Asas da Montanha: Acima das nossas possibilidades

02-01-2020
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Não fosse a troika e não haveria dinheiro para pagar salários nem pensões",
repetem até à exaustão os arautos da intervenção estrangeira em Portugal. E logo
acrescentam que é assim porque fomos vivendo longamente acima das nossas
possibilidades, esbanjando dinheiro a rodos em saúde, em políticas sociais, num
funcionalismo inflacionado ou num sistema educativo agigantado.

O argumento seria de ter em conta se não fosse duplamente falso. É falso, em
primeiro lugar, porque num país socialmente tão frágil a escolha de reforçar as
seguranças e os direitos dos mais pobres não foi gordura mas músculo. Os
serviços públicos universais, o salário mínimo, os apoios aos desempregados e
aos pobres não são um luxo, são imperativos mínimos da democracia e da coesão
social. E é falso, em segundo lugar, porque a intervenção da troika não fez
recuar aquela parte do País que sempre viveu acima das possibilidades da grande
maioria, antes a anima. A austeridade imposta aos pobres e à classe média tem
como contrapartida um país em quinto lugar na compra de automóveis de topo de
gama, um país cujo Governo faz a apologia da colocação de capitais em praças
fiscais que institucionalizam a fuga à tributação e um país em que bancos em
risco de falência atribuem prémios milionários aos seus gestores.

A notícia destes dias é que em pleno apogeu de diminuições nos salários de um
povo que passou a fazer do quotidiano um exercício de pilotagem sem horizontes,
no preciso momento em que a troika exige a Portugal que se concretize cada
cêntimo dos cortes anunciados nas reformas, o Banif decidiu pagar um prémio de
gestão de 533,7 mil euros a uma sua ex-administradora no Brasil, a adicionar aos
448,6 mil euros de salário anual que lhe foram pagos.

Fora o Banif uma entidade privada como outra qualquer e comportasse-se em
conformidade com tal estatuto e o chocante do episódio seria apesar de tudo
confinado ao domínio do mau exemplo. Mas não é assim. É muito mais grave. O
Banif é um banco sob intervenção do Estado, que nele injetou 1,1 mil milhões de
euros, passando a deter desde então 99,2% do seu capital. Que a administração do
Banif não tenha tido uma palavra sequer de crítica por parte do acionista quase
único é revelador do pensamento desse acionista quase único quando se trata de
impor limites aos desmandos de quem sempre surfou a onda da crise. No prémio
milionário da administradora do Banif está, portanto, sintetizada a crise toda:
salvação dos devedores privados pela geração de dívida pública, transferência do
ónus dos acionistas para os contribuintes sem que aqueles percam um grama sequer
da sua sobranceria e se privem de se atribuir a si mesmos um cortejo de regalias
a suportar pelo erário público. E até mesmo simpatia e cumplicidade do Estado
para com quem administra um offshore.

O caso do Banif está longe de ser solto: os presidentes executivos das
empresas cotadas no PSI-20 receberam em 2012 mais 6% do que haviam recebido no
ano transato, num total de mais de 15 milhões de euros. Sabendo que em Portugal
a média das remunerações de quem trabalha diminuiu cerca de 7,2% no mesmo
período, a conclusão é simples: crise é o nome que damos à gigantesca
transferência de rendimento de quem sempre viveu abaixo das suas capacidades
para quem sempre viveu acima das nossas possibilidades.
JOSÉ MANUEL PUREZA, aqui

Não fosse a troika e não haveria dinheiro para pagar salários nem pensões",
repetem até à exaustão os arautos da intervenção estrangeira em Portugal. E logo
acrescentam que é assim porque fomos vivendo longamente acima das nossas
possibilidades, esbanjando dinheiro a rodos em saúde, em políticas sociais, num
funcionalismo inflacionado ou num sistema educativo agigantado.

O argumento seria de ter em conta se não fosse duplamente falso. É falso, em
primeiro lugar, porque num país socialmente tão frágil a escolha de reforçar as
seguranças e os direitos dos mais pobres não foi gordura mas músculo. Os
serviços públicos universais, o salário mínimo, os apoios aos desempregados e
aos pobres não são um luxo, são imperativos mínimos da democracia e da coesão
social. E é falso, em segundo lugar, porque a intervenção da troika não fez
recuar aquela parte do País que sempre viveu acima das possibilidades da grande
maioria, antes a anima. A austeridade imposta aos pobres e à classe média tem
como contrapartida um país em quinto lugar na compra de automóveis de topo de
gama, um país cujo Governo faz a apologia da colocação de capitais em praças
fiscais que institucionalizam a fuga à tributação e um país em que bancos em
risco de falência atribuem prémios milionários aos seus gestores.

A notícia destes dias é que em pleno apogeu de diminuições nos salários de um
povo que passou a fazer do quotidiano um exercício de pilotagem sem horizontes,
no preciso momento em que a troika exige a Portugal que se concretize cada
cêntimo dos cortes anunciados nas reformas, o Banif decidiu pagar um prémio de
gestão de 533,7 mil euros a uma sua ex-administradora no Brasil, a adicionar aos
448,6 mil euros de salário anual que lhe foram pagos.

Fora o Banif uma entidade privada como outra qualquer e comportasse-se em
conformidade com tal estatuto e o chocante do episódio seria apesar de tudo
confinado ao domínio do mau exemplo. Mas não é assim. É muito mais grave. O
Banif é um banco sob intervenção do Estado, que nele injetou 1,1 mil milhões de
euros, passando a deter desde então 99,2% do seu capital. Que a administração do
Banif não tenha tido uma palavra sequer de crítica por parte do acionista quase
único é revelador do pensamento desse acionista quase único quando se trata de
impor limites aos desmandos de quem sempre surfou a onda da crise. No prémio
milionário da administradora do Banif está, portanto, sintetizada a crise toda:
salvação dos devedores privados pela geração de dívida pública, transferência do
ónus dos acionistas para os contribuintes sem que aqueles percam um grama sequer
da sua sobranceria e se privem de se atribuir a si mesmos um cortejo de regalias
a suportar pelo erário público. E até mesmo simpatia e cumplicidade do Estado
para com quem administra um offshore.

O caso do Banif está longe de ser solto: os presidentes executivos das
empresas cotadas no PSI-20 receberam em 2012 mais 6% do que haviam recebido no
ano transato, num total de mais de 15 milhões de euros. Sabendo que em Portugal
a média das remunerações de quem trabalha diminuiu cerca de 7,2% no mesmo
período, a conclusão é simples: crise é o nome que damos à gigantesca
transferência de rendimento de quem sempre viveu abaixo das suas capacidades
para quem sempre viveu acima das nossas possibilidades.
JOSÉ MANUEL PUREZA, aqui

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