Susana Coroado: "Não se compreende como foi aprovada a ida de Mário Centeno para o Banco de Portugal"

11-11-2020
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A nova presidente da Transparência e Integridade, Susana Coroado, aponta incoerência ao Governo na doutrina dos mandatos únicos que justificou a não recondução de Vítor Caldeira na presidência do Tribunal de Contas. E pergunta: “Isto aplica-se a juízes do Tribunal Constitucional? A institutos públicos, empresas públicas, direções-gerais?”

A possibilidade de, segundo o parecer do Tribunal de Contas, as novas regras do Código dos Contratos Públicos “transformarem o mercado nacional de contratação pública em múltiplos e pequenos mercados de índole regional e local” ocorrerem num ano em que há eleições autárquicas é um facto relevante?

Extremamente relevante. O facto de as entidades adjudicantes poderem criar listas prévias de pequenas e médias empresas locais aumenta o risco de corrupção tanto do lado da oferta como da procura. Por um lado, cria incentivos às empresas para tentarem fazer tudo para estarem nessa lista e isso pode ser feito de forma extremamente transparente e legal – apresentando um bom trabalho – ou então oferecendo subornos diretos ou favorecimentos à entidade adjudicante, que em ano de eleições pode muito bem ser uma câmara municipal. Por outro, isto também cria incentivos errados por parte das entidades adjudicantes, precisamente porque podem obrigar as empresas a cumprirem algumas exigências, o que também pode implicar subornos e financiamento político ilegal. Outro das medidas destacadas pela Inspeção-Geral de Finanças é o facto de as entidades contratantes não necessitarem de fazer concursos públicos, podendo fazer logo o ajuste direto sem sequer consultarem o mercado no setor das artes. Em altura de campanha eleitoral isto abre a porta a financiamento político encapotado: uma entidade contratante pode tentar negociar com o artista que no verão faça concertos ao abrigo do programa cultural da autarquia, mas como não há averiguação de preços de mercado pode ser combinado com o artista que a câmara lhe paga mais do que o normal e depois ele faz uma perninha na campanha eleitoral.

A não recondução de Vítor Caldeira na presidência do Tribunal de Contas, na sequência do parecer que viu na alteração ao Código de Contratos Públicos uma porta aberta a regimes de exceção, pode ser encarada como um aviso ao sucessor e a responsáveis por outras entidades que fiscalizam o Estado?

Pode. Na Transparência e Integridade não tivemos posição quanto à não recondução, pois a lei permite a renovação de mandatos mas não obriga a que assim seja. Sendo o Governo que faz a proposta, pode decidir que não renova o mandato de quem quer que seja. Agora o Governo diz que é a favor de mandatos únicos e que há quatro anos que se sabia que este mandato não seria renovado. Mas aparentemente só o Governo é que o sabia e mesmo assim não se explica porque é que no dia em que terminou o mandato de Vítor Caldeira não havia já um nome para tomar posse. Teve tempo suficiente para haver planeamento e não esse vazio de poder. Há doutrinas que defendem que os mandatos únicos aumentam o grau de independência da pessoa que assume o cargo, mas isso acontece quando a pessoa já sabe, no momento em que toma posse, que não haverá renovação. E isso pode ser assegurado através da lei. Imaginando que logo que Vítor Caldeira tomou posse o Governo tinha feito saber que aquele seria um mandato único, nada garantia que se o Governo mudasse o novo titular não pudesse ter um entendimento diferente, sendo a favor das renovações. Se não estiver na lei a determinação de que é só um mandato o titular nunca vai ter a certeza de que há possibilidade de renovação ou não, o que vai diminuir a sua independência, pois vai eventualmente fazer cálculos para tentar perceber se deve favorecer este ou aquele com vista à aprovação do mandato. A forma como este processo foi conduzido é claramente um sinal do Governo de que quando não gostar de alguém pode não aprovar. Aliás, o Governo defendeu sempre a posteriori que é a favor de mandatos únicos. Isto aplica-se a juízes do Tribunal Constitucional? A institutos públicos, empresas públicas, direções-gerais? Seria muito interessante esclarecer esta questão.

A falta de atenção à corrupção política na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção é o seu calcanhar de Aquiles?

É fundamental. Basta olhar para todas as investigações nos últimos anos para perceber que a corrupção política é um problema sério. A partir do momento em que temos um ex-primeiro-ministro, um ex-juiz da Relação, um ex-procurador – já efetivamente condenado -, quando temos estas pessoas todas envolvidas em investigações ligadas com corrupção, isto é preocupante. Uma estratégia não pode ignorar a questão da corrupção política e do financiamento ilícito, como também não pode ignorar o branqueamento de capitais. Se o branqueamento de capitais não é corrupção, está intimamente ligado, até porque se não houver um combate sério ao branqueamento de capitais os potenciais criminosos que poderão cometer o crime de corrupção vão ter sempre a sensação que mesmo condenados poderão mais tarde usufruir dos seus frutos. E se alguém for aliciado para um ato corrupto mas não puder usufruir dos lucros desse crime, porque mesmo que não seja apanhado pela corrupção não vai ter forma de branquear o capital sem ser apanhado, isso diminui o incentivo à corrupção. Não é um aspeto que esteja minimamente tratado na Estratégia.

Faltam medidas concretas?

É preciso reforçar as instituições e as práticas. Por exemplo, o Governo aprovou um código de conduta, que fala da responsabilidade política, mas nem sequer refere o que isso é. Temos exemplos, noutros países, em que há graus diferentes de sanções para membros do governo consoante a gravidade do ato cometido: por exemplo, durante um mês não têm motorista ou não podem usufruir de cartão de crédito ou de despesas de representação, indo até à perda de mandato. Em Portugal não temos isso. E não temos uma instituição exterior ao Governo que possa fazer a monitorização. Sabemos se há ou não violação das regras consoante apareça um escândalo na comunicação social. Aliás, a própria estratégia defende códigos de conduta para as instituições públicas, mas depois não dá o exemplo. Pouco depois de a estratégia ter sido apresentada, o primeiro-ministro, na nossa opinião, violou o código de conduta.

Com a participação nas eleições do Benfica…

Se o primeiro-ministro, que é o garante do cumprimento do código de conduta, não o respeita, isso torna-o irrelevante. Um dos grandes falhanços desta estratégia, mas também já do pacote de transparência aprovado no ano passado na Assembleia da República, é precisamente o da regulação dos conflitos de interesse.

É a Assembleia da República que se deve impor?

Antes de mais, precisamos de mudar o paradigma. Temos sempre a posição de identificar um determinado número de incompatibilidades e dizemos que são ilegais. E tudo o que não calhe nessa malha do ilegal e do proibido pode fazer-se. O conflito de interesses dá-se quando os interesses privados de uma determinada pessoa podem colidir com o interesse público, e todos os detentores de cargos públicos, bem como todos os detentores de cargos privados, e todos nós, temos interesses particulares, sejam pessoais, familiares, financeiros ou profissionais, que podem colidir com o interesse público. Nem todos os conflitos de interesses têm o mesmo nível de gravidade. Alguns são insanáveis – e daí haver incompatibilidades -, outros são só aparentes e analisada bem a questão até se pode dizer que não há problema nenhum, e outros têm de ser geridos. Não se trata de impedir as pessoas de exercer determinado cargo, mas de dizer que em certa matéria não podem intervir. Vimos isso no processo de nomeação dos comissários europeus. Elisa Ferreira submeteu-se, como todos os outros, a uma audiência no Parlamento Europeu e os serviços jurídicos analisaram os potenciais conflitos de interesses que poderiam levantar problemas na sua pasta e colocaram-se várias questões: o de deter ações de empresas registadas no registo de lobistas da Comissão Europeia e o facto de o marido estar à frente da CCDR do Norte. Tendo ela a pasta dos fundos europeus, poderia ser um conflito de interesses. Fez-se uma investigação para perceber como o problema poderia ser sanado e a conclusão foi que Elisa Ferreira alienou as ações que detinha, visto que se considerou que essa incompatibilidade poderia ser resolvida, e em relação ao marido concluiu-se que não havia conflitos de interesse porque há tantos níveis de controlo intermédios que dificilmente poderia haver influência da comissária europeia na CCDR. Nem a integridade ou honestidade de Elisa Ferreira foram colocadas em causa nem foi impedida de exercer o cargo. Estes conflitos foram clarificados e sanados. Em Portugal isto não acontece. Se não é ilegal, há porta aberta para tudo.

Os portugueses observaram como o ministro das Finanças fez uma transição suave para governador do Banco de Portugal, sem mais entraves do que as tentativas de alguns deputados para que o processo fosse travado. Isso cria um precedente para tudo o que vier a seguir?

Essas coisas são ou não permitidas consoante os ciclos políticos e os interesses que estejam presentes. Recordo-me de que também há pouco tempo, com este Governo, surgiu a possibilidade de um deputado do PS ser nomeado para uma entidade reguladora e o seu nome nem sequer chegou ao processo de nomeação porque houve tantas críticas que terminou ali. Já nesse caso, em que havia a agravante de o ministro Mário Centeno trabalhar diretamente com o Banco de Portugal, e ter tomado decisões que vão ser avaliadas pelo Banco de Portugal – já vimos que o governador Mário Centeno elogiou bastante o trabalho do ministro Mário Centeno -, o ciclo político foi diferente e permitiu-se. Há uma grande incoerência nestas matérias. É muito raro isto acontecer e só em dois países há uma situação semelhante. Não se compreende como foi aprovada a ida de Mário Centeno para governador do Banco de Portugal. Diziam sempre “é o melhor”, mas apesar de pelo seu currículo poder ser o melhor tem um grave problema de conflito de interesses que põe em causa a forma como vai poder exercer o cargo. E assim já não é o melhor. Ainda que fosse, como é que sabemos? Houve outros candidatos? Houve um processo transparente? Houve um concurso público ou audições públicas para que pudéssemos avaliar a visão que ele e outros potenciais concorrentes têm sobre o cargo e sobre a regulação bancária e financeira para podermos comparar? As pessoas só são as melhores em comparação com outras.

Vê na governação de António Costa uma continuidade ou uma tendência para maior opacidade nestas questões?

Vemos que é cada vez mais difícil obter informação pública. O caso das subvenções vitalícias é muito óbvio. O nome dos detentores de cargos políticos que usufruíam de subvenções vitalícias sempre foi público e depois deixou de ser, sem que houvesse explicação para isso tirando a da proteção de dados, que está a ser usada para tudo e mais alguma coisa. Também vemos, e não acho que isso seja necessariamente uma questão do primeiro-ministro António Costa, toda uma classe política que absorveu o discurso da corrupção mas que não cumpre. E esse é um problema sério.

Nas próximas eleições presidenciais há dois candidatos que assentam parte do discurso nas questões da transparência e da corrupção, e apesar de serem ideologicamente muito distantes Ana Gomes e André Ventura já foram rotulados de populistas. É um risco inerente a quem denuncia estas situações?

Também somos apelidados de populistas. Não gosto do termo por um motivo: já é usado como insulto. Todos são populistas quando interessa. Pode ser Ana Gomes, pode ser André Ventura, pode ser o Presidente da República, pois até já circulou a teoria de que não havia populismo com muita força em Portugal porque ele absorvia em si todos os populismos. E no debate político é uma arma de arremesso. Cada vez que há uma tomada de posição, seja de quem for, que não seja de acordo com aquilo que o adversário concorda diz-se que é uma posição populista.

Mesmo no documento da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção lê-se que “são sistemas de frustração e de pulsão antidemocrática que motivam a perceção do combate à corrupção”…

O problema são os movimentos sociais e políticos com tendências autoritárias. Isso é extraordinariamente preocupante. Mas no dia em que essas forças chegarem ao poder não é nessa altura que a democracia estará com problemas. A chegada ao poder será uma consequência e não uma causa. A democracia já estará com problemas e falida quando as forças autoritárias chegam ao poder. Quem tem obrigação de evitar que isso aconteça é quem está no poder neste momento e tem o dever de prestar atenção ao desconforto da população, à indignação e à sensação de que há favorecimentos, de que por mais que as pessoas trabalhem e estudem não conseguem melhorar de vida e chegar a determinados cargos. Quem tem pequenas e médias empresas não consegue ganhar determinado concurso porque não tem os contactos certos. E por mais que haja casos de corrupção, o poder político não está a contribuir para tentar resolver os problemas. Primeiro é preciso olhar para o que está mal neste momento e não viver de fantasmas – que existem, pois vemos o que se passa na Europa e as sondagens em Portugal -, limitando o discurso a esse bicho papão e não fazendo nada depois.

Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um Presidente da República pouco interventivo ou mesmo complacente em questões de falta de transparência?

Depende dos casos. Não gostaria de fazer uma avaliação do mandato do Presidente da República por um motivo: a presidente da mesa da assembleia geral, Ana Gomes, é candidata à Presidência da República. Vamos adotar o mesmo procedimento que adotámos com Paulo Morais: no momento em que ela entregar as assinaturas no Tribunal Constitucional, e se tornar candidata oficial, vai suspender o mandato.

O que é que a Transparência e Integridade espera de um Presidente da República?

Sendo o garante do regular funcionamento das instituições, esse é o primeiro passo que pode tomar no combate à corrupção. Por exemplo, a Entidade da Transparência ainda não está a funcionar. O que é que um Presidente da República tem a dizer? O que vai fazer em relação a uma instituição que ainda não está a funcionar por puro marasmo e desinteresse do poder político? Outra questão que seria interessante era a Presidência da República publicar no seu site as reuniões que mantém com grupos de interesse. Defendemos a regulação do lobbying através da lei para que as práticas sejam impostas, mas a publicação de reuniões não necessita de nenhuma lei. Qualquer instituição, incluindo a Presidência da República, pode voluntariamente, por decisão administrativa interna, publicar essa informação sem esperar pela Assembleia da República. Também seria interessante compreender a visão e esperar que o Presidente da República exija transparência do Governo português agora que vamos iniciar a presidência do Conselho Europeu. As últimas quatro presidências têm publicado as reuniões de lobbying que mantêm e não sabemos se o Governo português pretende fazer o mesmo. E depois há aquela postura mais concreta que um Presidente da República pode ter, que é vetar determinadas leis. Seria interessante que um Presidente da República, não sei se o atual ou o futuro, tendo em conta que a lei que altera a contratação pública abre uma porta tão grande aos riscos de corrupção, tivesse como primeiro passo vetá-la.

Era um conselho que lhe daria?

Ao atual, ao futuro, ao que estiver no cargo.

E se o primeiro-ministro lhe pedisse um conselho, qual lhe daria?

Levar a corrupção política a sério, mostrar que há vontade política para combater este problema sem justificações legalistas para isso não acontecer. As questões do Código de Conduta, das reuniões de lobbying e dos conflitos de interesses podem ser resolvidas por decisão do Governo, que obviamente não tem poder de legislar sobre a Assembleia da República mas também não precisa de uma lei para gerir o seu próprio funcionamento.

Acredita que chegará o dia em que a sua associação deixará de ter razão para existir?

A minha opinião é que a corrupção é uma questão que se vai gerindo, até porque há diversos tipos de corrupção consoante as áreas e as instituições. Não há uma solução milagrosa para todos os casos. Penso que no dia em que as instituições públicas e privadas tiverem a robustez suficiente para conseguirem ter mecanismos de prevenção, deteção e repressão deste tipo de comportamentos, isso não garante em absoluto que a corrupção e a criminalidade conexa não aconteça, mas existirão mecanismos. Quando não for para prevenir, pelo menos para detetar e punir. Quando sentirmos que as instituições já estão suficientemente fortes, deixaremos de existir. Já não seremos precisos. Deixar de existir seria a nossa grande vitória.

A nova presidente da Transparência e Integridade, Susana Coroado, aponta incoerência ao Governo na doutrina dos mandatos únicos que justificou a não recondução de Vítor Caldeira na presidência do Tribunal de Contas. E pergunta: “Isto aplica-se a juízes do Tribunal Constitucional? A institutos públicos, empresas públicas, direções-gerais?”

A possibilidade de, segundo o parecer do Tribunal de Contas, as novas regras do Código dos Contratos Públicos “transformarem o mercado nacional de contratação pública em múltiplos e pequenos mercados de índole regional e local” ocorrerem num ano em que há eleições autárquicas é um facto relevante?

Extremamente relevante. O facto de as entidades adjudicantes poderem criar listas prévias de pequenas e médias empresas locais aumenta o risco de corrupção tanto do lado da oferta como da procura. Por um lado, cria incentivos às empresas para tentarem fazer tudo para estarem nessa lista e isso pode ser feito de forma extremamente transparente e legal – apresentando um bom trabalho – ou então oferecendo subornos diretos ou favorecimentos à entidade adjudicante, que em ano de eleições pode muito bem ser uma câmara municipal. Por outro, isto também cria incentivos errados por parte das entidades adjudicantes, precisamente porque podem obrigar as empresas a cumprirem algumas exigências, o que também pode implicar subornos e financiamento político ilegal. Outro das medidas destacadas pela Inspeção-Geral de Finanças é o facto de as entidades contratantes não necessitarem de fazer concursos públicos, podendo fazer logo o ajuste direto sem sequer consultarem o mercado no setor das artes. Em altura de campanha eleitoral isto abre a porta a financiamento político encapotado: uma entidade contratante pode tentar negociar com o artista que no verão faça concertos ao abrigo do programa cultural da autarquia, mas como não há averiguação de preços de mercado pode ser combinado com o artista que a câmara lhe paga mais do que o normal e depois ele faz uma perninha na campanha eleitoral.

A não recondução de Vítor Caldeira na presidência do Tribunal de Contas, na sequência do parecer que viu na alteração ao Código de Contratos Públicos uma porta aberta a regimes de exceção, pode ser encarada como um aviso ao sucessor e a responsáveis por outras entidades que fiscalizam o Estado?

Pode. Na Transparência e Integridade não tivemos posição quanto à não recondução, pois a lei permite a renovação de mandatos mas não obriga a que assim seja. Sendo o Governo que faz a proposta, pode decidir que não renova o mandato de quem quer que seja. Agora o Governo diz que é a favor de mandatos únicos e que há quatro anos que se sabia que este mandato não seria renovado. Mas aparentemente só o Governo é que o sabia e mesmo assim não se explica porque é que no dia em que terminou o mandato de Vítor Caldeira não havia já um nome para tomar posse. Teve tempo suficiente para haver planeamento e não esse vazio de poder. Há doutrinas que defendem que os mandatos únicos aumentam o grau de independência da pessoa que assume o cargo, mas isso acontece quando a pessoa já sabe, no momento em que toma posse, que não haverá renovação. E isso pode ser assegurado através da lei. Imaginando que logo que Vítor Caldeira tomou posse o Governo tinha feito saber que aquele seria um mandato único, nada garantia que se o Governo mudasse o novo titular não pudesse ter um entendimento diferente, sendo a favor das renovações. Se não estiver na lei a determinação de que é só um mandato o titular nunca vai ter a certeza de que há possibilidade de renovação ou não, o que vai diminuir a sua independência, pois vai eventualmente fazer cálculos para tentar perceber se deve favorecer este ou aquele com vista à aprovação do mandato. A forma como este processo foi conduzido é claramente um sinal do Governo de que quando não gostar de alguém pode não aprovar. Aliás, o Governo defendeu sempre a posteriori que é a favor de mandatos únicos. Isto aplica-se a juízes do Tribunal Constitucional? A institutos públicos, empresas públicas, direções-gerais? Seria muito interessante esclarecer esta questão.

A falta de atenção à corrupção política na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção é o seu calcanhar de Aquiles?

É fundamental. Basta olhar para todas as investigações nos últimos anos para perceber que a corrupção política é um problema sério. A partir do momento em que temos um ex-primeiro-ministro, um ex-juiz da Relação, um ex-procurador – já efetivamente condenado -, quando temos estas pessoas todas envolvidas em investigações ligadas com corrupção, isto é preocupante. Uma estratégia não pode ignorar a questão da corrupção política e do financiamento ilícito, como também não pode ignorar o branqueamento de capitais. Se o branqueamento de capitais não é corrupção, está intimamente ligado, até porque se não houver um combate sério ao branqueamento de capitais os potenciais criminosos que poderão cometer o crime de corrupção vão ter sempre a sensação que mesmo condenados poderão mais tarde usufruir dos seus frutos. E se alguém for aliciado para um ato corrupto mas não puder usufruir dos lucros desse crime, porque mesmo que não seja apanhado pela corrupção não vai ter forma de branquear o capital sem ser apanhado, isso diminui o incentivo à corrupção. Não é um aspeto que esteja minimamente tratado na Estratégia.

Faltam medidas concretas?

É preciso reforçar as instituições e as práticas. Por exemplo, o Governo aprovou um código de conduta, que fala da responsabilidade política, mas nem sequer refere o que isso é. Temos exemplos, noutros países, em que há graus diferentes de sanções para membros do governo consoante a gravidade do ato cometido: por exemplo, durante um mês não têm motorista ou não podem usufruir de cartão de crédito ou de despesas de representação, indo até à perda de mandato. Em Portugal não temos isso. E não temos uma instituição exterior ao Governo que possa fazer a monitorização. Sabemos se há ou não violação das regras consoante apareça um escândalo na comunicação social. Aliás, a própria estratégia defende códigos de conduta para as instituições públicas, mas depois não dá o exemplo. Pouco depois de a estratégia ter sido apresentada, o primeiro-ministro, na nossa opinião, violou o código de conduta.

Com a participação nas eleições do Benfica…

Se o primeiro-ministro, que é o garante do cumprimento do código de conduta, não o respeita, isso torna-o irrelevante. Um dos grandes falhanços desta estratégia, mas também já do pacote de transparência aprovado no ano passado na Assembleia da República, é precisamente o da regulação dos conflitos de interesse.

É a Assembleia da República que se deve impor?

Antes de mais, precisamos de mudar o paradigma. Temos sempre a posição de identificar um determinado número de incompatibilidades e dizemos que são ilegais. E tudo o que não calhe nessa malha do ilegal e do proibido pode fazer-se. O conflito de interesses dá-se quando os interesses privados de uma determinada pessoa podem colidir com o interesse público, e todos os detentores de cargos públicos, bem como todos os detentores de cargos privados, e todos nós, temos interesses particulares, sejam pessoais, familiares, financeiros ou profissionais, que podem colidir com o interesse público. Nem todos os conflitos de interesses têm o mesmo nível de gravidade. Alguns são insanáveis – e daí haver incompatibilidades -, outros são só aparentes e analisada bem a questão até se pode dizer que não há problema nenhum, e outros têm de ser geridos. Não se trata de impedir as pessoas de exercer determinado cargo, mas de dizer que em certa matéria não podem intervir. Vimos isso no processo de nomeação dos comissários europeus. Elisa Ferreira submeteu-se, como todos os outros, a uma audiência no Parlamento Europeu e os serviços jurídicos analisaram os potenciais conflitos de interesses que poderiam levantar problemas na sua pasta e colocaram-se várias questões: o de deter ações de empresas registadas no registo de lobistas da Comissão Europeia e o facto de o marido estar à frente da CCDR do Norte. Tendo ela a pasta dos fundos europeus, poderia ser um conflito de interesses. Fez-se uma investigação para perceber como o problema poderia ser sanado e a conclusão foi que Elisa Ferreira alienou as ações que detinha, visto que se considerou que essa incompatibilidade poderia ser resolvida, e em relação ao marido concluiu-se que não havia conflitos de interesse porque há tantos níveis de controlo intermédios que dificilmente poderia haver influência da comissária europeia na CCDR. Nem a integridade ou honestidade de Elisa Ferreira foram colocadas em causa nem foi impedida de exercer o cargo. Estes conflitos foram clarificados e sanados. Em Portugal isto não acontece. Se não é ilegal, há porta aberta para tudo.

Os portugueses observaram como o ministro das Finanças fez uma transição suave para governador do Banco de Portugal, sem mais entraves do que as tentativas de alguns deputados para que o processo fosse travado. Isso cria um precedente para tudo o que vier a seguir?

Essas coisas são ou não permitidas consoante os ciclos políticos e os interesses que estejam presentes. Recordo-me de que também há pouco tempo, com este Governo, surgiu a possibilidade de um deputado do PS ser nomeado para uma entidade reguladora e o seu nome nem sequer chegou ao processo de nomeação porque houve tantas críticas que terminou ali. Já nesse caso, em que havia a agravante de o ministro Mário Centeno trabalhar diretamente com o Banco de Portugal, e ter tomado decisões que vão ser avaliadas pelo Banco de Portugal – já vimos que o governador Mário Centeno elogiou bastante o trabalho do ministro Mário Centeno -, o ciclo político foi diferente e permitiu-se. Há uma grande incoerência nestas matérias. É muito raro isto acontecer e só em dois países há uma situação semelhante. Não se compreende como foi aprovada a ida de Mário Centeno para governador do Banco de Portugal. Diziam sempre “é o melhor”, mas apesar de pelo seu currículo poder ser o melhor tem um grave problema de conflito de interesses que põe em causa a forma como vai poder exercer o cargo. E assim já não é o melhor. Ainda que fosse, como é que sabemos? Houve outros candidatos? Houve um processo transparente? Houve um concurso público ou audições públicas para que pudéssemos avaliar a visão que ele e outros potenciais concorrentes têm sobre o cargo e sobre a regulação bancária e financeira para podermos comparar? As pessoas só são as melhores em comparação com outras.

Vê na governação de António Costa uma continuidade ou uma tendência para maior opacidade nestas questões?

Vemos que é cada vez mais difícil obter informação pública. O caso das subvenções vitalícias é muito óbvio. O nome dos detentores de cargos políticos que usufruíam de subvenções vitalícias sempre foi público e depois deixou de ser, sem que houvesse explicação para isso tirando a da proteção de dados, que está a ser usada para tudo e mais alguma coisa. Também vemos, e não acho que isso seja necessariamente uma questão do primeiro-ministro António Costa, toda uma classe política que absorveu o discurso da corrupção mas que não cumpre. E esse é um problema sério.

Nas próximas eleições presidenciais há dois candidatos que assentam parte do discurso nas questões da transparência e da corrupção, e apesar de serem ideologicamente muito distantes Ana Gomes e André Ventura já foram rotulados de populistas. É um risco inerente a quem denuncia estas situações?

Também somos apelidados de populistas. Não gosto do termo por um motivo: já é usado como insulto. Todos são populistas quando interessa. Pode ser Ana Gomes, pode ser André Ventura, pode ser o Presidente da República, pois até já circulou a teoria de que não havia populismo com muita força em Portugal porque ele absorvia em si todos os populismos. E no debate político é uma arma de arremesso. Cada vez que há uma tomada de posição, seja de quem for, que não seja de acordo com aquilo que o adversário concorda diz-se que é uma posição populista.

Mesmo no documento da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção lê-se que “são sistemas de frustração e de pulsão antidemocrática que motivam a perceção do combate à corrupção”…

O problema são os movimentos sociais e políticos com tendências autoritárias. Isso é extraordinariamente preocupante. Mas no dia em que essas forças chegarem ao poder não é nessa altura que a democracia estará com problemas. A chegada ao poder será uma consequência e não uma causa. A democracia já estará com problemas e falida quando as forças autoritárias chegam ao poder. Quem tem obrigação de evitar que isso aconteça é quem está no poder neste momento e tem o dever de prestar atenção ao desconforto da população, à indignação e à sensação de que há favorecimentos, de que por mais que as pessoas trabalhem e estudem não conseguem melhorar de vida e chegar a determinados cargos. Quem tem pequenas e médias empresas não consegue ganhar determinado concurso porque não tem os contactos certos. E por mais que haja casos de corrupção, o poder político não está a contribuir para tentar resolver os problemas. Primeiro é preciso olhar para o que está mal neste momento e não viver de fantasmas – que existem, pois vemos o que se passa na Europa e as sondagens em Portugal -, limitando o discurso a esse bicho papão e não fazendo nada depois.

Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um Presidente da República pouco interventivo ou mesmo complacente em questões de falta de transparência?

Depende dos casos. Não gostaria de fazer uma avaliação do mandato do Presidente da República por um motivo: a presidente da mesa da assembleia geral, Ana Gomes, é candidata à Presidência da República. Vamos adotar o mesmo procedimento que adotámos com Paulo Morais: no momento em que ela entregar as assinaturas no Tribunal Constitucional, e se tornar candidata oficial, vai suspender o mandato.

O que é que a Transparência e Integridade espera de um Presidente da República?

Sendo o garante do regular funcionamento das instituições, esse é o primeiro passo que pode tomar no combate à corrupção. Por exemplo, a Entidade da Transparência ainda não está a funcionar. O que é que um Presidente da República tem a dizer? O que vai fazer em relação a uma instituição que ainda não está a funcionar por puro marasmo e desinteresse do poder político? Outra questão que seria interessante era a Presidência da República publicar no seu site as reuniões que mantém com grupos de interesse. Defendemos a regulação do lobbying através da lei para que as práticas sejam impostas, mas a publicação de reuniões não necessita de nenhuma lei. Qualquer instituição, incluindo a Presidência da República, pode voluntariamente, por decisão administrativa interna, publicar essa informação sem esperar pela Assembleia da República. Também seria interessante compreender a visão e esperar que o Presidente da República exija transparência do Governo português agora que vamos iniciar a presidência do Conselho Europeu. As últimas quatro presidências têm publicado as reuniões de lobbying que mantêm e não sabemos se o Governo português pretende fazer o mesmo. E depois há aquela postura mais concreta que um Presidente da República pode ter, que é vetar determinadas leis. Seria interessante que um Presidente da República, não sei se o atual ou o futuro, tendo em conta que a lei que altera a contratação pública abre uma porta tão grande aos riscos de corrupção, tivesse como primeiro passo vetá-la.

Era um conselho que lhe daria?

Ao atual, ao futuro, ao que estiver no cargo.

E se o primeiro-ministro lhe pedisse um conselho, qual lhe daria?

Levar a corrupção política a sério, mostrar que há vontade política para combater este problema sem justificações legalistas para isso não acontecer. As questões do Código de Conduta, das reuniões de lobbying e dos conflitos de interesses podem ser resolvidas por decisão do Governo, que obviamente não tem poder de legislar sobre a Assembleia da República mas também não precisa de uma lei para gerir o seu próprio funcionamento.

Acredita que chegará o dia em que a sua associação deixará de ter razão para existir?

A minha opinião é que a corrupção é uma questão que se vai gerindo, até porque há diversos tipos de corrupção consoante as áreas e as instituições. Não há uma solução milagrosa para todos os casos. Penso que no dia em que as instituições públicas e privadas tiverem a robustez suficiente para conseguirem ter mecanismos de prevenção, deteção e repressão deste tipo de comportamentos, isso não garante em absoluto que a corrupção e a criminalidade conexa não aconteça, mas existirão mecanismos. Quando não for para prevenir, pelo menos para detetar e punir. Quando sentirmos que as instituições já estão suficientemente fortes, deixaremos de existir. Já não seremos precisos. Deixar de existir seria a nossa grande vitória.

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