poesia: frederico pedreira

02-09-2020
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1.

Queimei os dedos todos na

volta de uma ou outra memória,

vasculhando num livro escuro

a voz que me prometera.

Já tu, que tanto disseste, não foste

sequer uma segunda educação.

O espelho da casa, de que levaste metade:

Copiou-me todos os gestos, segredos.

Escrevo, tristeza e papel quadriculado.

Se levantar os olhos, terei

a sombra corcunda, as orelhas de burro:

nunca verás palácios nos sulcos da parede.

Vira a página, faz um verso igual ao outro.

Entende: não há cura para este consolo.

2.

Tento subtrair-me ao frio

dos dias, pequenos golpes

impronunciáveis, outrora

carícias, coisas antigas.

Pondero a misteriosa

engrenagem de tudo

o que sempre pareceu

estanque na alvorada:

o nevoeiro com o seu riso,

o copo num soluço de pó,

deixado à cabeceira, o meu

corpo apagado a um canto.

3.

Uma manhã de Outono.

Donzel, peço-te: veste o fato,

a camisa gasta no colarinho,

calças demasiado largas,

depois os sapatos descosidos.

A casa sossegada

sempre que não estás aqui.

Em cima da cómoda, os frascos

dos comprimidos, alguns abertos.

Evita arreganhar os dentes:

este dia não tem um começo real.

O que poderá acontecer hoje

que faça de ti uma coisa diferente?

Estarás sozinho quando mais logo

o fogo voltar a falar em casa.

Espero que caias de borco,

que lamentes tudo o que

ouviste dos outros passageiros,

dos tolos de luz, dos que

nunca mais tropeçam na armadilha.

Que faças essa cinza a tua ceia.

E de seguida cospe, cospe inteiro –

como um cão invariável, faminto.

frederico pedreira

presa comum

voo rasante

antologia de poesia contemporânea

mariposa azual

2015

1.

Queimei os dedos todos na

volta de uma ou outra memória,

vasculhando num livro escuro

a voz que me prometera.

Já tu, que tanto disseste, não foste

sequer uma segunda educação.

O espelho da casa, de que levaste metade:

Copiou-me todos os gestos, segredos.

Escrevo, tristeza e papel quadriculado.

Se levantar os olhos, terei

a sombra corcunda, as orelhas de burro:

nunca verás palácios nos sulcos da parede.

Vira a página, faz um verso igual ao outro.

Entende: não há cura para este consolo.

2.

Tento subtrair-me ao frio

dos dias, pequenos golpes

impronunciáveis, outrora

carícias, coisas antigas.

Pondero a misteriosa

engrenagem de tudo

o que sempre pareceu

estanque na alvorada:

o nevoeiro com o seu riso,

o copo num soluço de pó,

deixado à cabeceira, o meu

corpo apagado a um canto.

3.

Uma manhã de Outono.

Donzel, peço-te: veste o fato,

a camisa gasta no colarinho,

calças demasiado largas,

depois os sapatos descosidos.

A casa sossegada

sempre que não estás aqui.

Em cima da cómoda, os frascos

dos comprimidos, alguns abertos.

Evita arreganhar os dentes:

este dia não tem um começo real.

O que poderá acontecer hoje

que faça de ti uma coisa diferente?

Estarás sozinho quando mais logo

o fogo voltar a falar em casa.

Espero que caias de borco,

que lamentes tudo o que

ouviste dos outros passageiros,

dos tolos de luz, dos que

nunca mais tropeçam na armadilha.

Que faças essa cinza a tua ceia.

E de seguida cospe, cospe inteiro –

como um cão invariável, faminto.

frederico pedreira

presa comum

voo rasante

antologia de poesia contemporânea

mariposa azual

2015

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