portugal dos pequeninos: O VERDADEIRO CRISTO-REI

15-12-2019
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Por natureza, não existem "intimidades" com pessoas como Sócrates. Dar capa a uma revista com o adjectivo "íntimo" referindo-se ao primeiro-ministro equivale, em muito mau, a uma espécie panfletária de "Férias com Salazar" da Garnier. E que de "íntimo" tem Sócrates para nos revelar? Desde logo o velho cliché de George Harrison repetido à náusea e com evidente falsa modéstia: "felicidade é abrir os jornais e não falarem de nós." Alguém acredita nisto, vindo do expoente da maior máquina de propaganda instalada no regime em trinta e cinco anos de "democracia"? A coisa começa bucólica, como numa redacção da antiga terceira classe.«A Banda de Murça encaixa-se num cafezito da vila. Faltam poucos minutos para as 09h30. Os músicos mais novos entabulam conversas de adolescente na esplanada. Eles e elas de óculos escuros, aqueles óculos escuros que absorvem quase toda a expressividade ao rosto, de tão generosos na massa com que são concebidos.» Pouco depois, o êxtase. «Vem aí!» O povo aperta-se. Sócrates sai pela porta direita do Volkswagen Phaeton V10, o ministro Pedro Silva Pereira aparece pela outra. Mas o povo só quer saber do primeiro. «Batam palmas ao home! Atão ninguém bate palmas ao home?», indigna-se uma vitaminada anciã. «Eu até batia, mas não posso...», encolhe-se um jovem a seu lado. O braço que carrega ao peito pode ser aceite como atenuante.» O admirável líder é, na prosa bajulatória, «um profissional do ósculo. E são várias as mulheres que, armadas de vontade, desembainham as espadas e derrubam quem quer que se atravesse entre os seus lábios e a face rosa do secretário-geral do PS.» Até eu me comovo com estas túrgidas manifestações de ternura político-religiosa. Mas há mais. «Abundam vocábulos como «magnânimo», «magnífico» e «extraordinário» na voz do cacique local do PS e presidente da autarquia. E ele? Bem, ele é mais "modesto". «Ando pelo país com grande à-vontade», confidencia-nos o secretário-geral socialista, já dentro do carro, a caminho de Vila Real. Diz que não costuma ser brindado com muitos impropérios nas suas deslocações privadas ao cinema, ao teatro e aos restaurantes. Embora às vezes ouça mensagens indecorosas.» E "humano". «Sócrates entra no Volkswagen e a sua personalidade quase se altera. «Ricardo, dás-me uma pastilha elástica, por favor?» O motorista estica-se e tira uma caixa do porta-luvas. Sócrates contempla a paisagem, espia constantemente o Nokia de última geração («adoro gadgets...») e boceja com alguma frequência. Não consegue disfarçar o cansaço. É quase todos os dias assim. «Normalmente levanto-me muito cedo», afiança.» Ele, o nosso Cristo-Rei da modernidade, vela por nós e crucifixa-se por nós. «Nos momentos difíceis, é importante estar à frente da batalha.» E os momentos têm sido difíceis. «Não há ninguém no activo que tenha vivido uma situação semelhante.» Mas, logo de seguida, o nosso "Cristo" aparece numa estação de serviço para beber um café e passar pela bruxa Maya. «Sócrates surpreende o empregado de balcão, que fica meio embasbacado. «Um cafezinho, por favor.» Mesmo em mangas de camisa e pose descontraída, o primeiro-ministro faz-se notar. Particularmente a duas mulheres, mãe e filha («a minha mãe tem 88 anos e adora-o», diz a primeira da segunda), que abandonam o carro na fila do abastecimento só para o cumprimentar. A filha mais contida, a mãe nem por isso: «Não perco um programa seu.» Segue-se uma coincidência feliz. «Sócrates encontra, depois, um conterrâneo, amigo de um amigo. «O Quim Barros? Você é amigo do Quim Barros?» Luís Bernardo, o assessor de imprensa, e Almeida Ribeiro, o chefe de gabinete, riem-se, cá fora: «Juramos que nada disto foi preparado ou encenado.» Portugal é que é pequeno.» Não é pequeno. É pequenino. Demasiado pequenino. De tal forma que não falta o "momento-farsa". «Mantém o vício da filosofia. Mas o actual momento presta-se a outras literaturas. «Ando a ler uma obra muito interessante, chamada A Ascensão do Dinheiro, de Niall Fergusson.» Ou o "momento-bola", sempre do agrado da massa distraída. «Sócrates é do Benfica. Mas não se diz apaixonado pelo futebol. O seu craque preferido é Pablo Aimar, mas o clube que mais aprecia é o FC Porto. «Tem feito um grande campeonato. É a única equipa que dá gosto ver jogar.» E o Benfica, como sai o Benfica da crise? «Há tantos treinadores de bancada que não me atrevo a contribuir para essa indústria tão produtiva.» É do Benfica, mas o que mais aprecia é o FCP. Até na bola, a relação com a verdade é retorcida. «A minha qualidade de vida declinou muito desde os tempos em que era feliz», remata o admirável líder. A nossa também. Sobretudo desde que ele desceu à terra.Adenda:«O artigo dá para perceber o que vão ser os próximos tempos de comunicação política de um novo José Sócrates, subitamente humanizado - de que já sabíamos ter "arrepios" e "insónias" -, um homem como todos nós. A encenação tem sido conduzida com mestria inegável, ou não fosse o PS servido por aquela que é provavelmente a mais eficaz de todas as agências de comunicação em Portugal - refiro-me à LPM de Luís Paixão Martins. Na mesma linha, uma revista cor-de-rosa dava esta semana capa e manchete à mudança de domícilio "íntimo" de Sócrates, servida com fotografia do secretário-geral do PS a andar na rua do prédio onde agora supostamente vive com a namorada - que também se via à porta do mesmo edifício - para assim manter momentos só seus, de "privacidade" tornada pública. Somando isto a um casamento pré-anunciado, temos todos os condimentos de uma nova fase da política à portuguesa - a vida supostamente privada do primeiro-ministro, fornecida a todos os portugueses por spins e profissionais da comunicação como novela em episódios rigorosamente encenados e produzidos. Depois não se queixem.» (Paulo Pinto Mascarenhas)


Por natureza, não existem "intimidades" com pessoas como Sócrates. Dar capa a uma revista com o adjectivo "íntimo" referindo-se ao primeiro-ministro equivale, em muito mau, a uma espécie panfletária de "Férias com Salazar" da Garnier. E que de "íntimo" tem Sócrates para nos revelar? Desde logo o velho cliché de George Harrison repetido à náusea e com evidente falsa modéstia: "felicidade é abrir os jornais e não falarem de nós." Alguém acredita nisto, vindo do expoente da maior máquina de propaganda instalada no regime em trinta e cinco anos de "democracia"? A coisa começa bucólica, como numa redacção da antiga terceira classe.«A Banda de Murça encaixa-se num cafezito da vila. Faltam poucos minutos para as 09h30. Os músicos mais novos entabulam conversas de adolescente na esplanada. Eles e elas de óculos escuros, aqueles óculos escuros que absorvem quase toda a expressividade ao rosto, de tão generosos na massa com que são concebidos.» Pouco depois, o êxtase. «Vem aí!» O povo aperta-se. Sócrates sai pela porta direita do Volkswagen Phaeton V10, o ministro Pedro Silva Pereira aparece pela outra. Mas o povo só quer saber do primeiro. «Batam palmas ao home! Atão ninguém bate palmas ao home?», indigna-se uma vitaminada anciã. «Eu até batia, mas não posso...», encolhe-se um jovem a seu lado. O braço que carrega ao peito pode ser aceite como atenuante.» O admirável líder é, na prosa bajulatória, «um profissional do ósculo. E são várias as mulheres que, armadas de vontade, desembainham as espadas e derrubam quem quer que se atravesse entre os seus lábios e a face rosa do secretário-geral do PS.» Até eu me comovo com estas túrgidas manifestações de ternura político-religiosa. Mas há mais. «Abundam vocábulos como «magnânimo», «magnífico» e «extraordinário» na voz do cacique local do PS e presidente da autarquia. E ele? Bem, ele é mais "modesto". «Ando pelo país com grande à-vontade», confidencia-nos o secretário-geral socialista, já dentro do carro, a caminho de Vila Real. Diz que não costuma ser brindado com muitos impropérios nas suas deslocações privadas ao cinema, ao teatro e aos restaurantes. Embora às vezes ouça mensagens indecorosas.» E "humano". «Sócrates entra no Volkswagen e a sua personalidade quase se altera. «Ricardo, dás-me uma pastilha elástica, por favor?» O motorista estica-se e tira uma caixa do porta-luvas. Sócrates contempla a paisagem, espia constantemente o Nokia de última geração («adoro gadgets...») e boceja com alguma frequência. Não consegue disfarçar o cansaço. É quase todos os dias assim. «Normalmente levanto-me muito cedo», afiança.» Ele, o nosso Cristo-Rei da modernidade, vela por nós e crucifixa-se por nós. «Nos momentos difíceis, é importante estar à frente da batalha.» E os momentos têm sido difíceis. «Não há ninguém no activo que tenha vivido uma situação semelhante.» Mas, logo de seguida, o nosso "Cristo" aparece numa estação de serviço para beber um café e passar pela bruxa Maya. «Sócrates surpreende o empregado de balcão, que fica meio embasbacado. «Um cafezinho, por favor.» Mesmo em mangas de camisa e pose descontraída, o primeiro-ministro faz-se notar. Particularmente a duas mulheres, mãe e filha («a minha mãe tem 88 anos e adora-o», diz a primeira da segunda), que abandonam o carro na fila do abastecimento só para o cumprimentar. A filha mais contida, a mãe nem por isso: «Não perco um programa seu.» Segue-se uma coincidência feliz. «Sócrates encontra, depois, um conterrâneo, amigo de um amigo. «O Quim Barros? Você é amigo do Quim Barros?» Luís Bernardo, o assessor de imprensa, e Almeida Ribeiro, o chefe de gabinete, riem-se, cá fora: «Juramos que nada disto foi preparado ou encenado.» Portugal é que é pequeno.» Não é pequeno. É pequenino. Demasiado pequenino. De tal forma que não falta o "momento-farsa". «Mantém o vício da filosofia. Mas o actual momento presta-se a outras literaturas. «Ando a ler uma obra muito interessante, chamada A Ascensão do Dinheiro, de Niall Fergusson.» Ou o "momento-bola", sempre do agrado da massa distraída. «Sócrates é do Benfica. Mas não se diz apaixonado pelo futebol. O seu craque preferido é Pablo Aimar, mas o clube que mais aprecia é o FC Porto. «Tem feito um grande campeonato. É a única equipa que dá gosto ver jogar.» E o Benfica, como sai o Benfica da crise? «Há tantos treinadores de bancada que não me atrevo a contribuir para essa indústria tão produtiva.» É do Benfica, mas o que mais aprecia é o FCP. Até na bola, a relação com a verdade é retorcida. «A minha qualidade de vida declinou muito desde os tempos em que era feliz», remata o admirável líder. A nossa também. Sobretudo desde que ele desceu à terra.Adenda:«O artigo dá para perceber o que vão ser os próximos tempos de comunicação política de um novo José Sócrates, subitamente humanizado - de que já sabíamos ter "arrepios" e "insónias" -, um homem como todos nós. A encenação tem sido conduzida com mestria inegável, ou não fosse o PS servido por aquela que é provavelmente a mais eficaz de todas as agências de comunicação em Portugal - refiro-me à LPM de Luís Paixão Martins. Na mesma linha, uma revista cor-de-rosa dava esta semana capa e manchete à mudança de domícilio "íntimo" de Sócrates, servida com fotografia do secretário-geral do PS a andar na rua do prédio onde agora supostamente vive com a namorada - que também se via à porta do mesmo edifício - para assim manter momentos só seus, de "privacidade" tornada pública. Somando isto a um casamento pré-anunciado, temos todos os condimentos de uma nova fase da política à portuguesa - a vida supostamente privada do primeiro-ministro, fornecida a todos os portugueses por spins e profissionais da comunicação como novela em episódios rigorosamente encenados e produzidos. Depois não se queixem.» (Paulo Pinto Mascarenhas)

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