Mau ambiente na Quercus: das lutas internas às suspeitas de gestão danosa

15-12-2019
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“Em 20 anos de Quercus, nunca tinha tido problemas com fornecedores. Agora, mais de metade não nos vende nada a crédito. Ligam-me para se queixarem de que não lhes pagam há meses. Só na zona de Castelo Branco, há atrasos superiores a 10 mil euros.” Samuel Infante, histórico ativista da Quercus e, até outubro, vogal da direção nacional, descreve a situação dramática que se vive no núcleo albicastrense como um exemplo do mau estado financeiro da associação. “Chegaram a cortar-nos a água e a luz por falta de pagamento.”

O ambientalista acrescenta que em novembro ainda não lhe tinha sido pago o ordenado de agosto. Mas é difícil perceber o que se deve à falta de fundos e o que é consequência do processo disciplinar que a direção lhe instaurou há mais seis meses, com vista ao despedimento com justa causa. Uma querela que já vem do ano passado, segundo diz. Acusações de assédio moral e de ilegalidades nos contratos de trabalho levaram recentemente a Autoridade para as Condições do Trabalho a abrir um processo de investigação contra a Quercus.

Mas a situação vai além das questões laborais – o Ministério Público está a investigar a associação por suspeita de gestão danosa. Associados e ex-dirigentes da Quercus têm sido ouvidos nos últimos meses no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), no âmbito de uma investigação desencadeada por uma denúncia anónima. A Procuradoria-Geral da República confirmou à VISÃO a existência de um inquérito em curso, acrescentando que este se encontra em segredo de justiça e que não há arguidos constituídos.

A somar a isto estão as contas da Quercus, que parecem estar no vermelho. Nos últimos seis anos, os resultados líquidos negativos somados chegaram aos 988 mil euros. De acordo com o último relatório de gestão, as dívidas atingiam os €577 mil no final de 2017. Um ano antes, a associação devia “apenas” €208 mil. Entre os responsáveis por esta subida estão os financiamentos: um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos de €116 mil para a Quercus adquirir a propriedade Monte Lopes, na zona do Tejo Internacional, e uma conta caucionada de €73 900 (na prática, um empréstimo bancário, com juros, para fazer face a dificuldades de tesouraria de curto prazo). Mas esses financiamentos não explicam tudo – as dívidas a fornecedores mais do que quadruplicaram, passando, num ano, de €51 mil para €211 mil.

A Quercus tem ainda, em caixa e em contas bancárias, €251 mil, verbas que, segundo várias fontes contactadas pela VISÃO, correspondem a campanhas e subsídios para projetos específicos, não podendo ser usadas para pagar salários e contas do dia a dia. “Estamos nas lonas. Já não há dinheiro para pagar certas deslocações. Está tudo por um fio. E isto não é só mau para a Quercus: é sobretudo mau para o ambiente e para a sociedade”, resume um colaborador, que pede para não ser identificado, com medo de represálias.

Pagamentos em falta

“O colapso deve-se a esta direção ter começado a gastar de forma descabida”, acusa Dário Cardador, antigo coordenador do núcleo do Litoral Alentejano e do Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Santo André, dispensado há três anos. O núcleo a que presidia está “moribundo”, acrescenta o também ex-presidente do conselho fiscal. Tal como outros, circunstância a que não será alheio o facto de a direção nacional ter cessado de lhes pagar a percentagem que lhes é devida das quotas dos associados da região correspondente, em violação do regulamento da associação, como acusa Samuel Infante. Dois presidentes de núcleos do Norte do País atestaram à VISÃO a retenção desses pagamentos e a inatividade de várias filiais.

Entretanto, atrasos e dificuldades em pagar salários já terão levado a direção a sugerir aos colaboradores a criação de uma comissão de trabalhadores para analisar a possibilidade de recorrerem ao lay off, em que a Segurança Social comparticipa 70% dos pagamentos. No final de 2016, restavam €484 ao Fundo de Garantia Salarial da Quercus.

Rui Berkemeier, ex-responsável pela área dos resíduos da Quercus (a que pertenceu durante 20 anos), é uma das pessoas a quem a associação tem pagamentos em falta. “Rescindi o contrato por justa causa e o tribunal deu-me razão. O acordo implicava o pagamento de €7 500, em tranches de mil euros por mês, a primeira delas a 7 de abril. Em setembro e outubro, já não recebi. Estão a desobedecer a uma ordem do tribunal.” Berkemeier já avançou com um processo de penhora de bens da Quercus, para receber os €2 500 que, em outubro, lhe eram ainda devidos.

Contactado pela VISÃO, o presidente da Quercus diz não conhecer qualquer suspeita de gestão danosa nem a investigação do Ministério Público. E desvaloriza os alegados problemas financeiros, assegurando que os atrasos de pagamentos não passam de dificuldades de tesouraria normais “em todas as outras associações de ambiente”. “Tais atrasos foram raros, pontuais e sempre resolvidos muito rapidamente. De resto, não há atualmente situações de salários em atraso nem qualquer incumprimento perante as Finanças e a Segurança Social nem perante a Banca.” Estas dificuldades, que João Branco atribui à diminuição das doações devido à crise económica, serão passageiras. “A situação é recuperável porque nunca foi dramática. Temos um bom rácio de solvabilidade e esperamos que venha a melhorar já este ano.”

Sobre a suposta sugestão para que os trabalhadores formem uma comissão com vista ao pedido de lay off, João Branco assegura que a informação está “deturpada”. “Foram explicadas as vantagens da criação da referida comissão de trabalhadores e, entre outros, foi referido que tal comissão teria de ser ouvida em diversas ocasiões, como, por exemplo, numa hipotética situação de lay off. O que me parece importante referir é que nunca houve qualquer deliberação da direção, nunca houve qualquer procedimento ou ação para desencadear lay off e não está nos planos da Quercus entrar em situação de lay off, até porque a situação económica não o justifica.”

Já a retenção, na sede, de quotas devidas aos núcleos regionais é fundamentada com o “acerto de contas” que resultam do “cruzamento de receitas e despesas”. “A direção efetua numerosas despesas em nome dos núcleos, como água, luz, telemóveis, fornecimento de viaturas, pagamento de estagiários e outras despesas. Este deve e haver é espelhado anualmente no balanço de cada núcleo e são apurados os valores em dívida ou em crédito de cada núcleo”, assegura o dirigente.

O mistério das contas

O atual presidente do conselho fiscal da Quercus tem outra opinião sobre as finanças da associação. “A coisa está complicada. Estamos mesmo no fim dos recursos”, diz João Paulo Pedrosa. O ambientalista acrescenta que gostava de saber mais, mas que lhe vedaram o acesso a atas e contas. “Fui à sede e responderam-me que não havia atas nenhumas nem me deixavam ver as contas. Expliquei ao tesoureiro que os estatutos davam ao conselho fiscal acesso a todos os documentos e ele respondeu-me: ‘Tu não és o conselho fiscal, és só o presidente do conselho fiscal’.”

João Branco desmente que tenha sido negada a consulta das contas. “Em data que não posso precisar, o presidente do conselho fiscal visitou a nossa sede em Lisboa, onde consultou todos os documentos que quis consultar. Já a 14 de maio de 2018, compareceu na sede nacional para consultar os ‘documentos da contabilidade’. Acontece que a contabilidade é feita por uma empresa externa (que até é de fora de Lisboa) e, devido ao presidente do conselho fiscal não ter avisado antecipadamente a Direção Nacional, não foi possível providenciar para esse dia os documentos contabilísticos necessários, pois todos os balancetes, faturas e outros documentos teriam de ser preparados previamente e enviados da empresa de contabilidade para a sede em tempo útil.” Entretanto, continua o dirigente da Quercus, foi marcada nova data – 22 de outubro – para consulta de “toda a documentação contabilística e administrativa solicitada”.

Essa consulta aconteceu – e foi aí que o presidente do conselho fiscal descobriu “coisas assustadoras” relacionadas com as obras no Monte Barata, em Castelo Branco (um empreendimento turístico num terreno adquirido para ser reserva biológica, comprado em 1992 com recurso a fundos europeus e do Estado português, além de doações de associados). “Segundo uma ata que consultei nesse dia, a obra foi adjudicada a uma empresa por €670 mil, muito mais do que o que estava orçamentado anteriormente.” De acordo com o relatório de 2017, o projeto custaria €540 mil – uma diferença de 130 mil euros.

O apoio do Estado à Quercus

Dentro da Quercus, o presidente tem culpado a herança deixada por anteriores direções pelas contas negras (à VISÃO, João Branco fala nos “compromissos financeiros” assumidos anteriormente, “que vieram a ter repercussões nos resultados dos últimos seis anos”. Essa acusação é refutada por Francisco Ferreira, presidente de 1996 a 2001 e membro da direção até 2011 (hoje líder da associação Zero, para onde desertaram muitas figuras de destaque da Quercus). “As contas estiveram sempre equilibradas. Nunca houve um salário em atraso ou pagamentos a fornecedores fora do prazo.”

No relatório de gestão e contas de 2016, por seu lado, culpava-se a diminuição de donativos para “menos de metade”, em relação ao ano anterior, pelos prejuízos de 456 mil euros. Os subsídios haviam descido praticamente na mesma proporção, de €304 mil para 161 mil euros. O relatório apontava então que a angariação de fundos se mantinha “sem coordenação nem orientação, sendo a principal causa dos prejuízos verificados”.

O cenário melhorou muito em 2017. Os donativos dispararam de €349 mil para €635 mil e os subsídios mais do que duplicaram, de €161 mil para €360 mil (incluindo €120 mil de financiamento do Turismo de Portugal para o empreendimento do Monte Barata). No final do ano passado, os prejuízos haviam descido para 183 mil euros.

Os apoios do Estado têm tido um peso considerável e crescente nas contas da Quercus. Em 2017, a associação recebeu €280 mil de organismos estatais. Destes, €66 mil vieram do Fundo Ambiental. Este ano, está a ser ainda mais positivo. O Ministério do Ambiente assinou um protocolo com a Quercus no valor de €100 mil, para um projeto-piloto de gestão no Parque Natural do Tejo Internacional, dos quais €67 mil dão entrada este ano e €33 mil no próximo. A este valor, somam-se €51 mil pagos em 2018 relativos a um projeto anterior, em curso. Além disso, segundo informações prestadas à VISÃO pelo Ministério do Ambiente, estão aprovadas este ano quatro candidaturas da Quercus, com um financiamento total de 209 mil euros. Ou seja, entre os dois protocolos e as quatro candidaturas deste ano, a organização não governamental (ONG) recebe 328 mil euros do Fundo Ambiental – cinco vezes mais do que no ano passado.

Ministério usa Quercus

Nos últimos meses, comenta-se pelos bastidores do movimento ambientalista uma eventual posição acrítica da Quercus face a algumas decisões polémicas do Governo. Um dos casos é a carta aberta assinada por 34 grupos e associações ambientalistas a pedir a demissão do ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, por este ter homologado o parecer que isenta o furo de Aljezur (estudo com vista à prospeção de petróleo) de Avaliação de Impacto Ambiental – a Quercus não assinou o documento, posição que o presidente explica com o “prazo muito curto para as organizações se pronunciarem”. De qualquer modo, explica João Branco, “a Quercus avançou, com outras ONG, com ações judiciais para contestar a decisão nos tribunais. E é isso que nos parece ser o mais importante de referir neste momento sobre o assunto e não estar a teorizar sobre hipotéticas demissões de ministros.”

Outro exemplo é o dossier das lamas do Tejo em Vila Velha de Ródão, em que a Quercus apoia a decisão do Governo. Em março, a associação emitira um comunicado a insurgir-se contra a deposição das lamas industriais dentro de uma área protegida (Monumento Natural das Portas de Ródão), classificando a pretensão de ilegal. Dois meses mais tarde, o presidente da Quercus declarou que a associação passava a apoiar a decisão.

Não houve, porém, um recuo. A verdade é que o primeiro comunicado não é da responsabilidade da direção nacional da Quercus, mas sim do núcleo regional. No dia seguinte a esse comunicado crítico para o Governo, o presidente terá mesmo proibido o núcleo (que abarca Vila Velha de Ródão) de voltar a comentar o assunto das lamas, alegadamente enviando um email em que declarava não gostar de ser incomodado pelo ministro. João Branco desmente. “Nunca houve qualquer pressão do ministro do Ambiente nesta ou em qualquer outra situação.” Acontece que “a Quercus solicitou mais informação sobre o assunto ao Ministério do Ambiente, informação que nos foi remetida em poucos dias”, o que levou à tomada de posição atual. Questionado pela VISÃO sobre a mudança de opinião oficial da Quercus, o ministro do Ambiente (que assegura não ter conhecimento da investigação criminal nem dos supostos constrangimentos financeiros) não refere qualquer tipo de informação enviada à associação. “O projeto foi apresentado em abril de 2018, em Vila Velha de Ródão. A Quercus esteve presente nessa sessão pública”, esclarece João Pedro Matos Fernandes.

A opinião da direção da Quercus foi aproveitada pelo Governo. O Ministério do Ambiente respondeu a uma providência cautelar da associação Zero (que tentava impedir a deposição das lamas) referindo duas vezes, na contestação para o Supremo Tribunal Administrativo, a posição favorável da Quercus, anexando ainda uma notícia da Lusa com o título: “Quercus apoia Ministério do Ambiente na retirada de lamas às Portas de Ródão.” O ministro do Ambiente prefere não comentar a utilidade da posição da Quercus. “Só os senhores juízes poderão dizer qual a valoração dos diversos argumentos por nós apresentados na sua decisão.”

O juiz levou efetivamente em consideração a opinião da Quercus, na sentença que indefere a providência cautelar. “A Quercus – conhecida associação ambientalista – reconheceu, em declarações à Lusa pelo seu presidente da direção nacional, em 2 de maio de 2018, a necessidade da operação de remoção de lamas tal como configurada na Portaria nº 213-A/2018, de 23 de março de 2018.”

A VISÃO pediu a presidentes de outras associações para interpretar a alegada turbulência na Quercus. A maioria recusa-se a comentar formalmente, por acreditar que críticas dentro do movimento ambientalista enfraquecem o ativismo como um todo. Outros dizem-se preocupados com a situação da associação.

Os tumultos na Quercus estão a levar vários associados a unir-se para combater a atual direção. O objetivo é derrubar os atuais dirigentes e marcar eleições antecipadas.

(Artigo publicado na VISÃO 1340 de 8 de novembro)

“Em 20 anos de Quercus, nunca tinha tido problemas com fornecedores. Agora, mais de metade não nos vende nada a crédito. Ligam-me para se queixarem de que não lhes pagam há meses. Só na zona de Castelo Branco, há atrasos superiores a 10 mil euros.” Samuel Infante, histórico ativista da Quercus e, até outubro, vogal da direção nacional, descreve a situação dramática que se vive no núcleo albicastrense como um exemplo do mau estado financeiro da associação. “Chegaram a cortar-nos a água e a luz por falta de pagamento.”

O ambientalista acrescenta que em novembro ainda não lhe tinha sido pago o ordenado de agosto. Mas é difícil perceber o que se deve à falta de fundos e o que é consequência do processo disciplinar que a direção lhe instaurou há mais seis meses, com vista ao despedimento com justa causa. Uma querela que já vem do ano passado, segundo diz. Acusações de assédio moral e de ilegalidades nos contratos de trabalho levaram recentemente a Autoridade para as Condições do Trabalho a abrir um processo de investigação contra a Quercus.

Mas a situação vai além das questões laborais – o Ministério Público está a investigar a associação por suspeita de gestão danosa. Associados e ex-dirigentes da Quercus têm sido ouvidos nos últimos meses no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), no âmbito de uma investigação desencadeada por uma denúncia anónima. A Procuradoria-Geral da República confirmou à VISÃO a existência de um inquérito em curso, acrescentando que este se encontra em segredo de justiça e que não há arguidos constituídos.

A somar a isto estão as contas da Quercus, que parecem estar no vermelho. Nos últimos seis anos, os resultados líquidos negativos somados chegaram aos 988 mil euros. De acordo com o último relatório de gestão, as dívidas atingiam os €577 mil no final de 2017. Um ano antes, a associação devia “apenas” €208 mil. Entre os responsáveis por esta subida estão os financiamentos: um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos de €116 mil para a Quercus adquirir a propriedade Monte Lopes, na zona do Tejo Internacional, e uma conta caucionada de €73 900 (na prática, um empréstimo bancário, com juros, para fazer face a dificuldades de tesouraria de curto prazo). Mas esses financiamentos não explicam tudo – as dívidas a fornecedores mais do que quadruplicaram, passando, num ano, de €51 mil para €211 mil.

A Quercus tem ainda, em caixa e em contas bancárias, €251 mil, verbas que, segundo várias fontes contactadas pela VISÃO, correspondem a campanhas e subsídios para projetos específicos, não podendo ser usadas para pagar salários e contas do dia a dia. “Estamos nas lonas. Já não há dinheiro para pagar certas deslocações. Está tudo por um fio. E isto não é só mau para a Quercus: é sobretudo mau para o ambiente e para a sociedade”, resume um colaborador, que pede para não ser identificado, com medo de represálias.

Pagamentos em falta

“O colapso deve-se a esta direção ter começado a gastar de forma descabida”, acusa Dário Cardador, antigo coordenador do núcleo do Litoral Alentejano e do Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Santo André, dispensado há três anos. O núcleo a que presidia está “moribundo”, acrescenta o também ex-presidente do conselho fiscal. Tal como outros, circunstância a que não será alheio o facto de a direção nacional ter cessado de lhes pagar a percentagem que lhes é devida das quotas dos associados da região correspondente, em violação do regulamento da associação, como acusa Samuel Infante. Dois presidentes de núcleos do Norte do País atestaram à VISÃO a retenção desses pagamentos e a inatividade de várias filiais.

Entretanto, atrasos e dificuldades em pagar salários já terão levado a direção a sugerir aos colaboradores a criação de uma comissão de trabalhadores para analisar a possibilidade de recorrerem ao lay off, em que a Segurança Social comparticipa 70% dos pagamentos. No final de 2016, restavam €484 ao Fundo de Garantia Salarial da Quercus.

Rui Berkemeier, ex-responsável pela área dos resíduos da Quercus (a que pertenceu durante 20 anos), é uma das pessoas a quem a associação tem pagamentos em falta. “Rescindi o contrato por justa causa e o tribunal deu-me razão. O acordo implicava o pagamento de €7 500, em tranches de mil euros por mês, a primeira delas a 7 de abril. Em setembro e outubro, já não recebi. Estão a desobedecer a uma ordem do tribunal.” Berkemeier já avançou com um processo de penhora de bens da Quercus, para receber os €2 500 que, em outubro, lhe eram ainda devidos.

Contactado pela VISÃO, o presidente da Quercus diz não conhecer qualquer suspeita de gestão danosa nem a investigação do Ministério Público. E desvaloriza os alegados problemas financeiros, assegurando que os atrasos de pagamentos não passam de dificuldades de tesouraria normais “em todas as outras associações de ambiente”. “Tais atrasos foram raros, pontuais e sempre resolvidos muito rapidamente. De resto, não há atualmente situações de salários em atraso nem qualquer incumprimento perante as Finanças e a Segurança Social nem perante a Banca.” Estas dificuldades, que João Branco atribui à diminuição das doações devido à crise económica, serão passageiras. “A situação é recuperável porque nunca foi dramática. Temos um bom rácio de solvabilidade e esperamos que venha a melhorar já este ano.”

Sobre a suposta sugestão para que os trabalhadores formem uma comissão com vista ao pedido de lay off, João Branco assegura que a informação está “deturpada”. “Foram explicadas as vantagens da criação da referida comissão de trabalhadores e, entre outros, foi referido que tal comissão teria de ser ouvida em diversas ocasiões, como, por exemplo, numa hipotética situação de lay off. O que me parece importante referir é que nunca houve qualquer deliberação da direção, nunca houve qualquer procedimento ou ação para desencadear lay off e não está nos planos da Quercus entrar em situação de lay off, até porque a situação económica não o justifica.”

Já a retenção, na sede, de quotas devidas aos núcleos regionais é fundamentada com o “acerto de contas” que resultam do “cruzamento de receitas e despesas”. “A direção efetua numerosas despesas em nome dos núcleos, como água, luz, telemóveis, fornecimento de viaturas, pagamento de estagiários e outras despesas. Este deve e haver é espelhado anualmente no balanço de cada núcleo e são apurados os valores em dívida ou em crédito de cada núcleo”, assegura o dirigente.

O mistério das contas

O atual presidente do conselho fiscal da Quercus tem outra opinião sobre as finanças da associação. “A coisa está complicada. Estamos mesmo no fim dos recursos”, diz João Paulo Pedrosa. O ambientalista acrescenta que gostava de saber mais, mas que lhe vedaram o acesso a atas e contas. “Fui à sede e responderam-me que não havia atas nenhumas nem me deixavam ver as contas. Expliquei ao tesoureiro que os estatutos davam ao conselho fiscal acesso a todos os documentos e ele respondeu-me: ‘Tu não és o conselho fiscal, és só o presidente do conselho fiscal’.”

João Branco desmente que tenha sido negada a consulta das contas. “Em data que não posso precisar, o presidente do conselho fiscal visitou a nossa sede em Lisboa, onde consultou todos os documentos que quis consultar. Já a 14 de maio de 2018, compareceu na sede nacional para consultar os ‘documentos da contabilidade’. Acontece que a contabilidade é feita por uma empresa externa (que até é de fora de Lisboa) e, devido ao presidente do conselho fiscal não ter avisado antecipadamente a Direção Nacional, não foi possível providenciar para esse dia os documentos contabilísticos necessários, pois todos os balancetes, faturas e outros documentos teriam de ser preparados previamente e enviados da empresa de contabilidade para a sede em tempo útil.” Entretanto, continua o dirigente da Quercus, foi marcada nova data – 22 de outubro – para consulta de “toda a documentação contabilística e administrativa solicitada”.

Essa consulta aconteceu – e foi aí que o presidente do conselho fiscal descobriu “coisas assustadoras” relacionadas com as obras no Monte Barata, em Castelo Branco (um empreendimento turístico num terreno adquirido para ser reserva biológica, comprado em 1992 com recurso a fundos europeus e do Estado português, além de doações de associados). “Segundo uma ata que consultei nesse dia, a obra foi adjudicada a uma empresa por €670 mil, muito mais do que o que estava orçamentado anteriormente.” De acordo com o relatório de 2017, o projeto custaria €540 mil – uma diferença de 130 mil euros.

O apoio do Estado à Quercus

Dentro da Quercus, o presidente tem culpado a herança deixada por anteriores direções pelas contas negras (à VISÃO, João Branco fala nos “compromissos financeiros” assumidos anteriormente, “que vieram a ter repercussões nos resultados dos últimos seis anos”. Essa acusação é refutada por Francisco Ferreira, presidente de 1996 a 2001 e membro da direção até 2011 (hoje líder da associação Zero, para onde desertaram muitas figuras de destaque da Quercus). “As contas estiveram sempre equilibradas. Nunca houve um salário em atraso ou pagamentos a fornecedores fora do prazo.”

No relatório de gestão e contas de 2016, por seu lado, culpava-se a diminuição de donativos para “menos de metade”, em relação ao ano anterior, pelos prejuízos de 456 mil euros. Os subsídios haviam descido praticamente na mesma proporção, de €304 mil para 161 mil euros. O relatório apontava então que a angariação de fundos se mantinha “sem coordenação nem orientação, sendo a principal causa dos prejuízos verificados”.

O cenário melhorou muito em 2017. Os donativos dispararam de €349 mil para €635 mil e os subsídios mais do que duplicaram, de €161 mil para €360 mil (incluindo €120 mil de financiamento do Turismo de Portugal para o empreendimento do Monte Barata). No final do ano passado, os prejuízos haviam descido para 183 mil euros.

Os apoios do Estado têm tido um peso considerável e crescente nas contas da Quercus. Em 2017, a associação recebeu €280 mil de organismos estatais. Destes, €66 mil vieram do Fundo Ambiental. Este ano, está a ser ainda mais positivo. O Ministério do Ambiente assinou um protocolo com a Quercus no valor de €100 mil, para um projeto-piloto de gestão no Parque Natural do Tejo Internacional, dos quais €67 mil dão entrada este ano e €33 mil no próximo. A este valor, somam-se €51 mil pagos em 2018 relativos a um projeto anterior, em curso. Além disso, segundo informações prestadas à VISÃO pelo Ministério do Ambiente, estão aprovadas este ano quatro candidaturas da Quercus, com um financiamento total de 209 mil euros. Ou seja, entre os dois protocolos e as quatro candidaturas deste ano, a organização não governamental (ONG) recebe 328 mil euros do Fundo Ambiental – cinco vezes mais do que no ano passado.

Ministério usa Quercus

Nos últimos meses, comenta-se pelos bastidores do movimento ambientalista uma eventual posição acrítica da Quercus face a algumas decisões polémicas do Governo. Um dos casos é a carta aberta assinada por 34 grupos e associações ambientalistas a pedir a demissão do ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, por este ter homologado o parecer que isenta o furo de Aljezur (estudo com vista à prospeção de petróleo) de Avaliação de Impacto Ambiental – a Quercus não assinou o documento, posição que o presidente explica com o “prazo muito curto para as organizações se pronunciarem”. De qualquer modo, explica João Branco, “a Quercus avançou, com outras ONG, com ações judiciais para contestar a decisão nos tribunais. E é isso que nos parece ser o mais importante de referir neste momento sobre o assunto e não estar a teorizar sobre hipotéticas demissões de ministros.”

Outro exemplo é o dossier das lamas do Tejo em Vila Velha de Ródão, em que a Quercus apoia a decisão do Governo. Em março, a associação emitira um comunicado a insurgir-se contra a deposição das lamas industriais dentro de uma área protegida (Monumento Natural das Portas de Ródão), classificando a pretensão de ilegal. Dois meses mais tarde, o presidente da Quercus declarou que a associação passava a apoiar a decisão.

Não houve, porém, um recuo. A verdade é que o primeiro comunicado não é da responsabilidade da direção nacional da Quercus, mas sim do núcleo regional. No dia seguinte a esse comunicado crítico para o Governo, o presidente terá mesmo proibido o núcleo (que abarca Vila Velha de Ródão) de voltar a comentar o assunto das lamas, alegadamente enviando um email em que declarava não gostar de ser incomodado pelo ministro. João Branco desmente. “Nunca houve qualquer pressão do ministro do Ambiente nesta ou em qualquer outra situação.” Acontece que “a Quercus solicitou mais informação sobre o assunto ao Ministério do Ambiente, informação que nos foi remetida em poucos dias”, o que levou à tomada de posição atual. Questionado pela VISÃO sobre a mudança de opinião oficial da Quercus, o ministro do Ambiente (que assegura não ter conhecimento da investigação criminal nem dos supostos constrangimentos financeiros) não refere qualquer tipo de informação enviada à associação. “O projeto foi apresentado em abril de 2018, em Vila Velha de Ródão. A Quercus esteve presente nessa sessão pública”, esclarece João Pedro Matos Fernandes.

A opinião da direção da Quercus foi aproveitada pelo Governo. O Ministério do Ambiente respondeu a uma providência cautelar da associação Zero (que tentava impedir a deposição das lamas) referindo duas vezes, na contestação para o Supremo Tribunal Administrativo, a posição favorável da Quercus, anexando ainda uma notícia da Lusa com o título: “Quercus apoia Ministério do Ambiente na retirada de lamas às Portas de Ródão.” O ministro do Ambiente prefere não comentar a utilidade da posição da Quercus. “Só os senhores juízes poderão dizer qual a valoração dos diversos argumentos por nós apresentados na sua decisão.”

O juiz levou efetivamente em consideração a opinião da Quercus, na sentença que indefere a providência cautelar. “A Quercus – conhecida associação ambientalista – reconheceu, em declarações à Lusa pelo seu presidente da direção nacional, em 2 de maio de 2018, a necessidade da operação de remoção de lamas tal como configurada na Portaria nº 213-A/2018, de 23 de março de 2018.”

A VISÃO pediu a presidentes de outras associações para interpretar a alegada turbulência na Quercus. A maioria recusa-se a comentar formalmente, por acreditar que críticas dentro do movimento ambientalista enfraquecem o ativismo como um todo. Outros dizem-se preocupados com a situação da associação.

Os tumultos na Quercus estão a levar vários associados a unir-se para combater a atual direção. O objetivo é derrubar os atuais dirigentes e marcar eleições antecipadas.

(Artigo publicado na VISÃO 1340 de 8 de novembro)

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