Ainda bem que o juiz Carlos Alexandre deu a entrevista que não devia ter dado

20-06-2020
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Um juiz não deve dar entrevistas. Sobretudo sendo uma figura em evidência pública, não deve dar entrevistas, porque o que é relevante para o país é a sua sentença nos processos e nada mais. A sua vida privada ou as suas considerações sobre o mundo não importam para a nossa apreciação da sua conclusão. É na sua justiça e não na sua vida ou opiniões que devemos poder confiar. Por isso, não deve dar entrevistas, pois não pode tratar dos processos nem explicar sentenças e o resto é irrelevante. O silêncio da justiça sobre si própria é a melhor forma de criar confiança na justiça, pois os actos é que devem falar.

Se um juiz dá entrevistas para falar de si, temos que nos perguntar porque é que quer falar de si. Pode considerar-se um herói e aspirar a que o povo lhe erga um pedestal. Pode querer dar algum recado. Pode querer reinterpretar a sua própria função. Todas essas razões para dar uma entrevista são razões que aconselhariam o contrário, que o juiz evitasse disputar o espaço mediático, porque no caso esse é simplesmente o espaço da política. O juiz que dá uma entrevista está a intervir politicamente e sabe que está a fazer precisamente essa escolha.

Ao contrário do juiz, outras figuras públicas devem dar entrevistas, se o seu espaço natural é o da política. O público quer saber o que pensa o candidato a Presidente, o que disse, o que escreveu, o que discutiu, e até se é divorciado ou casado ou solteiro ou o que for, que casas e carro é que tem, o seu percurso profissional. Até é obrigado a fazer declaração de bens no Tribunal Constitucional, que pode ser consultada pelo público (o juiz não é obrigado a fazê-lo). Esses dados podem importar para a formação de uma opinião sobre a sua capacidade de exercício de cargo público. E, porque será escolhido pelo voto, a sua imagem e história são relevantes, bem como os actos. É por isso que se nos apresenta em entrevistas.

Ao contrário, o juiz não é escolhido pelo voto e, onde o político tem que ser visível, o juiz tem que ser invisível. Não me interessa em quem vota, não me interessa quem são os seus colegas de bilhar, não cuido de com quem janta, nem do seu clube de futebol, nem da sua leitura acerca do último discurso de António Costa ou de Marcelo Rebelo de Sousa. Só por essa razão, falar e falar é demais a entrevista do juiz Carlos Alexandre é estranha.

Também estranha é a data: uma semana antes de se concluir (mais um) prazo para a eternamente adiada acusação do Processo Marquês.

Mas mais estranho ainda é o que diz o juiz. Primeiro, pela mesquinhez da piscadela de olho: “sou o saloio de Mação que não tem dinheiro em nome de amigos”, porque meia palavra basta. Para quem não ouviu à primeira, repete que não tem “dinheiro” nem “contas bancárias em nome de amigos”. Percebeu?

A conversa sobre os dinheiros é perturbante. O juiz vive uma vida espartana, não vai a restaurantes e não tem “amigos pródigos”. Aliás, para descansar as nossas almas, nem tem amigos, de todo (se o leitor ou a leitora consegue confiar numa pessoa que não tem amigos dou-lhe um prémio). Queixa-se do governo do “senhor engenheiro José Sócrates” que lhe cortou o salário mas, que engraçado, não se lembra do governo seguinte que também lhe cortou e bastante mais no salário – ele ainda hoje desconta uma sobretaxa do IRS, mas não deve ter dado por isso, tão cuidadoso com as contas apertadas que é. Mas, espartano, e com um ordenado que, já agora, é maior do que um deputado, o juiz tem que trabalhar 48 sábados por ano para compor o fim do mês. Percebeu? Eu não.

E, se a conversa sobre dinheiros é perturbante, há outra que vai ainda mais longe. É que o juiz sabe muito, vangloria-se ele. Ouve muitas escutas. Tinha todos os processos. Está em todas as buscas. Manda tudo. Se isto for tudo verdade, e se este for o homem que sabe mais sobre a vida dos outros na nossa República, está mesmo certo de que pode confiar na justiça? Até porque o juiz sabe tudo, ouve muitas escutas, e muitas delas vão aparecendo escarrapachadas na capa do Correio da Manhã ou na Sábado.

Não sei portanto se a entrevista é vantajosa ou não para a transparência. É transparente ficarmos a saber que hão há transparência alguma. Que há uma só pessoa que tem tudo na mão. Que pode decidir a detenção e libertação de suspeitos ou arguidos que podem ficar meses ou anos na prisão, mesmo que não tenham sido acusados e não se sabe quando o venham a ser. Que é possível adiar a apresentação da acusação, porque, de facto, não obedece a prazos nem responde a ninguém. Que o segredo de justiça é segredo para todos menos para certos jornalistas. Que o juiz tem grandes aflições de dinheiro e uma vida rigorosa, penalizada pelas horas extraordinárias, ganhando o que ganha. Que diz de si próprio ser “o saloio de Mação que não dinheiro em nome de amigos” e que aliás não corre o risco porque nem tem amigos.

Assim sendo, ainda bem que o juiz Carlos Alexandre deu a entrevista que não devia ter dado.

Um juiz não deve dar entrevistas. Sobretudo sendo uma figura em evidência pública, não deve dar entrevistas, porque o que é relevante para o país é a sua sentença nos processos e nada mais. A sua vida privada ou as suas considerações sobre o mundo não importam para a nossa apreciação da sua conclusão. É na sua justiça e não na sua vida ou opiniões que devemos poder confiar. Por isso, não deve dar entrevistas, pois não pode tratar dos processos nem explicar sentenças e o resto é irrelevante. O silêncio da justiça sobre si própria é a melhor forma de criar confiança na justiça, pois os actos é que devem falar.

Se um juiz dá entrevistas para falar de si, temos que nos perguntar porque é que quer falar de si. Pode considerar-se um herói e aspirar a que o povo lhe erga um pedestal. Pode querer dar algum recado. Pode querer reinterpretar a sua própria função. Todas essas razões para dar uma entrevista são razões que aconselhariam o contrário, que o juiz evitasse disputar o espaço mediático, porque no caso esse é simplesmente o espaço da política. O juiz que dá uma entrevista está a intervir politicamente e sabe que está a fazer precisamente essa escolha.

Ao contrário do juiz, outras figuras públicas devem dar entrevistas, se o seu espaço natural é o da política. O público quer saber o que pensa o candidato a Presidente, o que disse, o que escreveu, o que discutiu, e até se é divorciado ou casado ou solteiro ou o que for, que casas e carro é que tem, o seu percurso profissional. Até é obrigado a fazer declaração de bens no Tribunal Constitucional, que pode ser consultada pelo público (o juiz não é obrigado a fazê-lo). Esses dados podem importar para a formação de uma opinião sobre a sua capacidade de exercício de cargo público. E, porque será escolhido pelo voto, a sua imagem e história são relevantes, bem como os actos. É por isso que se nos apresenta em entrevistas.

Ao contrário, o juiz não é escolhido pelo voto e, onde o político tem que ser visível, o juiz tem que ser invisível. Não me interessa em quem vota, não me interessa quem são os seus colegas de bilhar, não cuido de com quem janta, nem do seu clube de futebol, nem da sua leitura acerca do último discurso de António Costa ou de Marcelo Rebelo de Sousa. Só por essa razão, falar e falar é demais a entrevista do juiz Carlos Alexandre é estranha.

Também estranha é a data: uma semana antes de se concluir (mais um) prazo para a eternamente adiada acusação do Processo Marquês.

Mas mais estranho ainda é o que diz o juiz. Primeiro, pela mesquinhez da piscadela de olho: “sou o saloio de Mação que não tem dinheiro em nome de amigos”, porque meia palavra basta. Para quem não ouviu à primeira, repete que não tem “dinheiro” nem “contas bancárias em nome de amigos”. Percebeu?

A conversa sobre os dinheiros é perturbante. O juiz vive uma vida espartana, não vai a restaurantes e não tem “amigos pródigos”. Aliás, para descansar as nossas almas, nem tem amigos, de todo (se o leitor ou a leitora consegue confiar numa pessoa que não tem amigos dou-lhe um prémio). Queixa-se do governo do “senhor engenheiro José Sócrates” que lhe cortou o salário mas, que engraçado, não se lembra do governo seguinte que também lhe cortou e bastante mais no salário – ele ainda hoje desconta uma sobretaxa do IRS, mas não deve ter dado por isso, tão cuidadoso com as contas apertadas que é. Mas, espartano, e com um ordenado que, já agora, é maior do que um deputado, o juiz tem que trabalhar 48 sábados por ano para compor o fim do mês. Percebeu? Eu não.

E, se a conversa sobre dinheiros é perturbante, há outra que vai ainda mais longe. É que o juiz sabe muito, vangloria-se ele. Ouve muitas escutas. Tinha todos os processos. Está em todas as buscas. Manda tudo. Se isto for tudo verdade, e se este for o homem que sabe mais sobre a vida dos outros na nossa República, está mesmo certo de que pode confiar na justiça? Até porque o juiz sabe tudo, ouve muitas escutas, e muitas delas vão aparecendo escarrapachadas na capa do Correio da Manhã ou na Sábado.

Não sei portanto se a entrevista é vantajosa ou não para a transparência. É transparente ficarmos a saber que hão há transparência alguma. Que há uma só pessoa que tem tudo na mão. Que pode decidir a detenção e libertação de suspeitos ou arguidos que podem ficar meses ou anos na prisão, mesmo que não tenham sido acusados e não se sabe quando o venham a ser. Que é possível adiar a apresentação da acusação, porque, de facto, não obedece a prazos nem responde a ninguém. Que o segredo de justiça é segredo para todos menos para certos jornalistas. Que o juiz tem grandes aflições de dinheiro e uma vida rigorosa, penalizada pelas horas extraordinárias, ganhando o que ganha. Que diz de si próprio ser “o saloio de Mação que não dinheiro em nome de amigos” e que aliás não corre o risco porque nem tem amigos.

Assim sendo, ainda bem que o juiz Carlos Alexandre deu a entrevista que não devia ter dado.

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