portugal dos pequeninos: O ESTADO SOCRÁTICO

15-12-2019
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«Na evolução recente das democracias, há uma sofisticação tanto maior em relação aos modos de chegar ao poder, e de se manter lá, como há descuido e o desleixo em tudo o que se refere à reflexão sobre o que fazer depois, quando se ganham eleições. Não admira que, quando isto acontece, depois não se cumpra o que se prometeu, não se antecipe o que não se conhecia, não se responda ao que não se previu. E quando falta preparação, já se sabe o que lá vem: idolatra-se o concreto, recorre-se ao activismo e invoca-se, claro, o pragmatismo. Esquecendo-se, todavia, que há um bom e um mau pragmatismo. E que são muito diferentes: o bom é o que é capaz de ligar o conhecimento, a acção e as suas consequências, de uma maneira coerente e responsável. O mau é o que esconde a ausência de estratégia e de visão, atrás das mil faces do calculismo táctico. As sociedades tornaram-se, de facto, extremamente complexas. Mas isto, em vez de estimular, parece que assusta os candidatos, que cada vez mais se limitam a declinar entre si pequenas variações de cartilhas idênticas, perante (é preciso dizê-lo) a passividade e a cumplicidade dos cidadãos. Não admira assim que não se tenha dado qualquer atenção a quantos anteciparam as dificuldades que atravessam hoje os Estados, com problemas a acumularem-se há uma década, entalados entre ilusões eleitorais e impotências governamentais. Foi neste ponto verdadeiramente nevrálgico que Jacques Attali (que acaba de publicar um vigoroso alerta Tous ruinés dans dix ans?) tocou, ao falar do Estado mitómano que tem vindo a criar-se nos últimos tempos, nomeadamente na Europa. Chegou-se, diz Attali, a uma situação em que, "incapaz de fazer respeitar as normas que estabelece, de cobrar as receitas de que tem necessidade para desempenhar as suas funções, o Estado mente a todos, produzindo textos inaplicáveis e distribuindo dinheiro largamente imaginário. Como todos os mentirosos, acaba a mentir a si próprio: torna-se num Estado mitómano, que acima de tudo não quer saber se o que diz é ou não é verdade. (…) O Estado, não tendo já meios reais para agir sobre o mundo, contenta--se em produzir textos e em gastar o dinheiro que não tem. Ocupado a mentir a si e aos outros, torna-se num Estado mitómano. E, como todos os que são atingidos por esta doença mental, mente cada vez mais - a inflação legislativa e o défice público são as formas que toma, na política, o delírio verbal do mitómano". (L'Express, 29/04)»Manuel Maria Carrilho, DN*a responsabilidade pelo título é minha e não de MMC que apenas reflecte acerca do "Estado mitómano", em abstracto, a partir de um texto de Jacques Attali. Mas como entre nós existe um concreto, dirigido por uma pessoa pessoa concreta até na sua inconsequência, há que dar o nome à coisa.


«Na evolução recente das democracias, há uma sofisticação tanto maior em relação aos modos de chegar ao poder, e de se manter lá, como há descuido e o desleixo em tudo o que se refere à reflexão sobre o que fazer depois, quando se ganham eleições. Não admira que, quando isto acontece, depois não se cumpra o que se prometeu, não se antecipe o que não se conhecia, não se responda ao que não se previu. E quando falta preparação, já se sabe o que lá vem: idolatra-se o concreto, recorre-se ao activismo e invoca-se, claro, o pragmatismo. Esquecendo-se, todavia, que há um bom e um mau pragmatismo. E que são muito diferentes: o bom é o que é capaz de ligar o conhecimento, a acção e as suas consequências, de uma maneira coerente e responsável. O mau é o que esconde a ausência de estratégia e de visão, atrás das mil faces do calculismo táctico. As sociedades tornaram-se, de facto, extremamente complexas. Mas isto, em vez de estimular, parece que assusta os candidatos, que cada vez mais se limitam a declinar entre si pequenas variações de cartilhas idênticas, perante (é preciso dizê-lo) a passividade e a cumplicidade dos cidadãos. Não admira assim que não se tenha dado qualquer atenção a quantos anteciparam as dificuldades que atravessam hoje os Estados, com problemas a acumularem-se há uma década, entalados entre ilusões eleitorais e impotências governamentais. Foi neste ponto verdadeiramente nevrálgico que Jacques Attali (que acaba de publicar um vigoroso alerta Tous ruinés dans dix ans?) tocou, ao falar do Estado mitómano que tem vindo a criar-se nos últimos tempos, nomeadamente na Europa. Chegou-se, diz Attali, a uma situação em que, "incapaz de fazer respeitar as normas que estabelece, de cobrar as receitas de que tem necessidade para desempenhar as suas funções, o Estado mente a todos, produzindo textos inaplicáveis e distribuindo dinheiro largamente imaginário. Como todos os mentirosos, acaba a mentir a si próprio: torna-se num Estado mitómano, que acima de tudo não quer saber se o que diz é ou não é verdade. (…) O Estado, não tendo já meios reais para agir sobre o mundo, contenta--se em produzir textos e em gastar o dinheiro que não tem. Ocupado a mentir a si e aos outros, torna-se num Estado mitómano. E, como todos os que são atingidos por esta doença mental, mente cada vez mais - a inflação legislativa e o défice público são as formas que toma, na política, o delírio verbal do mitómano". (L'Express, 29/04)»Manuel Maria Carrilho, DN*a responsabilidade pelo título é minha e não de MMC que apenas reflecte acerca do "Estado mitómano", em abstracto, a partir de um texto de Jacques Attali. Mas como entre nós existe um concreto, dirigido por uma pessoa pessoa concreta até na sua inconsequência, há que dar o nome à coisa.

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