poesia: ana luísa amaral

02-09-2020
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Sagrei-os, aos meus filhos.

Fiz o que era esperado de mim,

mas a minha lembrança era do avesso,

para o futuro,

e estava toda nas rosas

que o tempo haveria de trazer,

em forma das guerras do meu país.

Dessas guerras me lembro,

mas nunca cheguei a ver a guerra

que a ambição e os sonhos lhes doaram.

Sagrei-os na minha mente,

antecipando o gesto de outra

que teria o meu nome.

Nesse dia, de manhã cedo,

era ainda escuro, e no quarto,

mesmo descerradas as cortinas,

quase não entrava a luz.

As aias ajudaram-me a vestir, e eu,

como sempre acontecia depois de acordar

e enquanto não chegavam as horas do dever,

lembrei-me do meu pai, do meu país,

dos seus campos muito verdes atravessados

por rebanhos, da chuva do meu país,

tão contínua como as minhas saudades.

Quando acabei as recordações

e o choro de silêncio,

chamei-os na minha mente.

A todos ofereci prendas.

Ao primeiro dei um ceptro

enfeitado de papel e de palavras,

ao segundo, uma espada

de aço brilhante,

ao terceiro, o gosto pelo mundo,

e ao último contei-lhe o caminho de

água verde e espuma alta

por onde eu tinha chegado;

mostrei-lhe o mar,

ao longo das muitas tardes

em que eu própria sonhava

com as margens que havia deixado

para trás.

Se pudesse sentar-me novamente

junto àquela janela,

a espada brilhante que dei a esse meu segundo filho

tê-la-ia transformado em arado,

ou em pequena lamparina,

porque, ao dar-lhe a espada,

dei-lhe também o resto de matar e de morrer.

Antes lhe tivesse dito vezes sem conta como é belo o mundo

e poder falar dentro dele.

Ou antes lhe tivesse mostrado só o mar,

como fiz com esse filho

junto de quem me cansava

das saudades da minha terra.

Uma prenda, porém, me é boa na memória:

a do papel e das palavras. Dispensaria o ceptro,

mas era ele que segurava palavras e papel.

Dessa prenda não me arrependo,

e quase me regozijo um pouco

por aquilo que fiz nessa manhã fria e escura

em que os chamei aos quatro

para junto da minha mente

e do meu coração.

Mas o que fizeram de mim,

naquele dia há tantos anos, quando, quase menina,

me ajudaram a subir para o bote

e depois para o navio

que me haveria de levar a uma terra que eu não conhecia,

a uma língua que não era a minha língua?

Onde ficaram as minhas tardes molhadas de chuva?

E a memória que de mim ficou,

porque não fala ela dos meus campos verdes

e das sombras dos rebanhos que os atravessavam?

Porque me nega essa memória

as rosas que, em futuro,

e ditas como guerra,

haveriam de dizimar tanta da minha gente?

Por que outra noite trocaram

o meu escuro?

ana luísa amaral

vozes

dom quixote

2011

  

Sagrei-os, aos meus filhos.

Fiz o que era esperado de mim,

mas a minha lembrança era do avesso,

para o futuro,

e estava toda nas rosas

que o tempo haveria de trazer,

em forma das guerras do meu país.

Dessas guerras me lembro,

mas nunca cheguei a ver a guerra

que a ambição e os sonhos lhes doaram.

Sagrei-os na minha mente,

antecipando o gesto de outra

que teria o meu nome.

Nesse dia, de manhã cedo,

era ainda escuro, e no quarto,

mesmo descerradas as cortinas,

quase não entrava a luz.

As aias ajudaram-me a vestir, e eu,

como sempre acontecia depois de acordar

e enquanto não chegavam as horas do dever,

lembrei-me do meu pai, do meu país,

dos seus campos muito verdes atravessados

por rebanhos, da chuva do meu país,

tão contínua como as minhas saudades.

Quando acabei as recordações

e o choro de silêncio,

chamei-os na minha mente.

A todos ofereci prendas.

Ao primeiro dei um ceptro

enfeitado de papel e de palavras,

ao segundo, uma espada

de aço brilhante,

ao terceiro, o gosto pelo mundo,

e ao último contei-lhe o caminho de

água verde e espuma alta

por onde eu tinha chegado;

mostrei-lhe o mar,

ao longo das muitas tardes

em que eu própria sonhava

com as margens que havia deixado

para trás.

Se pudesse sentar-me novamente

junto àquela janela,

a espada brilhante que dei a esse meu segundo filho

tê-la-ia transformado em arado,

ou em pequena lamparina,

porque, ao dar-lhe a espada,

dei-lhe também o resto de matar e de morrer.

Antes lhe tivesse dito vezes sem conta como é belo o mundo

e poder falar dentro dele.

Ou antes lhe tivesse mostrado só o mar,

como fiz com esse filho

junto de quem me cansava

das saudades da minha terra.

Uma prenda, porém, me é boa na memória:

a do papel e das palavras. Dispensaria o ceptro,

mas era ele que segurava palavras e papel.

Dessa prenda não me arrependo,

e quase me regozijo um pouco

por aquilo que fiz nessa manhã fria e escura

em que os chamei aos quatro

para junto da minha mente

e do meu coração.

Mas o que fizeram de mim,

naquele dia há tantos anos, quando, quase menina,

me ajudaram a subir para o bote

e depois para o navio

que me haveria de levar a uma terra que eu não conhecia,

a uma língua que não era a minha língua?

Onde ficaram as minhas tardes molhadas de chuva?

E a memória que de mim ficou,

porque não fala ela dos meus campos verdes

e das sombras dos rebanhos que os atravessavam?

Porque me nega essa memória

as rosas que, em futuro,

e ditas como guerra,

haveriam de dizimar tanta da minha gente?

Por que outra noite trocaram

o meu escuro?

ana luísa amaral

vozes

dom quixote

2011

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