.... bitsounds: Lhasa de Sela

20-06-2020
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1972-09-27 - 2010-01-01

.... partiu Lhasa de Sela, uma das vozes mais emotivas que ouvi nos últimos anos
não vou esquecer a primeira vez que ouvi "El desierto", um arrepio ....

He venido al desierto pa irme de tu amor
Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor
He venido a este centro de la nada pa gritar
Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar
Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar
He venido al desierto pa irme de tu amor
Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor
He venido a este centro de la nada pa gritar
Que tú nunca mereciste

He venido yo corriendo olvidándome de ti
Dame un beso pajarillo no te asustes colibrí
He venido encendida al desierto pa quemar
Porque el alma prende fuego cuando deja de amar
Porque el alma prende fuego cuando deja de amar

He venido yo corriendo olvidándome de ti
Dame un beso pajarillo y no te asustes colibrí
He venido encendida al desierto pa quemar
Porque el alma prende fuego

He venido yo corriendo olvidándome de ti
Dame un beso pajarillo y no te asustes colibrí
He venido encendida al desierto pa quemar
Porque el alma prende fuego cuando deja de amar
Porque el alma prende fuego cuando deja de amar

He venido al desierto pa irme de tu amor
Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor
He venido a este centro de la nada pa gritar
Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar
He venido yo corriendo olvidándome de ti
Dame un beso pajarillo y no te asustes colibrí
He venido encendida al desierto pa quemar
Porque el alma prende fuego

Revista de Imprensa
Lhasa - La llorona (23-08-1998, Diário de Notícias)

"Talvez a grande revelação do circuito da "world music" no primeiro semestre deste ano , Lhasa é uma personagem digna de um filme que Wim Wenders poderia gostar de filmar, mas ao qual suplicaremos que não o faça a bem da voz que certamente o encantaria e cujas imagens transformaria em real seca. Como fez aos Madredeus, num filme que esteve longe de prestar um serviço condigno ao magnífico grupo português.Lhasa é filha do escritor mexicano Alejandro Sela e da fotógrafa norte-americana Alexandra Karam. Com os pais viveu sete anos na estrada. Sete anos a bordo de uma caravana, em busca de palavras e imagens, acompanhada pelos pais e irmãs entre caminhos alcatroados ou a terra batida entre o México e os Estados Unidos. Uma vida sem destino traçado que a levou, pela separação dos pais, a San Francisco, para onde se mudou na companhia da mãe e se estreou a cantar Billie Holliday. Tinha 17
anos, e uma voz que já era capaz de sugerir melancolia e infinita tristeza.Com uma das irmãs, muda-se, mais tarde, para o Canadá, onde conhece Yves Desrosiers. O guitarrista
personagem-gatilho num processo de descoberta de uma personalidade única iniciado numa colaboração há seis anos no Festival de Jazz de Montreal, que agora se expressa através das canções registadas no soberbo e tocante
«La Llorona».
O disco, integralmente cantado em castelhano, transporta-a para o México de seu
pai e aos dias de estrada sem fim. Em busca das palavras e das imagens da senda
incessante que acompanhava anos antes. E em «La Llorona» capta-as, num registo
de sensibilidade cortante que vive, sobretudo, de uma voz que se exige
descobrir. Uma voz que sofre, chora, encanta, sente e faz sentir.
Entre canções tradicionais mexicanas e originais embebidos em deserto e areia,
Lhasa evoca paisagens largas, grandiosas, solarengas, quentes. Personagens
estranhos, fantasmas, demónios. E tempos distantes. Tempos anteriores à
colonização espanhola, através de lendas recordadas, entre elas a que dá
titulo ao disco. A lenda de La Llorona, a esposa da serpente com penas Quetzal,
que atraía, em noites quentes, os homens às margens dos rios com cantos
melancólicos de forte carga erótica, para depois os beijar e transformar em
pedra.
Lhasa poderia ser La Llorona. A sua voz atrai, esmaga, conquista. Só não
transforma em pedra, caso contrário este texto teria sido bem mais difícil de
escrever. Nada como dedos de carne e osso com articulações à mistura.
Essencialmente paisagista, o disco transporta-nos irremediavelmente para as
latitudes que canta. Expressivas, voz e composição traçam o Mexico por linhas
de som. «El Desierto», a canção que descodifica toda a carga do canto e
música de Lhasa, é o momento do disco onde a cantora e o guitarrista canadiano
que a acompanha nesta operação mais ousam o desafio da colisão das paisagens
e tradições evocadas com o presente, num quadro que sugere imagens longas e
belas. Este será o momento onde Lhasa mais se destaca de todas as marcas da
tradição do canto das rancheras que evoca claramente em todo o disco. Um
momento que assimila e reinterpreta México, e deserto por linhas novas, suas,
estilizadas. Uma antecâmara de uma obra que certamente poderá conhecer novo e
mais ousado capítulo. " by Nuno Galopin

Lhasa - The Living Road (02-07-2004, Público)

"A estrada canta quando ela parte. Vai à cata de homens que invariavelmente a
temem, que usam facas porque a temem. E a cada abandono ela canta os homens
excessivos, a bebida excessiva, o excesso de ver excesso em tudo. Canta. Bem
demais. Canta como quem põe as vísceras na garganta. Como quem não pode
impedir que saia. Como Chavela Vargas, a grande cantora mexicana que ela tanto
gosta, Lhasa de Sela canta os amores e as quase mortes os amores de morte, canta
a estrada porque ao fim de tanto correr ela já é a própria estrada.
E porque não se dá bem com o sucesso foi trabalhar para um circo. Na verdade,
nunca esteve parada. Filha de uma americana e um mexicano, percorreu, desde
cedo, todo o México, acompanhada por uma extensa parelha de irmãs, meias-irmãs
e irmãos e meios-irmãos. Sorte deles, não havia televisão para ninguém, a
família dedicava-se a cantar pela noite dentro. Valeu-lhe uma carreira e medo.
O medo do sucesso, o medo que atrasou o segundo álbum, que nos fez esperar
cinco anos pelo segundo. E Lhasa já canta: "o futuro será melhor".
vida de circo. O ano era 1998, o disco era "Lla Llorona", aparecia-nos
uma mulher de voz arrastada mas estranhamente etérea, como se o corpo estivesse
ali mas ela escorresse entre as coisas sem ser tocada por elas, como se já não
pudesse ser tocada por elas à conta do excesso de nódoas negras. Cantava o
deserto, peixes ébrios, mulheres ciumentas, uma estranha espiritualidade
carnal, uma latinidade trágica que é mais imaginária que verdadeira, que
naquela voz era intensamente verdadeira. Não precisava de mais que isto: uma
guitarra acústica e a voz. Folk, flamenco, trejeitos de canção francesa, tudo
cantado em espanhol e muita simbologia
Agora, em "The living road", está diferente e ainda bem: resolveu de
uma penada o problema da fórmula guitarra+voz, ampliou o espectro sonoro, mas,
para o mal e para o bem, o que ela, a última das ultra-românticas, canta ainda
é o mesmo: "Gracias a tu cuerpo/voy curarme". A diferença é que por
trás, agora, está um piano numa pianíssima valsa, que dá um tom fúnebre à
esgrima dos afectos. Não, não é brincadeira. A ideia que Lhasa tem de um
homem é esta: "Llegarás mañana/ para el fin del mundo/ mañana te
mato". Olé (guarda a orelha, pequena, guarda a orelha...).
 O que é que separa "The living road" da excelente estreia?
Instrumentos. Onde antes só havia a guitarra acústica, agora há banjos,
violinos, clarinetes, violoncelos, marimbas, órgãos, pianos, theremins, rumbas
marotas, valsas decadentes, cortinas rasgadas, tiroteio de fronteira, reboliço
no celeiro à socapa.
Onde antes havia simbologias místicas ("La Llorona" é uma figura
azteca que seduz os homens para depois transformá-los em pedra, o que diz bem
do imaginário trágico/cruel/vingativo de Lhasa), agora há, mais que "storytelling",
"roleplaying".
Mas o que mais encanta nem é tanto a forma como uma história é cantada. É a
noção do espaço numa canção: o piano na valsa grave e soturna de "Para
llegar a tu lado" a funcionar como ponto para a voz - "gracias a tu
cuerpo voy curarme", canta ela, apenas isto, o piano, a voz, e nós sempre
a esperarmos que algo expluda, mas não, treme-se apenas, nunca nada rompe, vai
rasgando, devagarinho; a quase country de "Abro la ventana" em que a
slide-guitar cria um ambiente cinemático de mão no coldre e desgraça à
espreita, Lhasa a cantar sobre mãos que não voltam; e Tom Waits e Piaff a
espreitarem em "La Maree Haute" ("A estrada canta/ quando eu
parto"), ela pela entrega, ele pelos arranjos de cordas, de oboé, pelo
piano cambaleante (a sombra de Waits ainda aparece na magnífica "Anywhere
on this road" - ambiente assustador, percussão com o seu quê de tribal e
a voz em narração sorumbática; muito bom, muito bom, mesmo.)
O que mais fascina, aqui, é a noção de que Lhasa tem os trunfos na mão, que
Lhasa procura sempre e em cada jogada a carta mais alta, para depois fazer de
conta que era bluff, virar as costas e ir embora (mas não era bluff e
sabemo-lo). Estar à beira de gritar e nunca, sequer, dizer. Como se a tensão
(e se há coisa em que Lhasa é mestre, é em criar uma pequena e surda tensão)
já dissesse tudo. Porque "el juego es quererte/ sin quererte
desnudo". Não é perversão - é amor à tragédia. Nós adoramos, claro -
que seria de nós sem a tragédia dos outros?
Escusados os adjectivos, esses procure-os o leitor. Graças à variedade
instrumental e de ambiências, "The living road" está um pontinho
acima de "La Llorona". E a questão é: se Lhasa começou a escrever o
primeiro disco aos 23 anos e só o gravou aos 28 e se o segundo aparece quando a
rapariga já tem 33 anos, que esperar agora? Mais cinco anos de intervalo? Mais
fuga para circos? Nada disso: "É como uma história de amor. Quando alguém
se apaixona não é o fim da história, é o princípio. Por isso o meu pequeno
sucesso é o começo do trabalho a sério. Agora é que isto vai começar." by João Bonifácio

"Small Song", um livro de Renata Correia Botelho

Artigo publicado no suplemento Ípsilon do Jornal Público
20.10.2010 - David Teles
Pereira

"Small Song" é o livro que se segue, na vida da poeta açoriana Renata Correia
Botelho, ao "acontecimento devastador" da morte de Lhasa de Sela. Não é apenas mais
um volume a somar a uma biblioteca negra, cheia de mortos: há uma honestidade invulgar,
no contexto da poesia portuguesa recente, na maneira como tudo isto começou

Não tem sido comum, na poesia portuguesa mais recente, um livro ter no seu centro
uma história tão honesta e tão fortemente impressa no seu propósito contra o imediatismo
- um imediatismo a que a sua autora, Renata Correia Botelho (S. Miguel, Açores,
1977), se poderia muito bem arriscar, paradoxalmente, ao publicá-lo apenas nove
meses depois da morte da cantora Lhasa de Sela, o acontecimento que serviu de ignição
para "Small Song" (Averno, 2010).

É o segundo volume de poemas de Renata publicado, no espaço de um ano, na editora
de Manuel de Freitas e Inês Dias. A sua estreia em livro, na Averno e em edições
de maior tiragem, foi "Um Circo no Nevoeiro" (2009), com ilustrações de Luís Manuel
Gaspar. Anteriormente, a autora já colaborara com a mesma editora, através das suas
participações com poemas e um conto, na revista "Telhados de Vidro", e já publicara
outros dois livros: "Avulsos, por causa" (primeiro em edição privada e depois em
separata da revista "Magma", 2005) e "21 Haiku com Asas, Urbano e Cabras" (edição
da Galeria 111, 2008), este último em parceria com Urbano, o ilustrador de "Small
Song", e Emanuel Jorge Botelho, pai da autora e, também, poeta com obra publicada.

Renata Correia Botelho vive em S. Miguel, nos Açores, o que condenou à partida a
possibilidade de a entrevistar pessoalmente. O recurso à troca de e-mails e à conversa
por telefone foi a solução óbvia e, curiosamente, aquela que mais se aproxima da
forma primordial de participação da autora no meio literário português. Nestes tempos
de correios electrónicos e blogues, Lisboa e S. Miguel podem ser exactamente a mesma
cidade; tudo depende daquilo que o poeta esteja disposto a diligenciar nesse sentido.
Prova disso mesmo é notoriedade que a poesia de Renata conseguiu alcançar junto
dos poetas mais novos, desmistificando profundamente as supostas dificuldades insuperáveis
de publicação e divulgação para aqueles que vivem fora dos dois grandes centros
da cultura literária portuguesa, Lisboa e Porto.

Qual é, então, a perspectiva que Renata Correia Botelho tem sobre a sua situação
periférica, a sua insularidade, e o impacto que tem na sua produção poética? "Apesar
de todas as condicionantes, como ter de viajar imenso para matar saudades de um
quadro ou de um rio, viver nos Açores, longe do mundo mas perto do céu, é uma bênção.".
Depois, recordando Cecília Meireles, diz que "os dias felizes estão entre as árvores,
como os pássaros".

Lhasa vive

Árvores e pássaros povoam, de resto, o vocabulário deste livro. A poesia portuguesa
que a precedeu tratou de carregar de significados e referências estas duas palavras.
Basta-nos pensar em Eugénio de Andrade. A juventude da autora, felizmente, não a
impede de construir, em pé de igualdade com as figuras tutelares, um espaço próprio
em redor delas: "os pássaros morrem sempre/ de noite, e os sinos tocam/ os seus
nomes pela madrugada." ou "fingindo a vida e logrando/ a morte, recolhendo à terra,/
passarinho, sem nada temer,// recolhendo à terra.". Ainda em relação aos Açores,
Renata refere que a sua poesia se constrói, numa primeira camada, no contacto intenso
com a natureza e que a sua ilha funciona, aí, mais como uma montra privilegiada
do que como uma limitação.

Mas regresse-se à história deste livro. O ponto de viragem de "Small Song" foi a
tarde do primeiro dia deste ano de 2010, data da morte de Lhasa de Sela, encapsulada
num dos poemas centrais do livro, "Rising": "hoje é início de janeiro/mas só consigo
escrevê-lo/dois meses depois: morreu/a cantora Lhasa de Sela, / li no canto do ecrã,/
assim, em letra corrida,/ ainda a manhã mal tinha/ chegado às mãos". Foi este "acontecimento
devastador", confessa Renata Correia Botelho, que acelerou tudo, que tornou urgente
a conclusão de um livro que era, até então, pouco mais do que uma "ideia vaga".
"Rising", o poema atrás citado, foi o primeiro nessa viragem e aquele "que acendeu
todos os outros, como uma vela".

Há, nas palavras da autora, a permanente sugestão de uma certa co-autoria deste
livro, a dois níveis. No primeiro deles comanda a voz de Lhasa que, pela sua ausência,
tornou este livro necessário. No segundo nível intervém a irmã de Lhasa, Sky de
Sela, um dos destinatários de "Small Song". Após a morte da cantora, e por causa
da necessidade "de a sentir para além das canções", o contacto postal com Sky de
Sela pareceu a Renata uma forma óbvia de manter a sua ligação com a voz da cantora
que, durante tanto tempo, a acompanhara à distância. Quando os poemas começaram
a surgir, pareceu-lhe que estes apenas fariam sentido se Sky os pudesse ler, pelo
que se dedicou afincadamente à tarefa de traduzir o livro para francês. A passagem
dos poemas para outra língua e a leitura atenta da irmã de Lhasa colaboraram para
que o livro nascesse uma outra vez: "Foi aí que o livro começou a existir realmente
- quando senti que, através da Sky, tinha a Lhasa ali tão perto, a mostrar a cada
verso o seu verdadeiro caminho.".

Esta história ultrapassa a mera curiosidade, cedendo ao livro um coração que lhe
permite escapar, ao mesmo tempo, à artificialidade de muitas construções narrativas
que servem de base a livros de poesia, ao imediatismo tão à moda do século XXI e
à pura pornografia da morte. Quando muitos elogios se atrevem a recair sobre poetas
que cultivam as curiosidades ou que parecem esperar apenas que apareça um corpo
para depositar naquele poema da morte há já muito escrito, o livro de Renata Correia
Botelho, pela sua honestidade e pela forma como aborda a morte de Lhasa, a partir
daquilo que dela permanece vivo - a família e as músicas -, não é apenas mais uma
adição a essa biblioteca negra.

Música imaginária

É preciso destacar outro ponto, tão marcante em "Small Song" como em obras anteriores
de Renata Correia Botelho: a interacção entre os poemas, as ilustrações que lhes
servem de apoio e o aspecto visual dos livros. Renata destaca a liberdade criativa
de que tem podido gozar na escolha do artista com quem quer partilhar o trabalho,
das ilustrações, do formato e, até, do papel e do tipo de letra. Todos estes detalhes
fazem, para ela, parte da alma dos seus livros, principalmente as ilustrações. Confessa-se
fascinada pelo processo de pintar um quadro: "As várias camadas de tinta, as cores
que se sobrepõem para criar matizes, esse aspecto implacável da primeira pincelada
sobre a tela. Acho que escrever não é diferente, e compor música também não deve
ser.".

Num livro que coloca como primeira urgência a memória de Lhasa de Sela, que lugar
ocupam as suas músicas ou, melhor, que lugar ocupa a música? "Os meus livros sempre
tiveram a sua música imaginária, aquela que oiço fora e dentro. As canções de Lhasa
foram, desde o início, a presença mais forte. Porque sempre foi muito claro, na
minha maneira de habitar o mundo, que há as músicas de que gosto, há aquelas que
até amo, e depois há a Lhasa".

O corpo e a memória encontram-se em rota de colisão, um dia embatem e, depois, o
seu caminho nunca mais se há-de voltar a cruzar: "Eu nem me atrevera a falar disso://
da morte, da solidão a abater-se,/ como uma longa noite,/ quando sabemos que uma
voz não volta/ a coincidir com o seu rosto". Esta é uma das grandes tragédias da
nossa condição, tão exaltada quanto mutilada por demasiadas histórias, imagens e
músicas. As melhores histórias e imagens, as melhores músicas acabam, quase sempre,
por disparar na nossa direcção os destroços desta inevitabilidade. É por isso que,
como escreve Renata Correia Botelho, "há músicas que só podemos/ ouvir de joelhos.".

1972-09-27 - 2010-01-01

.... partiu Lhasa de Sela, uma das vozes mais emotivas que ouvi nos últimos anos
não vou esquecer a primeira vez que ouvi "El desierto", um arrepio ....

He venido al desierto pa irme de tu amor
Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor
He venido a este centro de la nada pa gritar
Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar
Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar
He venido al desierto pa irme de tu amor
Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor
He venido a este centro de la nada pa gritar
Que tú nunca mereciste

He venido yo corriendo olvidándome de ti
Dame un beso pajarillo no te asustes colibrí
He venido encendida al desierto pa quemar
Porque el alma prende fuego cuando deja de amar
Porque el alma prende fuego cuando deja de amar

He venido yo corriendo olvidándome de ti
Dame un beso pajarillo y no te asustes colibrí
He venido encendida al desierto pa quemar
Porque el alma prende fuego

He venido yo corriendo olvidándome de ti
Dame un beso pajarillo y no te asustes colibrí
He venido encendida al desierto pa quemar
Porque el alma prende fuego cuando deja de amar
Porque el alma prende fuego cuando deja de amar

He venido al desierto pa irme de tu amor
Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor
He venido a este centro de la nada pa gritar
Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar
He venido yo corriendo olvidándome de ti
Dame un beso pajarillo y no te asustes colibrí
He venido encendida al desierto pa quemar
Porque el alma prende fuego

Revista de Imprensa
Lhasa - La llorona (23-08-1998, Diário de Notícias)

"Talvez a grande revelação do circuito da "world music" no primeiro semestre deste ano , Lhasa é uma personagem digna de um filme que Wim Wenders poderia gostar de filmar, mas ao qual suplicaremos que não o faça a bem da voz que certamente o encantaria e cujas imagens transformaria em real seca. Como fez aos Madredeus, num filme que esteve longe de prestar um serviço condigno ao magnífico grupo português.Lhasa é filha do escritor mexicano Alejandro Sela e da fotógrafa norte-americana Alexandra Karam. Com os pais viveu sete anos na estrada. Sete anos a bordo de uma caravana, em busca de palavras e imagens, acompanhada pelos pais e irmãs entre caminhos alcatroados ou a terra batida entre o México e os Estados Unidos. Uma vida sem destino traçado que a levou, pela separação dos pais, a San Francisco, para onde se mudou na companhia da mãe e se estreou a cantar Billie Holliday. Tinha 17
anos, e uma voz que já era capaz de sugerir melancolia e infinita tristeza.Com uma das irmãs, muda-se, mais tarde, para o Canadá, onde conhece Yves Desrosiers. O guitarrista
personagem-gatilho num processo de descoberta de uma personalidade única iniciado numa colaboração há seis anos no Festival de Jazz de Montreal, que agora se expressa através das canções registadas no soberbo e tocante
«La Llorona».
O disco, integralmente cantado em castelhano, transporta-a para o México de seu
pai e aos dias de estrada sem fim. Em busca das palavras e das imagens da senda
incessante que acompanhava anos antes. E em «La Llorona» capta-as, num registo
de sensibilidade cortante que vive, sobretudo, de uma voz que se exige
descobrir. Uma voz que sofre, chora, encanta, sente e faz sentir.
Entre canções tradicionais mexicanas e originais embebidos em deserto e areia,
Lhasa evoca paisagens largas, grandiosas, solarengas, quentes. Personagens
estranhos, fantasmas, demónios. E tempos distantes. Tempos anteriores à
colonização espanhola, através de lendas recordadas, entre elas a que dá
titulo ao disco. A lenda de La Llorona, a esposa da serpente com penas Quetzal,
que atraía, em noites quentes, os homens às margens dos rios com cantos
melancólicos de forte carga erótica, para depois os beijar e transformar em
pedra.
Lhasa poderia ser La Llorona. A sua voz atrai, esmaga, conquista. Só não
transforma em pedra, caso contrário este texto teria sido bem mais difícil de
escrever. Nada como dedos de carne e osso com articulações à mistura.
Essencialmente paisagista, o disco transporta-nos irremediavelmente para as
latitudes que canta. Expressivas, voz e composição traçam o Mexico por linhas
de som. «El Desierto», a canção que descodifica toda a carga do canto e
música de Lhasa, é o momento do disco onde a cantora e o guitarrista canadiano
que a acompanha nesta operação mais ousam o desafio da colisão das paisagens
e tradições evocadas com o presente, num quadro que sugere imagens longas e
belas. Este será o momento onde Lhasa mais se destaca de todas as marcas da
tradição do canto das rancheras que evoca claramente em todo o disco. Um
momento que assimila e reinterpreta México, e deserto por linhas novas, suas,
estilizadas. Uma antecâmara de uma obra que certamente poderá conhecer novo e
mais ousado capítulo. " by Nuno Galopin

Lhasa - The Living Road (02-07-2004, Público)

"A estrada canta quando ela parte. Vai à cata de homens que invariavelmente a
temem, que usam facas porque a temem. E a cada abandono ela canta os homens
excessivos, a bebida excessiva, o excesso de ver excesso em tudo. Canta. Bem
demais. Canta como quem põe as vísceras na garganta. Como quem não pode
impedir que saia. Como Chavela Vargas, a grande cantora mexicana que ela tanto
gosta, Lhasa de Sela canta os amores e as quase mortes os amores de morte, canta
a estrada porque ao fim de tanto correr ela já é a própria estrada.
E porque não se dá bem com o sucesso foi trabalhar para um circo. Na verdade,
nunca esteve parada. Filha de uma americana e um mexicano, percorreu, desde
cedo, todo o México, acompanhada por uma extensa parelha de irmãs, meias-irmãs
e irmãos e meios-irmãos. Sorte deles, não havia televisão para ninguém, a
família dedicava-se a cantar pela noite dentro. Valeu-lhe uma carreira e medo.
O medo do sucesso, o medo que atrasou o segundo álbum, que nos fez esperar
cinco anos pelo segundo. E Lhasa já canta: "o futuro será melhor".
vida de circo. O ano era 1998, o disco era "Lla Llorona", aparecia-nos
uma mulher de voz arrastada mas estranhamente etérea, como se o corpo estivesse
ali mas ela escorresse entre as coisas sem ser tocada por elas, como se já não
pudesse ser tocada por elas à conta do excesso de nódoas negras. Cantava o
deserto, peixes ébrios, mulheres ciumentas, uma estranha espiritualidade
carnal, uma latinidade trágica que é mais imaginária que verdadeira, que
naquela voz era intensamente verdadeira. Não precisava de mais que isto: uma
guitarra acústica e a voz. Folk, flamenco, trejeitos de canção francesa, tudo
cantado em espanhol e muita simbologia
Agora, em "The living road", está diferente e ainda bem: resolveu de
uma penada o problema da fórmula guitarra+voz, ampliou o espectro sonoro, mas,
para o mal e para o bem, o que ela, a última das ultra-românticas, canta ainda
é o mesmo: "Gracias a tu cuerpo/voy curarme". A diferença é que por
trás, agora, está um piano numa pianíssima valsa, que dá um tom fúnebre à
esgrima dos afectos. Não, não é brincadeira. A ideia que Lhasa tem de um
homem é esta: "Llegarás mañana/ para el fin del mundo/ mañana te
mato". Olé (guarda a orelha, pequena, guarda a orelha...).
 O que é que separa "The living road" da excelente estreia?
Instrumentos. Onde antes só havia a guitarra acústica, agora há banjos,
violinos, clarinetes, violoncelos, marimbas, órgãos, pianos, theremins, rumbas
marotas, valsas decadentes, cortinas rasgadas, tiroteio de fronteira, reboliço
no celeiro à socapa.
Onde antes havia simbologias místicas ("La Llorona" é uma figura
azteca que seduz os homens para depois transformá-los em pedra, o que diz bem
do imaginário trágico/cruel/vingativo de Lhasa), agora há, mais que "storytelling",
"roleplaying".
Mas o que mais encanta nem é tanto a forma como uma história é cantada. É a
noção do espaço numa canção: o piano na valsa grave e soturna de "Para
llegar a tu lado" a funcionar como ponto para a voz - "gracias a tu
cuerpo voy curarme", canta ela, apenas isto, o piano, a voz, e nós sempre
a esperarmos que algo expluda, mas não, treme-se apenas, nunca nada rompe, vai
rasgando, devagarinho; a quase country de "Abro la ventana" em que a
slide-guitar cria um ambiente cinemático de mão no coldre e desgraça à
espreita, Lhasa a cantar sobre mãos que não voltam; e Tom Waits e Piaff a
espreitarem em "La Maree Haute" ("A estrada canta/ quando eu
parto"), ela pela entrega, ele pelos arranjos de cordas, de oboé, pelo
piano cambaleante (a sombra de Waits ainda aparece na magnífica "Anywhere
on this road" - ambiente assustador, percussão com o seu quê de tribal e
a voz em narração sorumbática; muito bom, muito bom, mesmo.)
O que mais fascina, aqui, é a noção de que Lhasa tem os trunfos na mão, que
Lhasa procura sempre e em cada jogada a carta mais alta, para depois fazer de
conta que era bluff, virar as costas e ir embora (mas não era bluff e
sabemo-lo). Estar à beira de gritar e nunca, sequer, dizer. Como se a tensão
(e se há coisa em que Lhasa é mestre, é em criar uma pequena e surda tensão)
já dissesse tudo. Porque "el juego es quererte/ sin quererte
desnudo". Não é perversão - é amor à tragédia. Nós adoramos, claro -
que seria de nós sem a tragédia dos outros?
Escusados os adjectivos, esses procure-os o leitor. Graças à variedade
instrumental e de ambiências, "The living road" está um pontinho
acima de "La Llorona". E a questão é: se Lhasa começou a escrever o
primeiro disco aos 23 anos e só o gravou aos 28 e se o segundo aparece quando a
rapariga já tem 33 anos, que esperar agora? Mais cinco anos de intervalo? Mais
fuga para circos? Nada disso: "É como uma história de amor. Quando alguém
se apaixona não é o fim da história, é o princípio. Por isso o meu pequeno
sucesso é o começo do trabalho a sério. Agora é que isto vai começar." by João Bonifácio

"Small Song", um livro de Renata Correia Botelho

Artigo publicado no suplemento Ípsilon do Jornal Público
20.10.2010 - David Teles
Pereira

"Small Song" é o livro que se segue, na vida da poeta açoriana Renata Correia
Botelho, ao "acontecimento devastador" da morte de Lhasa de Sela. Não é apenas mais
um volume a somar a uma biblioteca negra, cheia de mortos: há uma honestidade invulgar,
no contexto da poesia portuguesa recente, na maneira como tudo isto começou

Não tem sido comum, na poesia portuguesa mais recente, um livro ter no seu centro
uma história tão honesta e tão fortemente impressa no seu propósito contra o imediatismo
- um imediatismo a que a sua autora, Renata Correia Botelho (S. Miguel, Açores,
1977), se poderia muito bem arriscar, paradoxalmente, ao publicá-lo apenas nove
meses depois da morte da cantora Lhasa de Sela, o acontecimento que serviu de ignição
para "Small Song" (Averno, 2010).

É o segundo volume de poemas de Renata publicado, no espaço de um ano, na editora
de Manuel de Freitas e Inês Dias. A sua estreia em livro, na Averno e em edições
de maior tiragem, foi "Um Circo no Nevoeiro" (2009), com ilustrações de Luís Manuel
Gaspar. Anteriormente, a autora já colaborara com a mesma editora, através das suas
participações com poemas e um conto, na revista "Telhados de Vidro", e já publicara
outros dois livros: "Avulsos, por causa" (primeiro em edição privada e depois em
separata da revista "Magma", 2005) e "21 Haiku com Asas, Urbano e Cabras" (edição
da Galeria 111, 2008), este último em parceria com Urbano, o ilustrador de "Small
Song", e Emanuel Jorge Botelho, pai da autora e, também, poeta com obra publicada.

Renata Correia Botelho vive em S. Miguel, nos Açores, o que condenou à partida a
possibilidade de a entrevistar pessoalmente. O recurso à troca de e-mails e à conversa
por telefone foi a solução óbvia e, curiosamente, aquela que mais se aproxima da
forma primordial de participação da autora no meio literário português. Nestes tempos
de correios electrónicos e blogues, Lisboa e S. Miguel podem ser exactamente a mesma
cidade; tudo depende daquilo que o poeta esteja disposto a diligenciar nesse sentido.
Prova disso mesmo é notoriedade que a poesia de Renata conseguiu alcançar junto
dos poetas mais novos, desmistificando profundamente as supostas dificuldades insuperáveis
de publicação e divulgação para aqueles que vivem fora dos dois grandes centros
da cultura literária portuguesa, Lisboa e Porto.

Qual é, então, a perspectiva que Renata Correia Botelho tem sobre a sua situação
periférica, a sua insularidade, e o impacto que tem na sua produção poética? "Apesar
de todas as condicionantes, como ter de viajar imenso para matar saudades de um
quadro ou de um rio, viver nos Açores, longe do mundo mas perto do céu, é uma bênção.".
Depois, recordando Cecília Meireles, diz que "os dias felizes estão entre as árvores,
como os pássaros".

Lhasa vive

Árvores e pássaros povoam, de resto, o vocabulário deste livro. A poesia portuguesa
que a precedeu tratou de carregar de significados e referências estas duas palavras.
Basta-nos pensar em Eugénio de Andrade. A juventude da autora, felizmente, não a
impede de construir, em pé de igualdade com as figuras tutelares, um espaço próprio
em redor delas: "os pássaros morrem sempre/ de noite, e os sinos tocam/ os seus
nomes pela madrugada." ou "fingindo a vida e logrando/ a morte, recolhendo à terra,/
passarinho, sem nada temer,// recolhendo à terra.". Ainda em relação aos Açores,
Renata refere que a sua poesia se constrói, numa primeira camada, no contacto intenso
com a natureza e que a sua ilha funciona, aí, mais como uma montra privilegiada
do que como uma limitação.

Mas regresse-se à história deste livro. O ponto de viragem de "Small Song" foi a
tarde do primeiro dia deste ano de 2010, data da morte de Lhasa de Sela, encapsulada
num dos poemas centrais do livro, "Rising": "hoje é início de janeiro/mas só consigo
escrevê-lo/dois meses depois: morreu/a cantora Lhasa de Sela, / li no canto do ecrã,/
assim, em letra corrida,/ ainda a manhã mal tinha/ chegado às mãos". Foi este "acontecimento
devastador", confessa Renata Correia Botelho, que acelerou tudo, que tornou urgente
a conclusão de um livro que era, até então, pouco mais do que uma "ideia vaga".
"Rising", o poema atrás citado, foi o primeiro nessa viragem e aquele "que acendeu
todos os outros, como uma vela".

Há, nas palavras da autora, a permanente sugestão de uma certa co-autoria deste
livro, a dois níveis. No primeiro deles comanda a voz de Lhasa que, pela sua ausência,
tornou este livro necessário. No segundo nível intervém a irmã de Lhasa, Sky de
Sela, um dos destinatários de "Small Song". Após a morte da cantora, e por causa
da necessidade "de a sentir para além das canções", o contacto postal com Sky de
Sela pareceu a Renata uma forma óbvia de manter a sua ligação com a voz da cantora
que, durante tanto tempo, a acompanhara à distância. Quando os poemas começaram
a surgir, pareceu-lhe que estes apenas fariam sentido se Sky os pudesse ler, pelo
que se dedicou afincadamente à tarefa de traduzir o livro para francês. A passagem
dos poemas para outra língua e a leitura atenta da irmã de Lhasa colaboraram para
que o livro nascesse uma outra vez: "Foi aí que o livro começou a existir realmente
- quando senti que, através da Sky, tinha a Lhasa ali tão perto, a mostrar a cada
verso o seu verdadeiro caminho.".

Esta história ultrapassa a mera curiosidade, cedendo ao livro um coração que lhe
permite escapar, ao mesmo tempo, à artificialidade de muitas construções narrativas
que servem de base a livros de poesia, ao imediatismo tão à moda do século XXI e
à pura pornografia da morte. Quando muitos elogios se atrevem a recair sobre poetas
que cultivam as curiosidades ou que parecem esperar apenas que apareça um corpo
para depositar naquele poema da morte há já muito escrito, o livro de Renata Correia
Botelho, pela sua honestidade e pela forma como aborda a morte de Lhasa, a partir
daquilo que dela permanece vivo - a família e as músicas -, não é apenas mais uma
adição a essa biblioteca negra.

Música imaginária

É preciso destacar outro ponto, tão marcante em "Small Song" como em obras anteriores
de Renata Correia Botelho: a interacção entre os poemas, as ilustrações que lhes
servem de apoio e o aspecto visual dos livros. Renata destaca a liberdade criativa
de que tem podido gozar na escolha do artista com quem quer partilhar o trabalho,
das ilustrações, do formato e, até, do papel e do tipo de letra. Todos estes detalhes
fazem, para ela, parte da alma dos seus livros, principalmente as ilustrações. Confessa-se
fascinada pelo processo de pintar um quadro: "As várias camadas de tinta, as cores
que se sobrepõem para criar matizes, esse aspecto implacável da primeira pincelada
sobre a tela. Acho que escrever não é diferente, e compor música também não deve
ser.".

Num livro que coloca como primeira urgência a memória de Lhasa de Sela, que lugar
ocupam as suas músicas ou, melhor, que lugar ocupa a música? "Os meus livros sempre
tiveram a sua música imaginária, aquela que oiço fora e dentro. As canções de Lhasa
foram, desde o início, a presença mais forte. Porque sempre foi muito claro, na
minha maneira de habitar o mundo, que há as músicas de que gosto, há aquelas que
até amo, e depois há a Lhasa".

O corpo e a memória encontram-se em rota de colisão, um dia embatem e, depois, o
seu caminho nunca mais se há-de voltar a cruzar: "Eu nem me atrevera a falar disso://
da morte, da solidão a abater-se,/ como uma longa noite,/ quando sabemos que uma
voz não volta/ a coincidir com o seu rosto". Esta é uma das grandes tragédias da
nossa condição, tão exaltada quanto mutilada por demasiadas histórias, imagens e
músicas. As melhores histórias e imagens, as melhores músicas acabam, quase sempre,
por disparar na nossa direcção os destroços desta inevitabilidade. É por isso que,
como escreve Renata Correia Botelho, "há músicas que só podemos/ ouvir de joelhos.".

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