Fragmentos de bondade

14-03-2020
marcar artigo

 

Maria Ondina

A arte de retratar, seja qual for o ramo de expressão artística, a forma de composição,
o modelo, a técnica e os materiais escolhidos para o efeito, desde as origens
aos tempos em que o curso da história lhe deu relevo e importância, mas o certo
é que muito terá ficado por dizer, tantos são os rostos num rosto, e infinitas
as variáveis do processo, que faz do retrato o objecto preferido por excelência
pelo autor desta exposição.

Sabendo, quem é o retratado, o que retrata (pintor, escultor, fotógrafo)
não pode dar como adquirida a verdade, de que conhece o essencial da
personalidade que pretende retratar, porque a verdade do retratado, marcada
pela improbabilidade do acto criador, será sempre uma verdade cruzada e centrada
na tentativa de restituição de si próprio sobre o modelo, aquilo que o artista
regista ou elege como essência do rosto retratado para esse fim.

Na sequência do percurso artístico orientado para a necessidade de
realização que, do ponto de vista ético, e estético, tem como objectivo
aproximar-se humanamente do retratado, de acordo com a gramática da criação do
autor.

Hélder
Carvalho, não temeu abraçar um dos mais árduos conceitos de modernidade,
norteou-se por princípios que, não só se têm revelado fundamentais para a
exaltação da generosidade criativa, como deles são fundamento da linha desse
"prever para prover", do ofício e do artista que é, o indefectível
curador da memória histórica profunda, que o torna sujeito activo da
contemporaneidade e da geração a que pertence.

Como noutras exposições, como noutros espaços, a amostra, dada a público na
cidade, que Francisco Sanches inscreveu nos univer­sos da ciência e do saber,
constitui um momento privilegiado de convivência com as personalidades mais
destacadas da vida intelectual e artística portuguesa, tais como: Florbela
Espanca, Miguel Torga, Sophia de Mello Brainer, Eugénio de Andrade, Camilo
Pessanha e Natália Correia, na literatura; Teixeira Lopes,
Paula Rego e José
Rodrigues, na pintura e escultura; Guilhermina Suggia, violoncelista; Emanuel
Nunes e Siza Vieira, na composição musical e na arquitectura, respectivamente;
Manoel Oliveira, no cinema; D. Manuel Clemente, proeminente figura do
episcopado português; José Saramago e Amália Rodrigues, representante, entre
nós e além-fronteiras, do que de melhor tem sido dado a conhecerem de Portugal
ao mundo, nos domínios da erudição literária do fado, canção nacional
reconhecida como património da humanidade. Tomando a arte do retrato como via
de acesso ao conheci­mento humano e valorização do homem, corajosa opção
artística, numa época ameaçada pela devastação de legados confrontados com o
crescente "desterro da essência da humanidade", que George Steiner
atribui à "barbárie política" e à "servidão tecnocrática"
actuais.

Não deixo
de reconhecer em que medida o trabalho do escultor, do pintor, continua a
dignificar o destino artístico que, sendo seu, é afinal de todos nós, abrindo
uma frente de resistência ao que, simulando ser verdade, se compraz em fazer:
da aparência, real; e, da falta de alterna­tivas, debilidade contributiva da
falsificação da história do conhecimen­to, firmada no simulacro, que o autor de
Presenças Reais, qualificou sem hesitar de: "pornografia da
insignificância".

Assumido arauto de um humanismo conquistado à medida do homem, e do ser, Hélder
Carvalho confirma, assim, por inteiro, essa rara e desinter­essada (pequena)
grandeza do artista, que aprendeu a fazer do seu plano criador um passo para
conferir à humanidade o que, tantas vezes, esquecemos, enquanto seres dotados
de finalidade, e mais do que isso, constituídos essencialmente por ela.

Há,
porém, na arte do relato, uma inegável e inquietante verdade - a de que
"somos seres olhados", e isso não se explica, não tem porquê, nasce e
floresce, em cada primavera, como a Rosa de Silesius.
Exposição a não perder na Casa dos Crivos, Braga. Não perca a oportunidade de
ver esta excelente exposição.

ajoVê

 

Maria Ondina

A arte de retratar, seja qual for o ramo de expressão artística, a forma de composição,
o modelo, a técnica e os materiais escolhidos para o efeito, desde as origens
aos tempos em que o curso da história lhe deu relevo e importância, mas o certo
é que muito terá ficado por dizer, tantos são os rostos num rosto, e infinitas
as variáveis do processo, que faz do retrato o objecto preferido por excelência
pelo autor desta exposição.

Sabendo, quem é o retratado, o que retrata (pintor, escultor, fotógrafo)
não pode dar como adquirida a verdade, de que conhece o essencial da
personalidade que pretende retratar, porque a verdade do retratado, marcada
pela improbabilidade do acto criador, será sempre uma verdade cruzada e centrada
na tentativa de restituição de si próprio sobre o modelo, aquilo que o artista
regista ou elege como essência do rosto retratado para esse fim.

Na sequência do percurso artístico orientado para a necessidade de
realização que, do ponto de vista ético, e estético, tem como objectivo
aproximar-se humanamente do retratado, de acordo com a gramática da criação do
autor.

Hélder
Carvalho, não temeu abraçar um dos mais árduos conceitos de modernidade,
norteou-se por princípios que, não só se têm revelado fundamentais para a
exaltação da generosidade criativa, como deles são fundamento da linha desse
"prever para prover", do ofício e do artista que é, o indefectível
curador da memória histórica profunda, que o torna sujeito activo da
contemporaneidade e da geração a que pertence.

Como noutras exposições, como noutros espaços, a amostra, dada a público na
cidade, que Francisco Sanches inscreveu nos univer­sos da ciência e do saber,
constitui um momento privilegiado de convivência com as personalidades mais
destacadas da vida intelectual e artística portuguesa, tais como: Florbela
Espanca, Miguel Torga, Sophia de Mello Brainer, Eugénio de Andrade, Camilo
Pessanha e Natália Correia, na literatura; Teixeira Lopes,
Paula Rego e José
Rodrigues, na pintura e escultura; Guilhermina Suggia, violoncelista; Emanuel
Nunes e Siza Vieira, na composição musical e na arquitectura, respectivamente;
Manoel Oliveira, no cinema; D. Manuel Clemente, proeminente figura do
episcopado português; José Saramago e Amália Rodrigues, representante, entre
nós e além-fronteiras, do que de melhor tem sido dado a conhecerem de Portugal
ao mundo, nos domínios da erudição literária do fado, canção nacional
reconhecida como património da humanidade. Tomando a arte do retrato como via
de acesso ao conheci­mento humano e valorização do homem, corajosa opção
artística, numa época ameaçada pela devastação de legados confrontados com o
crescente "desterro da essência da humanidade", que George Steiner
atribui à "barbárie política" e à "servidão tecnocrática"
actuais.

Não deixo
de reconhecer em que medida o trabalho do escultor, do pintor, continua a
dignificar o destino artístico que, sendo seu, é afinal de todos nós, abrindo
uma frente de resistência ao que, simulando ser verdade, se compraz em fazer:
da aparência, real; e, da falta de alterna­tivas, debilidade contributiva da
falsificação da história do conhecimen­to, firmada no simulacro, que o autor de
Presenças Reais, qualificou sem hesitar de: "pornografia da
insignificância".

Assumido arauto de um humanismo conquistado à medida do homem, e do ser, Hélder
Carvalho confirma, assim, por inteiro, essa rara e desinter­essada (pequena)
grandeza do artista, que aprendeu a fazer do seu plano criador um passo para
conferir à humanidade o que, tantas vezes, esquecemos, enquanto seres dotados
de finalidade, e mais do que isso, constituídos essencialmente por ela.

Há,
porém, na arte do relato, uma inegável e inquietante verdade - a de que
"somos seres olhados", e isso não se explica, não tem porquê, nasce e
floresce, em cada primavera, como a Rosa de Silesius.
Exposição a não perder na Casa dos Crivos, Braga. Não perca a oportunidade de
ver esta excelente exposição.

ajoVê

marcar artigo