Gaveta de Nuvens: Luís Soares

02-07-2020
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De Luís Soares tenho estado a ler Os Adultos (interrompera a
leitura o ano passado, mas não porque não estivesse a gostar). Embora isso não
esteja explicitado no romance — e o próprio autor considere com mais alusões autobiográficas
o seu primeiro romance, Aquariofilia, de 2003 —, parece-me óbvio que o
texto teve bastante inspiração nos tempos de estudante do escritor e que um dos
espaços é identificável com a Secundária de Benfica, aliás, já então Secundária
José Gomes Ferreira. Além da experiência sobre a escola, Os Adultos
mostra um conhecimento especializado das tecnologias de informação, um
interesse continuado de Luís Soares — salvo erro, mesmo em termos
profissionais. No livro, acompanhamos o que podemos considerar o advento das redes
sociais, mas com a intuição de quem antecipa o que só tem chegado à ficção mais
recentemente.

Excerto da capítulo 1 de Os Adultos («Hoje»), pp. 17-19:

Há três dias.

Salvador pára junto ao
portão, os sons do metal a ranger quando o abre de par em par, das cigarras nos
arbustos, das suas solas no alcatrão, nítidos como a noite alastrando no céu.
Estou de volta ao local, onde lhe toquei no ombro, o local do... não, crime não
é a palavra. Está sozinho. Ainda não começaram a chegar. Por um momento
sozinho. Helena não virá, Eva prometeu substituí-la, a noite toda, Eva, a noite
toda. Tanto melhor. Pára e olha a escola, os contornos das coi­sas vibram com a
temperatura, cortados com violência, assim nas esquinas dos edifícios como nos
segredos dos corações. Vai recebê-los ali, enquanto César e os outros dão os
últimos retoques na decoração, lá dentro. Vai receber os que conhece de todos
os dias e os de outras turmas. Vai receber aqueles três, limites do seu mundo
possível. Estende a mão como se o tocasse, como se fosse um ombro de novo, um
princípio.

Não fecha o casaco, nem
o devia ter vestido, sente-se preso, abafado. Vira-se, olha a rua. A escola
fica encravada no cotovelo de uma praça delimitada por edifícios de habitação
de seis, sete andares, uma rotunda alongada, quase um pátio de aldeia. Ele
próprio não mora a mais de duzentos metros. Olha os olhos dos prédios. A maior
parte das janelas estão abertas, convidando o eventual fresco da noite, mas nem
uma brisa faz estremecer as copas das árvores. Ele sim, estremece. É noite de
baile. Sente-se agitado, irrequieto. Será por Eva? Tiago, Jorge? Será por todos
eles? As aulas acabaram. Para ele, para eles. Há os que vão para a faculdade,
claro e naquela escola são a maioria, mas há uma sensação de desfecho em tudo
aquilo, que o ritual acentua. É um fim. É o meu fim. Sacode a cabeça, tem de se
manter atento hoje, a pressa do seu sangue o exige.

Um Baile de Finalistas.
Soa evidente, como se o normal fosse professores e alunos levantarem-se dos
seus lugares e dançarem escola fora, deixando-a vazia para os meses de
insuportável calor. O calor que os afoga já, apesar de ser ainda Junho.
Salvador não gosta de pensar que o baile é uma americanização dos hábitos da
escola, prefere imaginá-lo como uma intervenção surrealista colectiva. De um
momento para o outro todos se levantam e começam a dançar, sobem a colina até
ao alto, valsam até ao ginásio, atraídos pela música como ratos em Hamelim.
Depois de três dias de reuniões, a primeira quinta-feira de férias é a data
escolhida, para não cair em cima dos exames. As regras combinadas são simples: vestimenta
a rigor (fato e gravata para eles, vestido de noite para elas); nada de bebidas
alcoólicas; hora de fim, máximo dos máximos, às três da manhã. E eis os
primeiros, virando aquela esquina do café. Aquele café, onde tudo começou na
realidade. Aclara a garganta, tenta encontrar um «boa noite» audível na sua
voz.

A temperatura, contudo,
desacelera o entusiasmo. Passa um pouco das dez da noite e estão ainda uns
opressores 32°C. O declive natural, onde se aninha a escadaria da entrada, não
escapa ao ar quente almorávida, subindo de sul para norte, do interior para o
litoral, arrasando florestas, bosques e simples mato à mínima faísca. Os
jardins mal cuidados definham ressequidos, o metal da vedação queima. Ali mesmo
em frente ao portão, mais adiante, na sombra dos desfiladeiros separando os
blocos, a última luz pinta o céu de um azul excessivo antes da escuridão. Entre
os alunos vibra, contagiante, a vontade da festa no espaço cavernoso do
pavilhão gimnodesportivo. Imaginam-no um reduto de frescura e liberdade, uma
catedral na sombra clemente da noite, onde poderão libertar a electricidade
acumulada, mas também ali a atmosfera adquiriu a consistência pastosa e picante
que, por todo o lado, tolhe a acção.

Olha-os. Olho-os. Que
compenetrados no seu papel. As turmas de outros anos não foram convidadas,
continuam em aulas, e aqueles miúdos, de 17 e 18 anos na sua maior parte (Eva,
por exemplo, tem já 19), sentem-se especiais, por uma noite mais próximos da
idade adulta, mais longe da infância e das coisas infantis. Passam o portão de
braço dado, eles e elas, caminham solenes até ao ginásio, nas traseiras.
Cobre-os já um véu, a nostalgia da inocência perdida, mas não receberam ainda
mais do que leves arranhões da dureza da realidade.

Olho para o relógio. Já
passou quase uma hora. Há uma hora que estou aqui a vê-los entrar? Avançam em
câmara lenta, embalados no enlevo do momento, actores de uma última encenação.
Se calhar é apenas a roupa a mascará-los. Sei tanto de máscaras, pensa Salvador
enquanto se encaminha também ele para o ginásio.

Badana de Os Adultos:

Fica aqui um microfilme feito por uma colega vossa mas de há uma
década— no ano letivo de 2007-2008 — sobre outro livro de Luís Soares, Em
Silêncio, Amor, que saíra poucos meses antes (Cruz Quebrada, Oficina do
Livro, 2007). Lembro-me que a Carolina (do 7.º 6.ª ao 12.º 1.ª — 2004 a
2009-2010) tinha uma leitura em voz alta perfeitíssima, costumava vencer as
nossas LC de então:

O blogue de Luís Soares é dos melhores de todos os que conheço sobre literatura, cinema, etc., mas usa cada
vez mais o inglês. Nele encontrei indicação deste site sobre capas de livros (na quarta fila, livro de Clarice Lispector que lhes recomendara — aqui —,
aliás ao mesmo tempo desaconselhando-o por ser grande).

Vi também este texto do autor sobre escola e media:
 

E também foi no blogue de Luís Soares que vi este «Para que serve a literatura?»:

Cfr. secções sobre Autores ex-alunos do AeB; Adília Lopes;
Rui Zink;
Manuel
João Ramos

De Luís Soares tenho estado a ler Os Adultos (interrompera a
leitura o ano passado, mas não porque não estivesse a gostar). Embora isso não
esteja explicitado no romance — e o próprio autor considere com mais alusões autobiográficas
o seu primeiro romance, Aquariofilia, de 2003 —, parece-me óbvio que o
texto teve bastante inspiração nos tempos de estudante do escritor e que um dos
espaços é identificável com a Secundária de Benfica, aliás, já então Secundária
José Gomes Ferreira. Além da experiência sobre a escola, Os Adultos
mostra um conhecimento especializado das tecnologias de informação, um
interesse continuado de Luís Soares — salvo erro, mesmo em termos
profissionais. No livro, acompanhamos o que podemos considerar o advento das redes
sociais, mas com a intuição de quem antecipa o que só tem chegado à ficção mais
recentemente.

Excerto da capítulo 1 de Os Adultos («Hoje»), pp. 17-19:

Há três dias.

Salvador pára junto ao
portão, os sons do metal a ranger quando o abre de par em par, das cigarras nos
arbustos, das suas solas no alcatrão, nítidos como a noite alastrando no céu.
Estou de volta ao local, onde lhe toquei no ombro, o local do... não, crime não
é a palavra. Está sozinho. Ainda não começaram a chegar. Por um momento
sozinho. Helena não virá, Eva prometeu substituí-la, a noite toda, Eva, a noite
toda. Tanto melhor. Pára e olha a escola, os contornos das coi­sas vibram com a
temperatura, cortados com violência, assim nas esquinas dos edifícios como nos
segredos dos corações. Vai recebê-los ali, enquanto César e os outros dão os
últimos retoques na decoração, lá dentro. Vai receber os que conhece de todos
os dias e os de outras turmas. Vai receber aqueles três, limites do seu mundo
possível. Estende a mão como se o tocasse, como se fosse um ombro de novo, um
princípio.

Não fecha o casaco, nem
o devia ter vestido, sente-se preso, abafado. Vira-se, olha a rua. A escola
fica encravada no cotovelo de uma praça delimitada por edifícios de habitação
de seis, sete andares, uma rotunda alongada, quase um pátio de aldeia. Ele
próprio não mora a mais de duzentos metros. Olha os olhos dos prédios. A maior
parte das janelas estão abertas, convidando o eventual fresco da noite, mas nem
uma brisa faz estremecer as copas das árvores. Ele sim, estremece. É noite de
baile. Sente-se agitado, irrequieto. Será por Eva? Tiago, Jorge? Será por todos
eles? As aulas acabaram. Para ele, para eles. Há os que vão para a faculdade,
claro e naquela escola são a maioria, mas há uma sensação de desfecho em tudo
aquilo, que o ritual acentua. É um fim. É o meu fim. Sacode a cabeça, tem de se
manter atento hoje, a pressa do seu sangue o exige.

Um Baile de Finalistas.
Soa evidente, como se o normal fosse professores e alunos levantarem-se dos
seus lugares e dançarem escola fora, deixando-a vazia para os meses de
insuportável calor. O calor que os afoga já, apesar de ser ainda Junho.
Salvador não gosta de pensar que o baile é uma americanização dos hábitos da
escola, prefere imaginá-lo como uma intervenção surrealista colectiva. De um
momento para o outro todos se levantam e começam a dançar, sobem a colina até
ao alto, valsam até ao ginásio, atraídos pela música como ratos em Hamelim.
Depois de três dias de reuniões, a primeira quinta-feira de férias é a data
escolhida, para não cair em cima dos exames. As regras combinadas são simples: vestimenta
a rigor (fato e gravata para eles, vestido de noite para elas); nada de bebidas
alcoólicas; hora de fim, máximo dos máximos, às três da manhã. E eis os
primeiros, virando aquela esquina do café. Aquele café, onde tudo começou na
realidade. Aclara a garganta, tenta encontrar um «boa noite» audível na sua
voz.

A temperatura, contudo,
desacelera o entusiasmo. Passa um pouco das dez da noite e estão ainda uns
opressores 32°C. O declive natural, onde se aninha a escadaria da entrada, não
escapa ao ar quente almorávida, subindo de sul para norte, do interior para o
litoral, arrasando florestas, bosques e simples mato à mínima faísca. Os
jardins mal cuidados definham ressequidos, o metal da vedação queima. Ali mesmo
em frente ao portão, mais adiante, na sombra dos desfiladeiros separando os
blocos, a última luz pinta o céu de um azul excessivo antes da escuridão. Entre
os alunos vibra, contagiante, a vontade da festa no espaço cavernoso do
pavilhão gimnodesportivo. Imaginam-no um reduto de frescura e liberdade, uma
catedral na sombra clemente da noite, onde poderão libertar a electricidade
acumulada, mas também ali a atmosfera adquiriu a consistência pastosa e picante
que, por todo o lado, tolhe a acção.

Olha-os. Olho-os. Que
compenetrados no seu papel. As turmas de outros anos não foram convidadas,
continuam em aulas, e aqueles miúdos, de 17 e 18 anos na sua maior parte (Eva,
por exemplo, tem já 19), sentem-se especiais, por uma noite mais próximos da
idade adulta, mais longe da infância e das coisas infantis. Passam o portão de
braço dado, eles e elas, caminham solenes até ao ginásio, nas traseiras.
Cobre-os já um véu, a nostalgia da inocência perdida, mas não receberam ainda
mais do que leves arranhões da dureza da realidade.

Olho para o relógio. Já
passou quase uma hora. Há uma hora que estou aqui a vê-los entrar? Avançam em
câmara lenta, embalados no enlevo do momento, actores de uma última encenação.
Se calhar é apenas a roupa a mascará-los. Sei tanto de máscaras, pensa Salvador
enquanto se encaminha também ele para o ginásio.

Badana de Os Adultos:

Fica aqui um microfilme feito por uma colega vossa mas de há uma
década— no ano letivo de 2007-2008 — sobre outro livro de Luís Soares, Em
Silêncio, Amor, que saíra poucos meses antes (Cruz Quebrada, Oficina do
Livro, 2007). Lembro-me que a Carolina (do 7.º 6.ª ao 12.º 1.ª — 2004 a
2009-2010) tinha uma leitura em voz alta perfeitíssima, costumava vencer as
nossas LC de então:

O blogue de Luís Soares é dos melhores de todos os que conheço sobre literatura, cinema, etc., mas usa cada
vez mais o inglês. Nele encontrei indicação deste site sobre capas de livros (na quarta fila, livro de Clarice Lispector que lhes recomendara — aqui —,
aliás ao mesmo tempo desaconselhando-o por ser grande).

Vi também este texto do autor sobre escola e media:
 

E também foi no blogue de Luís Soares que vi este «Para que serve a literatura?»:

Cfr. secções sobre Autores ex-alunos do AeB; Adília Lopes;
Rui Zink;
Manuel
João Ramos

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