poesia: jorge de sena

03-09-2020
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Senhor: não peço mais que silêncio,

o silêncio das noites de planície como enevoadas águas,

o silêncio dos montes quando a tarde acabou e as pedras

se afiam na friagem que é azul-celeste,

o silêncio do sol encarquilhando as folhas,

e o vento na areia depois de ter passado,

o silêncio das ondas ao longe espumejando tranquilas,

o silêncio das mãos e o dos olhos,

e o das aves negras que pairam nas alturas

de um céu silencioso e límpido. Não peço

mais que silêncio. O silêncio das ideias que deslizam

no tecto escorregadio da memória silente.

E o silêncio dos sonhos coloridos, e o dos outros

a preto e branco imagens desejadas

que não pensei que desejava e esqueço

ao querer lembrá-las. E o silêncio

dos sexos que se possuem sem uma palavra.

E o do amor também, tão silencioso esse,

que não sei quem amo.

Não peço mais. Afasta

de mim o estrondo: não o das cidades,

ou dos homens, das águas, do que estala

na memória ou penumbra das salas desertas.

Afasta de mim o estrondo com que a vida

se acabará contigo, num rasgar de súbito

em que ficarei inerte e silencioso. O estrondo

em que não ouvirei mais nada. O estrondo

em que não mexerei um dedo. O estrondo

em que serei desfeito. O estrondo

em que de olhos abertos

alguém mos abrirá.

Senhor: não peço mais do que o silêncio do mundo,

o silêncio dos astros, o silêncio das coisas

que outros homens fizeram, e o das coisas

que eu próprio fiz. E o teu silêncio

de senhor que foi. Não peço mais.

Não é nada o que peço. Dá-me

o silêncio. Dá-me o que não fui:

silêncio (porque calei tanto):

o que não sou (pois que calo tanto):

o que hei- de ser (já que falar não adianta):

Silêncio.

Senhor: não peço mais.

1961

jorge de sena

peregrinato ad loca infecta
(1969)

trinta anos de poesia

editorial inova

1972

Senhor: não peço mais que silêncio,

o silêncio das noites de planície como enevoadas águas,

o silêncio dos montes quando a tarde acabou e as pedras

se afiam na friagem que é azul-celeste,

o silêncio do sol encarquilhando as folhas,

e o vento na areia depois de ter passado,

o silêncio das ondas ao longe espumejando tranquilas,

o silêncio das mãos e o dos olhos,

e o das aves negras que pairam nas alturas

de um céu silencioso e límpido. Não peço

mais que silêncio. O silêncio das ideias que deslizam

no tecto escorregadio da memória silente.

E o silêncio dos sonhos coloridos, e o dos outros

a preto e branco imagens desejadas

que não pensei que desejava e esqueço

ao querer lembrá-las. E o silêncio

dos sexos que se possuem sem uma palavra.

E o do amor também, tão silencioso esse,

que não sei quem amo.

Não peço mais. Afasta

de mim o estrondo: não o das cidades,

ou dos homens, das águas, do que estala

na memória ou penumbra das salas desertas.

Afasta de mim o estrondo com que a vida

se acabará contigo, num rasgar de súbito

em que ficarei inerte e silencioso. O estrondo

em que não ouvirei mais nada. O estrondo

em que não mexerei um dedo. O estrondo

em que serei desfeito. O estrondo

em que de olhos abertos

alguém mos abrirá.

Senhor: não peço mais do que o silêncio do mundo,

o silêncio dos astros, o silêncio das coisas

que outros homens fizeram, e o das coisas

que eu próprio fiz. E o teu silêncio

de senhor que foi. Não peço mais.

Não é nada o que peço. Dá-me

o silêncio. Dá-me o que não fui:

silêncio (porque calei tanto):

o que não sou (pois que calo tanto):

o que hei- de ser (já que falar não adianta):

Silêncio.

Senhor: não peço mais.

1961

jorge de sena

peregrinato ad loca infecta
(1969)

trinta anos de poesia

editorial inova

1972

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