canção na massa do sangue

02-09-2020
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Há grandes manchas de sangue no mundo

para onde vai todo esse sangue vertido

será a terra que o bebe e com ele se embebeda

estranha bebedeira então

tão ponderada… tão monótona…

Não a terra não se embriaga

a terra não gira ao contrário

vai arrastando a sua carripana as quatro estações

a chuva… a neve…

o granizo… o bom tempo…

nunca se embebeda

só muito de longe a longe ela se permite

um mísero vulcão

A terra gira

gira com as suas árvores… os seus jardins… as suas casas…

gira com as suas poças de sangue

e todas as coisas vivas giram com ela e sangram…

Mas a terra

pouco se importa

gira e todas as coisas vivas desatam a gritar

ela pouco se importa

vai girando

sem parar

e o sangue não pára de correr…

Para onde vai todo esse sangue vertido

o sangue dos crimes… o sangue das guerras…

o sangue da miséria…

e o sangue dos homens torturados nas prisões…

o sangue das crianças calmamente torturadas pelo pai e pela

     mãe…

E o sangue dos homens que sangram da cabeça

nas celas de isolamento…

 e o sangue do trolha

quando escorrega e cai do telhado

E o sangue que brota e que corre aos borbotões

com o recém-nascido… com o filho novo…

a mãe a gritar… a criança a chorar…

o sangue corre… a terra gira

a terra não pára de girar

o sangue não pára de correr

Para onde vai todo esse sangue vertido

o sangue dos espancados… dos humilhados…

dos suicidados… dos fuzilados… dos condenados…

e o sangue daqueles que morrem assim… por acidente

Na rua passa um vivo

com todo o seu sangue lá dentro

de repente ei-lo morto

e todo o seu sangue está cá fora

e os outros vivos fazem desaparecer o sangue

levam o corpo

mas o sangue é teimoso

e lá onde estava o morto

em breve já negro

vê-se ainda um pouco de sangue…

sangue coagulado

ferrete da vida ferrete dos corpos

sangue coalhado como leite

como o leite azeda

quando gira como a terra

como a terra que gira

com o seu leite… com as suas vacas…

com os seus vivos… com os seus mortos

a terra que gira com as suas árvores… os seus vivos… as suas

     casas…

a terra que gira com os casamentos…

os enterros…

os clarins…

os regimentos… a terra que não pára de girar

com os seus grandes rios de sangue.

1936

jacques prévert

palavras

trad. manuela torres

sextante editora

2007

Há grandes manchas de sangue no mundo

para onde vai todo esse sangue vertido

será a terra que o bebe e com ele se embebeda

estranha bebedeira então

tão ponderada… tão monótona…

Não a terra não se embriaga

a terra não gira ao contrário

vai arrastando a sua carripana as quatro estações

a chuva… a neve…

o granizo… o bom tempo…

nunca se embebeda

só muito de longe a longe ela se permite

um mísero vulcão

A terra gira

gira com as suas árvores… os seus jardins… as suas casas…

gira com as suas poças de sangue

e todas as coisas vivas giram com ela e sangram…

Mas a terra

pouco se importa

gira e todas as coisas vivas desatam a gritar

ela pouco se importa

vai girando

sem parar

e o sangue não pára de correr…

Para onde vai todo esse sangue vertido

o sangue dos crimes… o sangue das guerras…

o sangue da miséria…

e o sangue dos homens torturados nas prisões…

o sangue das crianças calmamente torturadas pelo pai e pela

     mãe…

E o sangue dos homens que sangram da cabeça

nas celas de isolamento…

 e o sangue do trolha

quando escorrega e cai do telhado

E o sangue que brota e que corre aos borbotões

com o recém-nascido… com o filho novo…

a mãe a gritar… a criança a chorar…

o sangue corre… a terra gira

a terra não pára de girar

o sangue não pára de correr

Para onde vai todo esse sangue vertido

o sangue dos espancados… dos humilhados…

dos suicidados… dos fuzilados… dos condenados…

e o sangue daqueles que morrem assim… por acidente

Na rua passa um vivo

com todo o seu sangue lá dentro

de repente ei-lo morto

e todo o seu sangue está cá fora

e os outros vivos fazem desaparecer o sangue

levam o corpo

mas o sangue é teimoso

e lá onde estava o morto

em breve já negro

vê-se ainda um pouco de sangue…

sangue coagulado

ferrete da vida ferrete dos corpos

sangue coalhado como leite

como o leite azeda

quando gira como a terra

como a terra que gira

com o seu leite… com as suas vacas…

com os seus vivos… com os seus mortos

a terra que gira com as suas árvores… os seus vivos… as suas

     casas…

a terra que gira com os casamentos…

os enterros…

os clarins…

os regimentos… a terra que não pára de girar

com os seus grandes rios de sangue.

1936

jacques prévert

palavras

trad. manuela torres

sextante editora

2007

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