porosidade etérea: Santo António

05-12-2019
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Nasci exactamente no teu dia —Treze de Junho, quente de alegria,Citadino, bucólico e humano,Onde até esses cravos de papelQue têm uma bandeira em pé quebradoSabem rir...Santo dia profanoCuja luz sabe a melSobre o chão de bom vinho derramado!Santo António, és portantoO meu santo,Se bem que nunca me pegassesTeu franciscano sentir,Católico, apostólico e romano.(Reflecti.Os cravos de papel creio que sãoMais propriamente, aqui,No dia de S. João...Mas não vou escangalhar o que escrevi.Que tem um poeta com a precisão?)Adiante... Ia eu dizendo, Santo António,Que tu és o meu santo sem o ser.Por isso o és a valer,Que é essa a santidade boa,A que fugiu deveras ao demónio.És o santo das raparigas,És o santo de Lisboa,És o santo do povo.Tens uma auréola de cantigas,E entãoQuanto ao teu coração —Está sempre aberto lá o vinho novo.Dizem que foste um pregador insigne,Um austero, mas de alma calma e ansiosa,Et cetera...Mas qual de nós vai tomar isso à letra?Que de hoje em diante quem o diz se digneDeixar de dizer isso ou qualquer outra cousa.Qual santo! Olham a árvore a olho nuE não a vêem, de olhar só os ramos.Chama-se a isso ser doutorOu investigador.Qual Santo António! Tu és tu.Tu és tu como nós te figuramos.Valem mais que os sermões que deveras pregasteAs bilhas que talvez não concertaste.Mais que a tua longínqua santidadeQue até já o Diabo perdoou,Mais que o que houvesse, se houve, de verdadeNo que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,Vale este sol das gerações antigasQue acorda em nós ainda as semelhançasCom quando a vida era só vida e instinto,As cantigas,Os rapazes e as raparigas,As dançasE o vinho tinto.Nós somos todos quem nos faz a história.Nós somos todos quem nos quer o povo.O verdadeiro título de glória,Que nada em nossa vida dá ou traz,É haver sido tais quando aqui andámos,Bons, justos, naturais em singeleza,Que os descendentes dos que nós amámosNos promovem a outros, como fazCom a imaginação que há na certezaO amante a quem ama,E o faz um velho amante sempre novo.Assim o povo fez contigoNunca foi teu devoto; é teu amigo,Ó eterno rapaz.(Qual santo nem santeza!Deita-te noutra cama!)Santos, bem santos, nunca têm beleza.Deus fez de ti um santo ou foi um Papa?...Tira lá essa capa!Deus fez-te santo? O Diabo, que é mais ricoEm fantasia, promoveu-te a manjerico.És o que és para nós. O que tu fosteEm tua vida real, por mal ou bem,Que coisas ou não-coisas se te devemCom isso a estéril multidão arrosteNa nora de errosDuns burros que puxam, quando escrevem,Essa prolixa nulidade, a que se chama história.Quem foste tu ou foi alguém,Só Deus o sabe, e mais ninguém.És pois quem nós queremos, és tal qualO teu retrato, como está aqui,Neste bilhete postal.E parece-me até que já te vi.És este, e este és tu, e o povo é teu —O povo que não sabe onde é o céu,E nesta hora em que vai alta a luaNum plácido e legítimo recorte,Atira risos naturais à morte,E, cheio de um prazer que mal é seu,Em canteiros que andam enche a rua.Sê sempre assim, nosso pagão encanto,Sê sempre assim!Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,Esquece a doutrina e os sermões.De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.Foste Fernando de Bulhões,Foste Frei António —Isso sim.Por que demónioÉ que foram pregar contigo em santo?Fernando Pessoa9/6/1935


Nasci exactamente no teu dia —Treze de Junho, quente de alegria,Citadino, bucólico e humano,Onde até esses cravos de papelQue têm uma bandeira em pé quebradoSabem rir...Santo dia profanoCuja luz sabe a melSobre o chão de bom vinho derramado!Santo António, és portantoO meu santo,Se bem que nunca me pegassesTeu franciscano sentir,Católico, apostólico e romano.(Reflecti.Os cravos de papel creio que sãoMais propriamente, aqui,No dia de S. João...Mas não vou escangalhar o que escrevi.Que tem um poeta com a precisão?)Adiante... Ia eu dizendo, Santo António,Que tu és o meu santo sem o ser.Por isso o és a valer,Que é essa a santidade boa,A que fugiu deveras ao demónio.És o santo das raparigas,És o santo de Lisboa,És o santo do povo.Tens uma auréola de cantigas,E entãoQuanto ao teu coração —Está sempre aberto lá o vinho novo.Dizem que foste um pregador insigne,Um austero, mas de alma calma e ansiosa,Et cetera...Mas qual de nós vai tomar isso à letra?Que de hoje em diante quem o diz se digneDeixar de dizer isso ou qualquer outra cousa.Qual santo! Olham a árvore a olho nuE não a vêem, de olhar só os ramos.Chama-se a isso ser doutorOu investigador.Qual Santo António! Tu és tu.Tu és tu como nós te figuramos.Valem mais que os sermões que deveras pregasteAs bilhas que talvez não concertaste.Mais que a tua longínqua santidadeQue até já o Diabo perdoou,Mais que o que houvesse, se houve, de verdadeNo que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,Vale este sol das gerações antigasQue acorda em nós ainda as semelhançasCom quando a vida era só vida e instinto,As cantigas,Os rapazes e as raparigas,As dançasE o vinho tinto.Nós somos todos quem nos faz a história.Nós somos todos quem nos quer o povo.O verdadeiro título de glória,Que nada em nossa vida dá ou traz,É haver sido tais quando aqui andámos,Bons, justos, naturais em singeleza,Que os descendentes dos que nós amámosNos promovem a outros, como fazCom a imaginação que há na certezaO amante a quem ama,E o faz um velho amante sempre novo.Assim o povo fez contigoNunca foi teu devoto; é teu amigo,Ó eterno rapaz.(Qual santo nem santeza!Deita-te noutra cama!)Santos, bem santos, nunca têm beleza.Deus fez de ti um santo ou foi um Papa?...Tira lá essa capa!Deus fez-te santo? O Diabo, que é mais ricoEm fantasia, promoveu-te a manjerico.És o que és para nós. O que tu fosteEm tua vida real, por mal ou bem,Que coisas ou não-coisas se te devemCom isso a estéril multidão arrosteNa nora de errosDuns burros que puxam, quando escrevem,Essa prolixa nulidade, a que se chama história.Quem foste tu ou foi alguém,Só Deus o sabe, e mais ninguém.És pois quem nós queremos, és tal qualO teu retrato, como está aqui,Neste bilhete postal.E parece-me até que já te vi.És este, e este és tu, e o povo é teu —O povo que não sabe onde é o céu,E nesta hora em que vai alta a luaNum plácido e legítimo recorte,Atira risos naturais à morte,E, cheio de um prazer que mal é seu,Em canteiros que andam enche a rua.Sê sempre assim, nosso pagão encanto,Sê sempre assim!Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,Esquece a doutrina e os sermões.De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.Foste Fernando de Bulhões,Foste Frei António —Isso sim.Por que demónioÉ que foram pregar contigo em santo?Fernando Pessoa9/6/1935

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