Como Marcelo condicionou a ‘geringonça’

04-09-2020
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Coabitação Umas vezes como adjuvante do Governo, outras como oponente, nestes quatro anos o Presidente foi fundamental na definição de caminhos. Poucas vezes na democracia Belém teve tanta influência e foi tão interveniente: moldou a legislatura

Ângela Silva

Marcelo Rebelo de Sousa adora dizer coisas sérias a brincar e se quisermos saber de que forma ele conseguiu condicionar a sui generis legislatura que agora chega ao fim há um episódio que diz muito. A 5 de maio de 2016, um mês após ter tomado posse como Presidente da República, Marcelo aproveitou uma cerimónia pública no Porto para catalogar o primeiro-ministro. António Costa passou a ser o “otimista crónico e ligeiramente irritante” a quem o Presidente pediu o favor de manter “os pés assentes no chão”. O rótulo colado ao chefe do Governo servia para dentro e para fora: aos portugueses, o Presidente sugeria olho vivo para avaliar um primeiro-ministro a quem apontava habilidade para puxar pelo copo meio cheio; para dentro do Governo, avisava que ele próprio, autocatalogado na mesma altura de “otimista realista”, manteria, a partir de Belém, muita atenção ao copo meio vazio.

Três anos depois, com a ‘geringonça’ a erguer a taça por, contra todos os que não davam nada por ela, ter conseguido chegar ao fim sem crises políticas, sem sanções de Bruxelas, com o sistema financeiro estabilizado, com contas públicas certinhas e com os serviços do Estado a rebentarem em várias frentes mas sem que isso se reflita nas sondagens que dão à esquerda uma maioria folgada e à direita uma crise profunda, Marcelo Rebelo de Sousa surge como uma das peças-chave desta história.

A intervenção foi decisiva nas questões éticas: do caso Domingues na CGD ao ‘familygate’

“A direita ficou chateada comigo por não ter posto fim à ‘geringonça’”, assumiu o PR em fevereiro deste ano, na TVI. “Fico verdadeiramente com saudades desta composição da Assembleia da República, esperando que na próxima o relacionamento seja tão bom quanto foi neste quadro institucional”, confessou há dias em Belém. Num caso e no outro, Marcelo Rebelo de Sousa não esconde o gozo que lhe deu gerir um dos mais trabalhosos ciclos políticos dos últimos anos. Acusado de andar com o Governo ao colo, é consensual que o Presidente descrispou o país e ajudou a desdramatizar, cá dentro e lá fora, uma heterodoxa fórmula governativa, mas também condicionou a atuação do Executivo e fica ligado ao desfecho de questões centrais da legislatura.

Tu cá, tu lá, com a Europa e com Draghi

Quando Marcelo entrou em cena, o primeiro Orçamento do Estado da ‘geringonça’ tinha levado Bruxelas a torcer o nariz: Mário Centeno via-se obrigado a refazer as contas e a ajustar-se aos ditames do euro, a desconfiança era grande entre os investidores portugueses e estrangeiros e começavam a destapar-se problemas na banca, com o BCE a querer inviabilizar a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e a defender a sua privatização, com problemas de capitalização no BCP, impasse no BPI e problemas no Novo Banco. Marcelo coloca-se então ao lado do Governo, apostado em serenar Bruxelas e desdobra-se em contactos: reúne-se com a Comissão Europeia, vai a Estrasburgo, desloca-se à Alemanha para falar com Angela Merkel com a ameaça de sanções a Portugal na agenda, vai a Itália, reúne-se com investidores nacionais e estrangeiros, defende em público que a CGD deve continuar nas mãos do Estado e convida Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, para vir a Lisboa ao Conselho de Estado. Falam a sós durante uma hora, a imprensa diz que o homem-forte do BCE saiu “sensibilizado” e antes do fim do ano a recapitalização da CGD recebe luz verde de Bruxelas. Entretanto, e apesar de ter tomado posição contra a espanholização da banca, Marcelo promulga o diploma que desblinda os estatutos do BPI e permite a OPA do La Caixa sobre o banco. O seu papel foi central ao lado do Executivo no processo de estabilização do sistema financeiro.

Centeno obrigado a deixar cair o presidente da CGD

Na banca, não foi tudo fácil. Em outubro de 2016, Marques Mendes denunciava na SIC a situação de exceção de António Domingues, o novo presidente da Caixa Geral de Depósitos, que estaria dispensado pelas Finanças de declarar rendimentos e património. Marcelo, que tinha promulgado as alterações ao estatuto do gestor público, vê a polémica atingir níveis de pré-crise política. Quando um dos seus conselheiros de Estado, António Lobo Xavier, diz na SIC que sabe da existência de mensagens comprometedoras entre Domingues e Centeno, o Presidente percebe o risco e publica no site da Presidência uma nota onde ‘obriga’ Domingues a declarar os bens no TC.

Belém obrigou o Governo a meter a regionalização na gaveta e condicionou a Lei de Bases da Saúde

Centeno é chamado a Belém e reconhece um eventual “erro de perceção mútuo”. Mas Marcelo faz questão de o deixar por um fio — diz que lhe aceitou as explicações “atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”. Ficou o lembrete: o Presidente pode despedir ministros.

Remodele, se faz favor

Não tardou muito para voltar a acontecer. No trágico verão de 2017, quando mais de 100 pessoas morreram nos fogos no interior do país, Marcelo descolou do Governo, assumiu a dianteira política do processo e cortou com o ‘tango’ que tinha vivido com António Costa e os seus parceiros de ‘geringonça’. Fogos e roubo de material militar em Tancos abriram as primeiras brechas nesta relação. O Presidente forçou o Governo a assumir as falhas do Estado, apontou o dedo ao primeiro-ministro por não estar presente desde a primeira hora, exigiu a demissão da ministra da Administração Interna, empurrou o ministro da Defesa para o terreno, e comunicou ao país que era preciso apurar tudo “doa a quem doer”. Durante dois anos, não deixou que fogos e Tancos saíssem da agenda. Se alguém tentou ir esquecendo o assunto, Marcelo não deixou.

Ajudante de serviço na política externa

Uma intensíssima agenda internacional permitiu ao Presidente encontrar-se em pouco mais de meio mandato com os Presidentes dos EUA, da China, da Rússia, do Brasil e de Angola, além de todos os outros chefes de Estado que convidou ou de quem aceitou convites para visitas bilaterais. Em estreita sintonia com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Marcelo enterrou as dúvidas que na era Soares/Cavaco chegaram a fazer faísca entre Belém e São Bento e assumiu sem complexos o papel de parceiro ativo na política externa. Em alguns dos passivos herdados pela ‘geringonça’ — a começar pelo contencioso diplomático com Luanda por causa do processo judicial movido em Portugal contra Manuel Vicente — o Presidente exerceu a sua influência nos bastidores. Uma vez sanado o impasse judicial, deslocou-se a Angola para uma visita-festa.

Está lá? É da esquerda?

Assente o princípio basilar da sua magistratura de influência — garantir a estabilidade política para que a legislatura se cumprisse — Marcelo Rebelo de Sousa trabalhou assiduamente as relações com a esquerda enquanto esperou que a direita fizesse pela vida. De três em três meses, o Presidente chamou os líderes partidários ao palácio para ir tirando a temperatura à ‘geringonça’, mas além desses encontros públicos aconteceu ir falando, quer com as cúpulas do Bloco de Esquerda quer do PCP, sendo certo que, com António Costa, as reuniões formais de quinta-feira não invalidaram que os telefones de ambos raramente parassem de tocar. Outro canal importante para manter oleado o ritmo de comunicação com a ‘geringonça’ foi Ferro Rodrigues. Marcelo estabeleceu com o presidente da Assembleia da República uma relação de estreitíssima cooperação institucional e de inesperada cumplicidade pessoal. “Se fosse hoje (as presidenciais) votava nele”, arriscou Ferro antes da legislatura chegar ao fim. Melhor era impossível.

Populismos não são pintura abstrata

A 25 de abril de 2018, quando Marcelo fez um discurso sobre os riscos de populismos, António Costa não deu gás à conversa, disse que há “discursos modernos” que são “como a pintura abstrata”, difíceis de perceber. Mas Marcelo respondeu-lhe à letra: “Ontem, na praia, encontrei um jovem que me disse que percebeu muito bem o que eu queria dizer. Que mais vale prevenir do que remediar”, afirmou. E manteve o dedo na tecla: é urgente ler sinais, acautelar rejeições da classe política e dos sindicatos tradicionais, e preencher vazios. Ele próprio o fez quando saltou para um TIR para acalmar os novos sindicatos dos motoristas, ou quando avisou o novo sindicato dos enfermeiros de que era “intolerável” não cumprir serviços mínimos. Mas numa legislatura que misturou os casos BES e Marquês, o ‘familygate’, o Galpgate, as moradas falsas de deputados e um crescendo de autarcas suspeitos de corrupção, o PR foi sobretudo exigente com os políticos, a quem impôs uma lei contra a endogamia na contratação de familiares — “quando a ética não é suficiente...” —, ao mesmo tempo que puxava para o topo da tabela uma prioridade chamada combate à corrupção. António Costa percebeu e também já a inscreveu no cabeçalho do seu segundo programa eleitoral.

Proibido esquecer o sector privado

Quando Marcelo vetou, ainda em 2016, o diploma que proibia a entrada de privados nos transportes públicos do Porto, foi dado um primeiro sinal: o Presidente não aceitaria uma estatização crescente nos serviços públicos. Foi o que aconteceu com a tentativa da esquerda para varrer os privados das parcerias com o Estado no sector da Saúde: o Presidente avisou de que vetaria uma lei que proibisse as parcerias público-privadas, o primeiro-ministro assumiu em público ter essa baliza pela frente, e a lei de bases aprovada à esquerda não proíbe as PPP.

O PR que legitimou a ‘geringonça’ lançou meia bomba atómica quando forçou a demissão de uma ministra

Já este ano, quando Costa propôs três horas de folga aos pais funcionários públicos no primeiro dia de aulas dos filhos, o PR exigiu que fosse extensível ao privado — para evitar “divisões no sector do trabalho”. Sem sabermos se António Costa faria muito diferente sem a pressão presidencial, sabemos pelo menos que a linha vermelha imposta pelo PR funcionou: o Governo atirou essa decisão para as negociações com patrões e sindicatos na Concertação Social.

Regionalização na gaveta

Quando o Governo pensou avançar com a eleição direta dos dirigentes das áreas metropolitanas, Marcelo avisou: criar novas legitimidades regionais cheira a regionalização encapotada e não passaria em Belém. Costa percebeu o aviso. Meteu a regionalização na gaveta. Sem novo referendo (e com este Presidente) nada feito.

Políticas para os pobres

A erradicação dos sem-abrigo até 2023 foi colada pelo Presidente às agendas do Governo e das câmaras municipais. Marcelo fez numerosas visitas a instituições de apoio social, serviu sopas nas cantinas, passou noites na rua com sem-abrigo e estabeleceu metas temporais. Em finais de 2017, o Conselho de Ministros aprovou a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, sem se comprometer com a erradicação total dos casos. Mas Marcelo não desarma: em maio deste ano, no Porto, reafirmou: “Temos uma taxa de pobreza e de risco de pobreza inaceitável”.

“A França é excecional. Mas nós...”

Voltando ao ponto de partida, o Presidente que apontou o dedo ao primeiro-ministro “otimista irritante” foi, ele próprio, um PR obcecado em puxar pelo otimismo e autoconfiança nacionais. Repetiu à exaustão que, quando somos bons, “somos dos melhores dos melhores”. E foi assim logo em 2016 quando, no famoso 10 de Junho em Paris, lado a lado com António Costa sob o mesmo chapéu de chuva, o Presidente se deixou levar pelo entusiasmo: “A França é excecional, mas nós somos os melhores”. Para quem tiver dúvidas, Ricardo Araújo Pereira explicou no “Gente Que não Sabe Estar”: “Somos os melhores do mundo a fingir que não somos os melhores do mundo”.

Coabitação Umas vezes como adjuvante do Governo, outras como oponente, nestes quatro anos o Presidente foi fundamental na definição de caminhos. Poucas vezes na democracia Belém teve tanta influência e foi tão interveniente: moldou a legislatura

Ângela Silva

Marcelo Rebelo de Sousa adora dizer coisas sérias a brincar e se quisermos saber de que forma ele conseguiu condicionar a sui generis legislatura que agora chega ao fim há um episódio que diz muito. A 5 de maio de 2016, um mês após ter tomado posse como Presidente da República, Marcelo aproveitou uma cerimónia pública no Porto para catalogar o primeiro-ministro. António Costa passou a ser o “otimista crónico e ligeiramente irritante” a quem o Presidente pediu o favor de manter “os pés assentes no chão”. O rótulo colado ao chefe do Governo servia para dentro e para fora: aos portugueses, o Presidente sugeria olho vivo para avaliar um primeiro-ministro a quem apontava habilidade para puxar pelo copo meio cheio; para dentro do Governo, avisava que ele próprio, autocatalogado na mesma altura de “otimista realista”, manteria, a partir de Belém, muita atenção ao copo meio vazio.

Três anos depois, com a ‘geringonça’ a erguer a taça por, contra todos os que não davam nada por ela, ter conseguido chegar ao fim sem crises políticas, sem sanções de Bruxelas, com o sistema financeiro estabilizado, com contas públicas certinhas e com os serviços do Estado a rebentarem em várias frentes mas sem que isso se reflita nas sondagens que dão à esquerda uma maioria folgada e à direita uma crise profunda, Marcelo Rebelo de Sousa surge como uma das peças-chave desta história.

A intervenção foi decisiva nas questões éticas: do caso Domingues na CGD ao ‘familygate’

“A direita ficou chateada comigo por não ter posto fim à ‘geringonça’”, assumiu o PR em fevereiro deste ano, na TVI. “Fico verdadeiramente com saudades desta composição da Assembleia da República, esperando que na próxima o relacionamento seja tão bom quanto foi neste quadro institucional”, confessou há dias em Belém. Num caso e no outro, Marcelo Rebelo de Sousa não esconde o gozo que lhe deu gerir um dos mais trabalhosos ciclos políticos dos últimos anos. Acusado de andar com o Governo ao colo, é consensual que o Presidente descrispou o país e ajudou a desdramatizar, cá dentro e lá fora, uma heterodoxa fórmula governativa, mas também condicionou a atuação do Executivo e fica ligado ao desfecho de questões centrais da legislatura.

Tu cá, tu lá, com a Europa e com Draghi

Quando Marcelo entrou em cena, o primeiro Orçamento do Estado da ‘geringonça’ tinha levado Bruxelas a torcer o nariz: Mário Centeno via-se obrigado a refazer as contas e a ajustar-se aos ditames do euro, a desconfiança era grande entre os investidores portugueses e estrangeiros e começavam a destapar-se problemas na banca, com o BCE a querer inviabilizar a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e a defender a sua privatização, com problemas de capitalização no BCP, impasse no BPI e problemas no Novo Banco. Marcelo coloca-se então ao lado do Governo, apostado em serenar Bruxelas e desdobra-se em contactos: reúne-se com a Comissão Europeia, vai a Estrasburgo, desloca-se à Alemanha para falar com Angela Merkel com a ameaça de sanções a Portugal na agenda, vai a Itália, reúne-se com investidores nacionais e estrangeiros, defende em público que a CGD deve continuar nas mãos do Estado e convida Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, para vir a Lisboa ao Conselho de Estado. Falam a sós durante uma hora, a imprensa diz que o homem-forte do BCE saiu “sensibilizado” e antes do fim do ano a recapitalização da CGD recebe luz verde de Bruxelas. Entretanto, e apesar de ter tomado posição contra a espanholização da banca, Marcelo promulga o diploma que desblinda os estatutos do BPI e permite a OPA do La Caixa sobre o banco. O seu papel foi central ao lado do Executivo no processo de estabilização do sistema financeiro.

Centeno obrigado a deixar cair o presidente da CGD

Na banca, não foi tudo fácil. Em outubro de 2016, Marques Mendes denunciava na SIC a situação de exceção de António Domingues, o novo presidente da Caixa Geral de Depósitos, que estaria dispensado pelas Finanças de declarar rendimentos e património. Marcelo, que tinha promulgado as alterações ao estatuto do gestor público, vê a polémica atingir níveis de pré-crise política. Quando um dos seus conselheiros de Estado, António Lobo Xavier, diz na SIC que sabe da existência de mensagens comprometedoras entre Domingues e Centeno, o Presidente percebe o risco e publica no site da Presidência uma nota onde ‘obriga’ Domingues a declarar os bens no TC.

Belém obrigou o Governo a meter a regionalização na gaveta e condicionou a Lei de Bases da Saúde

Centeno é chamado a Belém e reconhece um eventual “erro de perceção mútuo”. Mas Marcelo faz questão de o deixar por um fio — diz que lhe aceitou as explicações “atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”. Ficou o lembrete: o Presidente pode despedir ministros.

Remodele, se faz favor

Não tardou muito para voltar a acontecer. No trágico verão de 2017, quando mais de 100 pessoas morreram nos fogos no interior do país, Marcelo descolou do Governo, assumiu a dianteira política do processo e cortou com o ‘tango’ que tinha vivido com António Costa e os seus parceiros de ‘geringonça’. Fogos e roubo de material militar em Tancos abriram as primeiras brechas nesta relação. O Presidente forçou o Governo a assumir as falhas do Estado, apontou o dedo ao primeiro-ministro por não estar presente desde a primeira hora, exigiu a demissão da ministra da Administração Interna, empurrou o ministro da Defesa para o terreno, e comunicou ao país que era preciso apurar tudo “doa a quem doer”. Durante dois anos, não deixou que fogos e Tancos saíssem da agenda. Se alguém tentou ir esquecendo o assunto, Marcelo não deixou.

Ajudante de serviço na política externa

Uma intensíssima agenda internacional permitiu ao Presidente encontrar-se em pouco mais de meio mandato com os Presidentes dos EUA, da China, da Rússia, do Brasil e de Angola, além de todos os outros chefes de Estado que convidou ou de quem aceitou convites para visitas bilaterais. Em estreita sintonia com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Marcelo enterrou as dúvidas que na era Soares/Cavaco chegaram a fazer faísca entre Belém e São Bento e assumiu sem complexos o papel de parceiro ativo na política externa. Em alguns dos passivos herdados pela ‘geringonça’ — a começar pelo contencioso diplomático com Luanda por causa do processo judicial movido em Portugal contra Manuel Vicente — o Presidente exerceu a sua influência nos bastidores. Uma vez sanado o impasse judicial, deslocou-se a Angola para uma visita-festa.

Está lá? É da esquerda?

Assente o princípio basilar da sua magistratura de influência — garantir a estabilidade política para que a legislatura se cumprisse — Marcelo Rebelo de Sousa trabalhou assiduamente as relações com a esquerda enquanto esperou que a direita fizesse pela vida. De três em três meses, o Presidente chamou os líderes partidários ao palácio para ir tirando a temperatura à ‘geringonça’, mas além desses encontros públicos aconteceu ir falando, quer com as cúpulas do Bloco de Esquerda quer do PCP, sendo certo que, com António Costa, as reuniões formais de quinta-feira não invalidaram que os telefones de ambos raramente parassem de tocar. Outro canal importante para manter oleado o ritmo de comunicação com a ‘geringonça’ foi Ferro Rodrigues. Marcelo estabeleceu com o presidente da Assembleia da República uma relação de estreitíssima cooperação institucional e de inesperada cumplicidade pessoal. “Se fosse hoje (as presidenciais) votava nele”, arriscou Ferro antes da legislatura chegar ao fim. Melhor era impossível.

Populismos não são pintura abstrata

A 25 de abril de 2018, quando Marcelo fez um discurso sobre os riscos de populismos, António Costa não deu gás à conversa, disse que há “discursos modernos” que são “como a pintura abstrata”, difíceis de perceber. Mas Marcelo respondeu-lhe à letra: “Ontem, na praia, encontrei um jovem que me disse que percebeu muito bem o que eu queria dizer. Que mais vale prevenir do que remediar”, afirmou. E manteve o dedo na tecla: é urgente ler sinais, acautelar rejeições da classe política e dos sindicatos tradicionais, e preencher vazios. Ele próprio o fez quando saltou para um TIR para acalmar os novos sindicatos dos motoristas, ou quando avisou o novo sindicato dos enfermeiros de que era “intolerável” não cumprir serviços mínimos. Mas numa legislatura que misturou os casos BES e Marquês, o ‘familygate’, o Galpgate, as moradas falsas de deputados e um crescendo de autarcas suspeitos de corrupção, o PR foi sobretudo exigente com os políticos, a quem impôs uma lei contra a endogamia na contratação de familiares — “quando a ética não é suficiente...” —, ao mesmo tempo que puxava para o topo da tabela uma prioridade chamada combate à corrupção. António Costa percebeu e também já a inscreveu no cabeçalho do seu segundo programa eleitoral.

Proibido esquecer o sector privado

Quando Marcelo vetou, ainda em 2016, o diploma que proibia a entrada de privados nos transportes públicos do Porto, foi dado um primeiro sinal: o Presidente não aceitaria uma estatização crescente nos serviços públicos. Foi o que aconteceu com a tentativa da esquerda para varrer os privados das parcerias com o Estado no sector da Saúde: o Presidente avisou de que vetaria uma lei que proibisse as parcerias público-privadas, o primeiro-ministro assumiu em público ter essa baliza pela frente, e a lei de bases aprovada à esquerda não proíbe as PPP.

O PR que legitimou a ‘geringonça’ lançou meia bomba atómica quando forçou a demissão de uma ministra

Já este ano, quando Costa propôs três horas de folga aos pais funcionários públicos no primeiro dia de aulas dos filhos, o PR exigiu que fosse extensível ao privado — para evitar “divisões no sector do trabalho”. Sem sabermos se António Costa faria muito diferente sem a pressão presidencial, sabemos pelo menos que a linha vermelha imposta pelo PR funcionou: o Governo atirou essa decisão para as negociações com patrões e sindicatos na Concertação Social.

Regionalização na gaveta

Quando o Governo pensou avançar com a eleição direta dos dirigentes das áreas metropolitanas, Marcelo avisou: criar novas legitimidades regionais cheira a regionalização encapotada e não passaria em Belém. Costa percebeu o aviso. Meteu a regionalização na gaveta. Sem novo referendo (e com este Presidente) nada feito.

Políticas para os pobres

A erradicação dos sem-abrigo até 2023 foi colada pelo Presidente às agendas do Governo e das câmaras municipais. Marcelo fez numerosas visitas a instituições de apoio social, serviu sopas nas cantinas, passou noites na rua com sem-abrigo e estabeleceu metas temporais. Em finais de 2017, o Conselho de Ministros aprovou a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, sem se comprometer com a erradicação total dos casos. Mas Marcelo não desarma: em maio deste ano, no Porto, reafirmou: “Temos uma taxa de pobreza e de risco de pobreza inaceitável”.

“A França é excecional. Mas nós...”

Voltando ao ponto de partida, o Presidente que apontou o dedo ao primeiro-ministro “otimista irritante” foi, ele próprio, um PR obcecado em puxar pelo otimismo e autoconfiança nacionais. Repetiu à exaustão que, quando somos bons, “somos dos melhores dos melhores”. E foi assim logo em 2016 quando, no famoso 10 de Junho em Paris, lado a lado com António Costa sob o mesmo chapéu de chuva, o Presidente se deixou levar pelo entusiasmo: “A França é excecional, mas nós somos os melhores”. Para quem tiver dúvidas, Ricardo Araújo Pereira explicou no “Gente Que não Sabe Estar”: “Somos os melhores do mundo a fingir que não somos os melhores do mundo”.

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