Apoios às artes - Radiografia de uma contestação

30-11-2019
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Com as manifestações, o novo modelo de apoios às artes não implodiu, mas prescreveu. Mantém-se apenas porque não há outro modelo possível em tempo útil, o que corresponde à situação política do Ministro e Secretário de Estado da Cultura.

Este dossier é dedicado ao período entre 14 de março e 15 de abril, entre os primeiros resultados do novo modelo de apoios às artes e a sua prescrição, reunindo os principais comunicados e textos das diferentes estruturas. Analisamos o problema político que levou à crise, Luísa Moreira explica os defeitos do próprio modelo, e apontamos possíveis soluções através da criação de um programa próprio de financiamento e programação dos teatros e cine-teatros municipais. Pedro Rodrigues olha para os orçamentos da Cultura, Mariana Mortágua dá perspetiva comparada, Jorge Campos relembra os cortes sucessivos e acumulados no setor, e Amarílis Felizes fala sobre as manifestações de 6 de abril.

A desculpa fácil é mais ou menos sempre a mesma: a cada nova edição dos concursos plurianuais, os artistas berram, recebem os subsídios e vão para casa. A realidade é bastante diferente.

Numa defesa pessoal e honesta de Miguel Honrado, Jorge Salavisa critica todo o setor pela "hipocrisia" de ter ficado calado durante a construção do novo modelo de apoios às artes e, agora, por criticar o modelo. E está errado.

As críticas ao modelo de apoios às artes existem desde a sua primeira versão nos anos noventa, bem como propostas para a sua remodelação. E lamento, mas a pretensa discussão para o "novo modelo" não passaram de reuniões onde a tutela falou sem apresentar um único documento concreto, ou revelar exatamente o que significaria o novo modelo. E ainda assim, houve críticas e avisos desde julho de 2017.

Não se conhece nenhum ensaio ou posição pública do atual Secretário de Estado sobre o assunto antes de assumir funções, mas foi um dos signatários da carta “Cultura e Futuro”, que juntou o setor em 2012 no Teatro São Luiz.

Como texto de defesa de políticas públicas de Cultura num contexto de ataque austeritário, a carta não se entrava no debate específico dos apoios às artes, mas terminava com uma referência dedicada: [Uma política cultural] “deverá, no entanto, transcender essa dimensão orçamental, conferindo prioridade à articulação de responsabilidades entre o Estado central e as Autarquias, à enunciação de prioridades no restabelecimento de um tecido criativo com um mínimo de escala e de capacidade de desenvolvimento de projetos, à definição clara de regras de gestão independente da rede pública de serviços de cultura, ancoradas numa estabilidade que permita o desenvolvimento de planos de ação plurianuais e, finalmente, à normalização das relações do Estado com os agentes independentes”.

Normalização, escala, estabilidade, planos plurianuais, regras claras de gestão. Algum destes princípios integrou o novo modelo?

Como Augusto M. Seabra já deixou claro, a relação entre o setor e a tutela direta ficou em fanicos e foi transferida para o primeiro-ministro que garantiu já, seja à Comissão Informal de Artistas ou ao CENA-STE, a reformulação do modelo após a conclusão da atual fase concursos, algo que o Secretário de Estado recusava liminarmente no início da contestação. Normalização, zero. Sem acréscimo de verbas, o modelo não garantia sequer que as capitais de distrito tinham estruturas de teatro e música em funcionamento. Escala, zero. Depois de um ano de suspensão, os concursos foram lançados com atraso, colocando já em causa a programação de algumas estruturas mesmo com o reforço de verbas. Estabilidade, zero. E os critérios de avaliação de gestão das candidaturas foi precisamente um dos factores mais discrionários na avaliação das candidaturas. Regras claras, zero.

A contestação que “salvou” o modelo?

Quando a atriz Inês Pereira surge na gala da SPA , a 20 de março, a criticar a precariedade e instabilidade que se iria perpetuar com o novo modelo, eram apenas conhecidos os resultados preliminares dos programas de Artes Visuais e Cruzamentos Disciplinares de 14 de março, onde estruturas como o C.E.M. e o Circolando foram excluídas de financiamento. As críticas ao novo modelo começavam logo nas atas dos júris dos próprios concursos, que alertavam para o facto de os “montantes disponíveis para financiamento” serem “desajustados face à qualidade e diversidade das candidaturas submetidas a concurso e aos montantes solicitados para apoio”, ou simplesmente que “face à qualidade e diversidade das candidaturas” as verbas inscritas “são insuficientes”.

Luísa Moreira e José Luís Ferreira, para nomear apenas duas pessoas, publicaram artigos de opinião onde criticaram diretamente o novo modelo, com problemas que não são desmentidos até hoje.

O primeiro-ministro - e não o Secretário de Estado da Cultura - reage a 20 de março anunciando o primeiro reforço de verba, de 15 para 16,5 milhões de euros, seguindo de um reforço de 500 mil euros da própria Direção-Geral das Artes.

Logo a seguir, a REDE declara publicamente que "o Novo Modelo de Apoio às Artes em que se integram os atuais concursos de apoio sustentado não corrige o anterior em aspetos fulcrais e não está suportado numa clara política cultural que o enquadre, revelando-se tecnicamente inadequado para garantir uma justa e correta atribuição de apoios ao setor artístico."

Até ao segundo momento de mediatização da contestação a 26 de março - com Nuno Lopes nos prémios Sophia a declarar “um país sem Cultura não é um país, é um lugar vazio” - o Secretário de Estado não apresentou qualquer intenção de reformular o modelo.

A PERFORMART publica a 27 de março uma "carta aberta ao primeiro-ministro" onde exigem a "reposição imediata dos montantes de 2009 para o poio às artes, cerca 19,9 milhões de euros. Percebe-se porquê. Se os resultados dos Cruzamentos Disciplinares indicavam problemas, adivinhava-se o desastre dos resultados na área do Teatro, que se confirmaram no dia 30 de março. Daí até às manifestações de 6 de abril em várias cidades do país, foi um salto que o novo reforço do primeiro-ministro a 5 de abril não conseguiu impedir.

O manifesto dos atores indignados promove, a 31 de março, a criação da Comissão Informal de Artistas, que exigem uma reunião com o primeiro-ministro, realizada a 12 de abril onde obtêm garantias de que o modelo de apoios às artes será revisto após a conclusão do atual processo concursal.

Com as manifestações, o novo modelo de apoios às artes não implodiu, mas prescreveu. Mantém-se apenas porque não há outro modelo possível em tempo útil, o que corresponde à situação política do Ministro e Secretário de Estado da Cultura.

Com as manifestações, o novo modelo de apoios às artes não implodiu, mas prescreveu. Mantém-se apenas porque não há outro modelo possível em tempo útil, o que corresponde à situação política do Ministro e Secretário de Estado da Cultura.

Este dossier é dedicado ao período entre 14 de março e 15 de abril, entre os primeiros resultados do novo modelo de apoios às artes e a sua prescrição, reunindo os principais comunicados e textos das diferentes estruturas. Analisamos o problema político que levou à crise, Luísa Moreira explica os defeitos do próprio modelo, e apontamos possíveis soluções através da criação de um programa próprio de financiamento e programação dos teatros e cine-teatros municipais. Pedro Rodrigues olha para os orçamentos da Cultura, Mariana Mortágua dá perspetiva comparada, Jorge Campos relembra os cortes sucessivos e acumulados no setor, e Amarílis Felizes fala sobre as manifestações de 6 de abril.

A desculpa fácil é mais ou menos sempre a mesma: a cada nova edição dos concursos plurianuais, os artistas berram, recebem os subsídios e vão para casa. A realidade é bastante diferente.

Numa defesa pessoal e honesta de Miguel Honrado, Jorge Salavisa critica todo o setor pela "hipocrisia" de ter ficado calado durante a construção do novo modelo de apoios às artes e, agora, por criticar o modelo. E está errado.

As críticas ao modelo de apoios às artes existem desde a sua primeira versão nos anos noventa, bem como propostas para a sua remodelação. E lamento, mas a pretensa discussão para o "novo modelo" não passaram de reuniões onde a tutela falou sem apresentar um único documento concreto, ou revelar exatamente o que significaria o novo modelo. E ainda assim, houve críticas e avisos desde julho de 2017.

Não se conhece nenhum ensaio ou posição pública do atual Secretário de Estado sobre o assunto antes de assumir funções, mas foi um dos signatários da carta “Cultura e Futuro”, que juntou o setor em 2012 no Teatro São Luiz.

Como texto de defesa de políticas públicas de Cultura num contexto de ataque austeritário, a carta não se entrava no debate específico dos apoios às artes, mas terminava com uma referência dedicada: [Uma política cultural] “deverá, no entanto, transcender essa dimensão orçamental, conferindo prioridade à articulação de responsabilidades entre o Estado central e as Autarquias, à enunciação de prioridades no restabelecimento de um tecido criativo com um mínimo de escala e de capacidade de desenvolvimento de projetos, à definição clara de regras de gestão independente da rede pública de serviços de cultura, ancoradas numa estabilidade que permita o desenvolvimento de planos de ação plurianuais e, finalmente, à normalização das relações do Estado com os agentes independentes”.

Normalização, escala, estabilidade, planos plurianuais, regras claras de gestão. Algum destes princípios integrou o novo modelo?

Como Augusto M. Seabra já deixou claro, a relação entre o setor e a tutela direta ficou em fanicos e foi transferida para o primeiro-ministro que garantiu já, seja à Comissão Informal de Artistas ou ao CENA-STE, a reformulação do modelo após a conclusão da atual fase concursos, algo que o Secretário de Estado recusava liminarmente no início da contestação. Normalização, zero. Sem acréscimo de verbas, o modelo não garantia sequer que as capitais de distrito tinham estruturas de teatro e música em funcionamento. Escala, zero. Depois de um ano de suspensão, os concursos foram lançados com atraso, colocando já em causa a programação de algumas estruturas mesmo com o reforço de verbas. Estabilidade, zero. E os critérios de avaliação de gestão das candidaturas foi precisamente um dos factores mais discrionários na avaliação das candidaturas. Regras claras, zero.

A contestação que “salvou” o modelo?

Quando a atriz Inês Pereira surge na gala da SPA , a 20 de março, a criticar a precariedade e instabilidade que se iria perpetuar com o novo modelo, eram apenas conhecidos os resultados preliminares dos programas de Artes Visuais e Cruzamentos Disciplinares de 14 de março, onde estruturas como o C.E.M. e o Circolando foram excluídas de financiamento. As críticas ao novo modelo começavam logo nas atas dos júris dos próprios concursos, que alertavam para o facto de os “montantes disponíveis para financiamento” serem “desajustados face à qualidade e diversidade das candidaturas submetidas a concurso e aos montantes solicitados para apoio”, ou simplesmente que “face à qualidade e diversidade das candidaturas” as verbas inscritas “são insuficientes”.

Luísa Moreira e José Luís Ferreira, para nomear apenas duas pessoas, publicaram artigos de opinião onde criticaram diretamente o novo modelo, com problemas que não são desmentidos até hoje.

O primeiro-ministro - e não o Secretário de Estado da Cultura - reage a 20 de março anunciando o primeiro reforço de verba, de 15 para 16,5 milhões de euros, seguindo de um reforço de 500 mil euros da própria Direção-Geral das Artes.

Logo a seguir, a REDE declara publicamente que "o Novo Modelo de Apoio às Artes em que se integram os atuais concursos de apoio sustentado não corrige o anterior em aspetos fulcrais e não está suportado numa clara política cultural que o enquadre, revelando-se tecnicamente inadequado para garantir uma justa e correta atribuição de apoios ao setor artístico."

Até ao segundo momento de mediatização da contestação a 26 de março - com Nuno Lopes nos prémios Sophia a declarar “um país sem Cultura não é um país, é um lugar vazio” - o Secretário de Estado não apresentou qualquer intenção de reformular o modelo.

A PERFORMART publica a 27 de março uma "carta aberta ao primeiro-ministro" onde exigem a "reposição imediata dos montantes de 2009 para o poio às artes, cerca 19,9 milhões de euros. Percebe-se porquê. Se os resultados dos Cruzamentos Disciplinares indicavam problemas, adivinhava-se o desastre dos resultados na área do Teatro, que se confirmaram no dia 30 de março. Daí até às manifestações de 6 de abril em várias cidades do país, foi um salto que o novo reforço do primeiro-ministro a 5 de abril não conseguiu impedir.

O manifesto dos atores indignados promove, a 31 de março, a criação da Comissão Informal de Artistas, que exigem uma reunião com o primeiro-ministro, realizada a 12 de abril onde obtêm garantias de que o modelo de apoios às artes será revisto após a conclusão do atual processo concursal.

Com as manifestações, o novo modelo de apoios às artes não implodiu, mas prescreveu. Mantém-se apenas porque não há outro modelo possível em tempo útil, o que corresponde à situação política do Ministro e Secretário de Estado da Cultura.

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