que gerou excedentes financeiros com que inundou de crédito os países periféricos (argumento contraditório com o preço do crédito), que exporta e isso tem como preço que os outros países não o podem fazer. Volta a ter razão. Mas, queixumes à parte, lamentos não pagam dívidas.

A verdade, tal como a vejo, é que enquanto a deriva neoliberal levava o mundo para o predomínio dos serviços, a Alemanha teve uma estratégia de manutenção de uma base industrial forte. Enquanto toda a gente caminhava alegremente para a liberalização do comércio mundial e para o alargamento da União Europeia sem antecipar as dificuldades competitivas que daí adviriam para a Europa, os alemães estavam precavidos, talvez pelo choque de absorverem a RDA, talvez por maior capacidade de antecipação, talvez por instinto conservador.

Mas os trabalhadores alemães não passaram por tudo isto distraídos, vencidos ou reconduzidos à miséria. Pelo contrário, conseguiram reequilibrar um modelo social que ainda há meia década parecia exaurido e sem qualquer futuro; conseguiram vencer, pelo menos por agora, o desemprego; conseguiram manter a sua indústria competitiva no mercado mundial sem empobrecer as classes médias, nem aprofundar as desigualdades, nem verdadeiramente se tornarem num país liberal. Boa parte das reformas que o permitiram, dolorosas, foram feitas pela coligação entre o SPD e os Verdes e resultam deenfrentamentos duros com os sindicatos. Provavelmente conduziram o SPD à oposição, deixando a direita colher os frutos de reformas que não empreenderia (como os sucessivos pacotes Hartz). Também é verdade que na condução das negociações os sindicatos alemães não forem muito internacionalistas, mas também não são os únicos a sofrer desse pecado.

Pensando nos alemães, pergunto-me como será possível Portugal atravessar um caminho de reformas que permita expandir a indústria e a produtividade, mudar a nossa base competitiva e sair da crise em que eles evitaram entrar? Creio que aqui Mariana Mortágua e eu voltamos a estar de acordo. Como, aliás, sublinhei no meu texto, é esse salto em frente na produtividade que nos podetirar da crise e a questão dos custos do trabalho é um elemento de curto prazo, de sustentação da reforma e, como julgo necessário, de um novo pacto social. Mas como daremos o salto necessário?

É aqui que divergimos profundamente. Mariana não avança explicitamente com o caminho que propõe, fica-se pelo lado negativo da dialéctica, como é conveniente a quem não sai da crítica. Mas cita um texto, aliás bastante interessante e fundamentado, que expõe as alternativas. Dizem os seus autores que há três saídas para os países periféricos: austeridade aompanhada de liberalização; reforma radical da zona Euro; saída radical da zona Euro.

Mariana implicitamente advoga a terceira saída (chamar-lhe terceira via provavelmente ofendê-la-ia). Mas se queremos discutir essa saída convém que vejamos como os autores com seriedade a descrevem:   

This leaves the option of „progressive exit‟ from the eurozone, that is, exit conditional on radical restructuring of economy and society. As has already been noted, exit would involve a substantial economic shock. There would be devaluation, which would release some of the pressure of adjustment by improving the balance of trade, but would also make it impossible to service external debt. Cessation of payments and restructuring of debt would be necessary. Access to international capital markets would become extremely difficult. Banks would come under heavy pressure, facing bankruptcy. The point is, however, that these problems do not have to be confronted in the standard conservative way.

Economic survival could be ensured, and a sustainable path of growth could be achieved, provided there was drastic economic and social transformation. For that it would be necessary to mobilise broader social forces capable of taking economic measures that would shift the balance of power in favour of labour.  (…) some strategic steps are clear, including the following.

To protect the banking system it would be necessary to engage in nationalisation, creating a system of public banks. (…)

Capital controls would also be necessary, in the first instance to prevent the outflow of liquid funds and protect the banking system. More broadly, regulation of external capital flows would be required to marshal national resources. Managing capital flows is also necessary to avoid importing instability from abroad, as even the IMF appears to recognise of late. The policy of freeing the capital account in recent decades has offered no growth advantages, while regularly generating crises.

The combination of public banking and controls over the capital account would immediately pose the question of public ownership over other areas of the economy. The underlying weaknesses of productivity and competitiveness already threaten the viability of entire areas of economic activity in peripheral countries. Public ownership would be necessary to prevent collapse. The specific sectors taken under public ownership, and even the form of public ownership itself, would depend on the characteristics of each country. But public utilities, transport, energy, and telecommunications would be prime candidates, at the very least in order to support the rest of economic activity.

With significant areas of economic activity under public ownership and control, the rest of the economy could be shifted onto a different growth path. To that purpose it would be necessary to introduce industrial policy. Public institutions and mechanisms of promoting development, which have been steadily abolished in the years since the Maastricht Treaty, would be rebuild on a new basis. In conjunction with a public banking system, they would make it possible to implement a national programme of public and private investment. There is growth potential across peripheral countries for clean energy production, more energy-efficient homes and transport, as well as improved water quality and rubbish disposal. There is also scope for public investment in housing, urban planning, roads, railways, bridges, and airports. There is, finally, scope for the much more difficult task of improving technology as well as research and development.

(…) It is apparent that structural change of this order cannot be undertaken using the present inefficient and corrupt mechanisms of state. Broad political and social alliances are necessary to rebuild the structures of state on the basis of grass-roots control, transparency and accountability. On these grounds, the tax base would be broadened by taxing income, wealth and capital, while reducing indirect taxes. Steps would be taken to improve social provision of health and to reorganise the system of public pensions. Transfer payments would also be used directly to tackle inequality in peripheral countries, which is already the worst in the eurozone.

(…) Political difficulties aside, however, the strategy would also have to confront the deeper problem of attaining national development in a globalised economy. Progressive exit cannot be national autarky. It would be necessary for peripheral countries to maintain access to international trade, particularly within the EU. It would also be necessary to seek technology transfer and capital from abroad. There are no guarantees that such flows would be forthcoming, particularly as the established order in Europe would be hostile to radical change. But progressive exit also offers the prospect of different development for workers in the core countries, who have come under heavy pressure during the last two decades. Labour in core countries would be a natural ally of peripheral countries attempting a radical transformation of economy. And if the eurozone came apart in the periphery, it could also unravel at the core, allowing for genuinely cooperative relations among European countries.

Ou seja, saída do euro, entrada em crise, nacionalização massiva da economia, bloqueio no acesso ao crédito que dependeria da boa vontade de uma Europa hostil ao movimento e, no fim, aliança com os “espremidos” trabalhadores alemães. Soa familiar. Definitivamente, para os lados do Bloco caminha-se de novo de volta a 1975.

A minha proposta enquadra-se no segundo caminho que os inspiradores de Mariana Mortágua propõem. E ela não disse nada de substancial que me leve a reformulá-la, porque o quadro dela é outro. Eu nem acredito na súbita conversão da periferia europeia à nacionalização da economia nem na espontânea adesão do centro europeu à indignação do proletariado grego e português pelo que, explicitados os caminhos, a nossa discussão fica sem objecto

PS. Cara Mariana, agora vamos aos aspectos laterais do seu texto. Acusarem-me de falta de seriedade é uma coisa que me chateia. Tal como Pinheiro de Azevedo não gostava de ser cercado e contive-me muito para não enveredar pela sua linha de resposta. Nunca fiz parte dos que dizem que a crise se deve a que o povo andou a viver acima das suas possibilidades  e em matéria de honestidade e decência no modo como se formulam as políticas, eu tive a coragem de propor um caminho, a Mariana remete para um que não teve a frontalidade de trazer para a boca de cena. Remeteu o quadro geral da sua alternativo para uma citação, como se estivesse apenas a citá-la para contestar um indicador. Em matéria de seriedade a Mariana esteve, nessa escolha, à altura de Frei Tomás.

Mariana Mortágua deu-se aotrabalho de responder à minha reflexão sobre o papel da evolução dos custos detrabalho nas opções políticas da esquerda e agradeço-lhe por isso. É certo que o título do seu texto, bem como o primeiro e o último parágrafos estão longe de ser cumprimentos, contributos para a discussão ou sequer elegantes mas não creio que isso deva evitar o confronto de visões sobre o caminho a seguir. Quem se interessar por esse tópico pode passar já para o post-scriptum e evita deixar-se contaminar por uma discussão de ideias. Eu julgo que o debate deve continuar.

A tese de Mariana Mortágua tem elementos de diagnóstico da situação com os quais concordo. Portugal entrou sobrevalorizado no Euro; há defeitos de configuração institucional no sistema do Euro; o preço da energia e a ineficiência do sistema de justiça prejudicam o país; os custos do financiamento pesam sobre as empresas.

A entrada sobrevalorizada doescudo no Euro foi uma das últimas prendas que a política económica do hoje Presidente Cavaco Silva deixou ao país. Os defeitos do sistema do Euro são óbvios. Os outros factores que enuncia derivam de obstáculos corporativos fortes a reformas institucionais – como na justiça – ou de escassa concorrência - como na energia – ou ainda são efeitos derivados da própria crise – como o custo do crédito. E podíamos acrescentar a desigualdade em Portugal e as distorções fiscais e ainda outros factores.

Mas diagnósticos identificam problemas, não os resolvem e é na terapêutica que nos dividimos. Mariana Mortágua acusa a Alemanha, que “espremeu” os trabalhadores, que gerou excedentes financeiros com que inundou de crédito os países periféricos (argumento contraditório com o preço do crédito), que exporta e isso tem como preço que os outros países não o podem fazer. Volta a ter razão. Mas, queixumes à parte, lamentos não pagam dívidas.

A verdade, tal como a vejo, é que enquanto a deriva neoliberal levava o mundo para o predomínio dos serviços, a Alemanha teve uma estratégia de manutenção de uma base industrial forte. Enquanto toda a gente caminhava alegremente para a liberalização do comércio mundial e para o alargamento da União Europeia sem antecipar as dificuldades competitivas que daí adviriam para a Europa, os alemães estavam precavidos, talvez pelo choque de absorverem a RDA, talvez por maior capacidade de antecipação, talvez por instinto conservador.

Mas os trabalhadores alemães não passaram por tudo isto distraídos, vencidos ou reconduzidos à miséria. Pelo contrário, conseguiram reequilibrar um modelo social que ainda há meia década parecia exaurido e sem qualquer futuro; conseguiram vencer, pelo menos por agora, o desemprego; conseguiram manter a sua indústria competitiva no mercado mundial sem empobrecer as classes médias, nem aprofundar as desigualdades, nem verdadeiramente se tornarem num país liberal. Boa parte das reformas que o permitiram, dolorosas, foram feitas pela coligação entre o SPD e os Verdes e resultam deenfrentamentos duros com os sindicatos. Provavelmente conduziram o SPD à oposição, deixando a direita colher os frutos de reformas que não empreenderia (como os sucessivos pacotes Hartz). Também é verdade que na condução das negociações os sindicatos alemães não forem muito internacionalistas, mas também não são os únicos a sofrer desse pecado.

Pensando nos alemães, pergunto-me como será possível Portugal atravessar um caminho de reformas que permita expandir a indústria e a produtividade, mudar a nossa base competitiva e sair da crise em que eles evitaram entrar? Creio que aqui Mariana Mortágua e eu voltamos a estar de acordo. Como, aliás, sublinhei no meu texto, é esse salto em frente na produtividade que nos podetirar da crise e a questão dos custos do trabalho é um elemento de curto prazo, de sustentação da reforma e, como julgo necessário, de um novo pacto social. Mas como daremos o salto necessário?

É aqui que divergimos profundamente. Mariana não avança explicitamente com o caminho que propõe, fica-se pelo lado negativo da dialéctica, como é conveniente a quem não sai da crítica. Mas cita um texto, aliás bastante interessante e fundamentado, que expõe as alternativas. Dizem os seus autores que há três saídas para os países periféricos: austeridade aompanhada de liberalização; reforma radical da zona Euro; saída radical da zona Euro.

Mariana implicitamente advoga a terceira saída (chamar-lhe terceira via provavelmente ofendê-la-ia). Mas se queremos discutir essa saída convém que vejamos como os autores com seriedade a descrevem:   

This leaves the option of „progressive exit‟ from the eurozone, that is, exit conditional on radical restructuring of economy and society. As has already been noted, exit would involve a substantial economic shock. There would be devaluation, which would release some of the pressure of adjustment by improving the balance of trade, but would also make it impossible to service external debt. Cessation of payments and restructuring of debt would be necessary. Access to international capital markets would become extremely difficult. Banks would come under heavy pressure, facing bankruptcy. The point is, however, that these problems do not have to be confronted in the standard conservative way.

Economic survival could be ensured, and a sustainable path of growth could be achieved, provided there was drastic economic and social transformation. For that it would be necessary to mobilise broader social forces capable of taking economic measures that would shift the balance of power in favour of labour.  (…) some strategic steps are clear, including the following.

To protect the banking system it would be necessary to engage in nationalisation, creating a system of public banks. (…)

Capital controls would also be necessary, in the first instance to prevent the outflow of liquid funds and protect the banking system. More broadly, regulation of external capital flows would be required to marshal national resources. Managing capital flows is also necessary to avoid importing instability from abroad, as even the IMF appears to recognise of late. The policy of freeing the capital account in recent decades has offered no growth advantages, while regularly generating crises.

The combination of public banking and controls over the capital account would immediately pose the question of public ownership over other areas of the economy. The underlying weaknesses of productivity and competitiveness already threaten the viability of entire areas of economic activity in peripheral countries. Public ownership would be necessary to prevent collapse. The specific sectors taken under public ownership, and even the form of public ownership itself, would depend on the characteristics of each country. But public utilities, transport, energy, and telecommunications would be prime candidates, at the very least in order to support the rest of economic activity.

With significant areas of economic activity under public ownership and control, the rest of the economy could be shifted onto a different growth path. To that purpose it would be necessary to introduce industrial policy. Public institutions and mechanisms of promoting development, which have been steadily abolished in the years since the Maastricht Treaty, would be rebuild on a new basis. In conjunction with a public banking system, they would make it possible to implement a national programme of public and private investment. There is growth potential across peripheral countries for clean energy production, more energy-efficient homes and transport, as well as improved water quality and rubbish disposal. There is also scope for public investment in housing, urban planning, roads, railways, bridges, and airports. There is, finally, scope for the much more difficult task of improving technology as well as research and development.

(…) It is apparent that structural change of this order cannot be undertaken using the present inefficient and corrupt mechanisms of state. Broad political and social alliances are necessary to rebuild the structures of state on the basis of grass-roots control, transparency and accountability. On these grounds, the tax base would be broadened by taxing income, wealth and capital, while reducing indirect taxes. Steps would be taken to improve social provision of health and to reorganise the system of public pensions. Transfer payments would also be used directly to tackle inequality in peripheral countries, which is already the worst in the eurozone.

(…) Political difficulties aside, however, the strategy would also have to confront the deeper problem of attaining national development in a globalised economy. Progressive exit cannot be national autarky. It would be necessary for peripheral countries to maintain access to international trade, particularly within the EU. It would also be necessary to seek technology transfer and capital from abroad. There are no guarantees that such flows would be forthcoming, particularly as the established order in Europe would be hostile to radical change. But progressive exit also offers the prospect of different development for workers in the core countries, who have come under heavy pressure during the last two decades. Labour in core countries would be a natural ally of peripheral countries attempting a radical transformation of economy. And if the eurozone came apart in the periphery, it could also unravel at the core, allowing for genuinely cooperative relations among European countries.

Ou seja, saída do euro, entrada em crise, nacionalização massiva da economia, bloqueio no acesso ao crédito que dependeria da boa vontade de uma Europa hostil ao movimento e, no fim, aliança com os “espremidos” trabalhadores alemães. Soa familiar. Definitivamente, para os lados do Bloco caminha-se de novo de volta a 1975.

A minha proposta enquadra-se no segundo caminho que os inspiradores de Mariana Mortágua propõem. E ela não disse nada de substancial que me leve a reformulá-la, porque o quadro dela é outro. Eu nem acredito na súbita conversão da periferia europeia à nacionalização da economia nem na espontânea adesão do centro europeu à indignação do proletariado grego e português pelo que, explicitados os caminhos, a nossa discussão fica sem objecto

PS. Cara Mariana, agora vamos aos aspectos laterais do seu texto. Acusarem-me de falta de seriedade é uma coisa que me chateia. Tal como Pinheiro de Azevedo não gostava de ser cercado e contive-me muito para não enveredar pela sua linha de resposta. Nunca fiz parte dos que dizem que a crise se deve a que o povo andou a viver acima das suas possibilidades  e em matéria de honestidade e decência no modo como se formulam as políticas, eu tive a coragem de propor um caminho, a Mariana remete para um que não teve a frontalidade de trazer para a boca de cena. Remeteu o quadro geral da sua alternativo para uma citação, como se estivesse apenas a citá-la para contestar um indicador. Em matéria de seriedade a Mariana esteve, nessa escolha, à altura de Frei Tomás.

marcar artigo