Os Verdes em Lisboa: Debaixo daquela arcada (Parte II)

24-06-2020
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Faleceu a D. Amélia. Nome fictício? Nome real? A sua graça era desconhecida por quem com ela coabitava ou de quem por ela passava. E talvez mesmo já por ela própria. O óbito da idosa não foi noticiado por nenhum órgão de comunicação social ou qualquer revista de futilidades. Já nem a metálica maior ‘árvore’ natalícia do mundo lhe fazia companhia. Nem chegou a ver o maior enamorado coração de plástico da Europa flutuando junto a D. José. Perante estes dois marcos publicitários, a D. Amélia era, acima de toda a ‘modernidade’, um ser humano.Data do óbito: perfaz exactamente hoje três semanas.Idade: desconhecida.Familiares: ignora-se.Última morada: as lajes frias das arcadas do Terreiro do Paço, bem juntinho ao Ministério das Finanças, durante mais de dez longos anos.Declaração de rendimentos: os dejectos urbanos abandonados por quem passa, uma esteira de cartão e um cobertor cedido pelo SOS nocturno.Última refeição: talvez um resto de sopa ou uma laranja esquecida no lixo.O alarme foi dado aos primeiros raios matinais deste frio Inverno. Naquela madrugada, os inúmeros vizinhos de várias nacionalidades já não detectavam o seu trémulo pestanejar. Foi transportada de urgência para o hospital, enquanto a vizinhança lhe acondicionava os ‘pertences’ sob a majestosa soleira de uma das portas do edifício pombalino.Causa do óbito: complicações cardíacas na sequência de hipotermia nocturna.O boletim meteorológico avisara: “caso as condições meteorológicas não se alterem prevê-se para Lisboa, 10º C máxima / 4º C mínima no sábado, e 8º C máxima / 7º C mínima, no domingo”.Os serviços sociais da Câmara bem lançaram dias antes, em conferência de imprensa, o “Plano de Contingência para a População de Rua Perante as Vagas de Frio”. Uma campanha que a ela já não terá chegado a tempo. Nesse último fim-de-semana de Janeiro, o apoio camarário aos sem-abrigo não previa “grandes alterações, apesar da anunciada vaga de frio para os próximos dias”.Como se transcrevia na parte I deste artigo, debaixo das arcadas dos Ministérios dormiam cerca de 30 pessoas. Hoje seria menos uma. Porém, a sua ‘não-assoalhada’ já foi ocupada por outro conhecido sem-abrigo, acompanhado pelos seus cães brancos. Como naquele famoso fado, diria o filho para a mãe: “debaixo daquela arcada passava-se a noite bem”. Triste desdita a do fado dos sem-abrigo da noite de Lisboa.Genérico final: se alguém disser que os nomes e os factos aqui relatados são fictícios, é falso; este artigo tem por base um caso real entre os sem-abrigo de Lisboa, bem debaixo daquela fria arcada.


Faleceu a D. Amélia. Nome fictício? Nome real? A sua graça era desconhecida por quem com ela coabitava ou de quem por ela passava. E talvez mesmo já por ela própria. O óbito da idosa não foi noticiado por nenhum órgão de comunicação social ou qualquer revista de futilidades. Já nem a metálica maior ‘árvore’ natalícia do mundo lhe fazia companhia. Nem chegou a ver o maior enamorado coração de plástico da Europa flutuando junto a D. José. Perante estes dois marcos publicitários, a D. Amélia era, acima de toda a ‘modernidade’, um ser humano.Data do óbito: perfaz exactamente hoje três semanas.Idade: desconhecida.Familiares: ignora-se.Última morada: as lajes frias das arcadas do Terreiro do Paço, bem juntinho ao Ministério das Finanças, durante mais de dez longos anos.Declaração de rendimentos: os dejectos urbanos abandonados por quem passa, uma esteira de cartão e um cobertor cedido pelo SOS nocturno.Última refeição: talvez um resto de sopa ou uma laranja esquecida no lixo.O alarme foi dado aos primeiros raios matinais deste frio Inverno. Naquela madrugada, os inúmeros vizinhos de várias nacionalidades já não detectavam o seu trémulo pestanejar. Foi transportada de urgência para o hospital, enquanto a vizinhança lhe acondicionava os ‘pertences’ sob a majestosa soleira de uma das portas do edifício pombalino.Causa do óbito: complicações cardíacas na sequência de hipotermia nocturna.O boletim meteorológico avisara: “caso as condições meteorológicas não se alterem prevê-se para Lisboa, 10º C máxima / 4º C mínima no sábado, e 8º C máxima / 7º C mínima, no domingo”.Os serviços sociais da Câmara bem lançaram dias antes, em conferência de imprensa, o “Plano de Contingência para a População de Rua Perante as Vagas de Frio”. Uma campanha que a ela já não terá chegado a tempo. Nesse último fim-de-semana de Janeiro, o apoio camarário aos sem-abrigo não previa “grandes alterações, apesar da anunciada vaga de frio para os próximos dias”.Como se transcrevia na parte I deste artigo, debaixo das arcadas dos Ministérios dormiam cerca de 30 pessoas. Hoje seria menos uma. Porém, a sua ‘não-assoalhada’ já foi ocupada por outro conhecido sem-abrigo, acompanhado pelos seus cães brancos. Como naquele famoso fado, diria o filho para a mãe: “debaixo daquela arcada passava-se a noite bem”. Triste desdita a do fado dos sem-abrigo da noite de Lisboa.Genérico final: se alguém disser que os nomes e os factos aqui relatados são fictícios, é falso; este artigo tem por base um caso real entre os sem-abrigo de Lisboa, bem debaixo daquela fria arcada.

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