É verdade que “os pobres” votam no PS?

01-01-2020
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Há duas formas de olhar para a frase do deputado da Iniciativa Liberal. Uma é analisar a linha de raciocínio (é uma ideia lógica?); a outra é olhar para os factos (o que sustenta a ideia?). Vamos por partes.

Na sua estreia como deputado na Assembleia da República, João Cotrim de Figueiredo, da Iniciativa Liberal, disse coisas extraordinárias.

Uma delas foi esta: “O PS sabe que mantendo um país amorfo e resignado tem um grupo de pobres, desesperados e dependentes do Estado que lhe irão dar o voto. A pobreza de muitos é o que segura o PS ao poder.”

A seguir, seguindo as boas práticas aristotélicas, apresentou a moral da história: como o PS só “existe para estar no poder, nunca irá resolver o problema da pobreza”, pois são os pobres que permitem ao PS “manter-se lá”.

Foi o tom de acinte com que a frase foi dita que despertou a minha curiosidade. Há duas formas de olhar para isto. Uma é analisar a linha de raciocínio (é uma ideia lógica?); a outra é olhar para os factos (o que sustenta a ideia?). Vamos por partes.

Cotrim de Figueiredo diz que “os pobres” votam no PS como se fosse um axioma, uma verdade tão óbvia e consensual que dispensa demonstração. Tão inquestionável como dizer “penso, logo existo”. Só um louco tem dúvidas.

A seguir, o deputado apresenta as consequências da sua evidência: o PS produz pobres para se manter no poder e por isso não os quer tirar da pobreza. Favorecer os pobres seria suicídio político. Levada a tese ao extremo, fiquei à espera que Cotrim de Figueiredo aconselhasse o PS a favorecer os ricos. Afinal, seria a melhor forma de manter os pobres na pobreza.

Pequeno problema: os factos mostram que o axioma é falso e destroem a tese do deputado.

Aceitando a simplicidade do termo “pobres” usada, em Portugal os pobres votam pouco e votam menos do que os ricos.

Foi isso que ouvi dos seis cientistas políticos com quem falei depois do discurso. E o que confirmei no novo estudo Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal: diagnóstico e hipóteses de reforma, de João Cancela e Marta Vicente, apresentado em 2018 na conferência do think tank Portugal Talks promovido pela Câmara de Cascais. Nas eleições de 1975, 92% dos recenseados votaram (recorde português de participação) e nas legislativas de Outubro, 51,4% dos eleitores não votaram (recorde de abstenção). O que aconteceu?

“Entre 1985 e 2002 as diferenças de propensão para o voto entre os 20% com rendimentos mais baixos e os 20% com rendimentos mais altos só foram significativas numa ocasião (1991)”, dizem os investigadores. Mas “entre 2005 e 2015 cavou-se um fosso entre estes dois grupos” e “em 2015 verificou-se uma diferença de 20 pontos percentuais na propensão para o voto” entre pobres e ricos. Conclusão: “A desigualdade económica é hoje um factor a ter em conta na explicação da participação eleitoral em Portugal.”

A seguir, fui ler o ensaio de André Freire no livro As Eleições Legislativas e Presidenciais 2005-2006 – Comportamento Eleitoral e Atitudes Políticas dos Portugueses (edição Imprensa de Ciências Sociais, 2009), com organização de Marina Costa Lobo e Pedro Magalhães. É aí que o investigador mostra que o perfil dos eleitores do PCP é idêntico ao dos do PS em vários critérios menos em três: os comunistas são menos religiosos, mais sindicalizados e têm um estatuto socio-económico mais baixo. São mais pobres.

É também aí que Freire diz que “o voto dos portugueses está fracamente ancorado na estrutura de clivagens sociais (classe social, religião, região, habitat)”, um “traço que remonta [à] transição para a democracia e às estratégias dos partidos nessa fase fundacional”. Esta ideia também é dita por todos com quem falei: a classe social tem pouco peso no voto, a importância do nível de rendimentos é ténue e difusa, todos os partidos recolhem votantes de diferentes extractos sociais e os eleitores do PS e do PSD são parecidos e ambos muito heterogéneos.

Cavaco Silva sabe tudo isto. Quando foi candidato nas presidenciais de 2006, “fez um manifesto e uma campanha assumindo como suas muitas das posições caras ao eleitorado centro-esquerda” e apresentou-se “apoiado por uma larga frente de grupos sociais” — empresários, sindicalistas, mulheres e imigrantes, escreve Freire. Talvez por tudo isto, em 2006, o eleitorado de Cavaco “é menos instruído, mas também menos religioso” do que o eleitorado de Mário Soares e “identifica-se mais com as classes mais baixas”. O deputado liberal deve lembrar-se.

Como estamos 20 anos depois? O único estudo recente que encontrei sobre comportamento eleitoral é de Alexandre Afonso e Fabio Bulfone (Electoral Coalitions and Policy Reversals in Portugal and Italy in the Aftermath of the Eurozone Crisis, 2019).

Sugiro a leitura do quadro 4. Os autores usam o esquema de classes moderno proposto por Daniel Oesch. Em vez de ricos e pobres, analisam a sociedade em oito categorias: trabalhadores produtivos, pequenos empresários, trabalhadores de serviços, administrativos, gestores, profissionais socio-culturais, profissionais técnicos e profissionais por conta própria.

Aí aprendi que 33% dos eleitores portugueses são operários (obras, carpinteiros, mecânicos) e que os operários votam em todos os partidos. São 43% do eleitorado do PCP, 39,6% do PS, 26% do PSD/CDS e 20,9% do BE. Os trabalhadores de serviços (empregados de limpeza e mesa) são 21,5% no total e também votam em todos os partidos: são 25% do eleitorado do PCP, 22,4% do PS, 20,6% do PSD/CDS e 14% do BE. E o mesmo acontece com os gestores: são 6,2% do total de eleitores e representam 8% do BE, 7,9% do centro-direita, 4,8% do PS e 4,6% do PCP. É giro dizer no Parlamento que o PS se alimenta dos pobres. Mas não cola.​

Há duas formas de olhar para a frase do deputado da Iniciativa Liberal. Uma é analisar a linha de raciocínio (é uma ideia lógica?); a outra é olhar para os factos (o que sustenta a ideia?). Vamos por partes.

Na sua estreia como deputado na Assembleia da República, João Cotrim de Figueiredo, da Iniciativa Liberal, disse coisas extraordinárias.

Uma delas foi esta: “O PS sabe que mantendo um país amorfo e resignado tem um grupo de pobres, desesperados e dependentes do Estado que lhe irão dar o voto. A pobreza de muitos é o que segura o PS ao poder.”

A seguir, seguindo as boas práticas aristotélicas, apresentou a moral da história: como o PS só “existe para estar no poder, nunca irá resolver o problema da pobreza”, pois são os pobres que permitem ao PS “manter-se lá”.

Foi o tom de acinte com que a frase foi dita que despertou a minha curiosidade. Há duas formas de olhar para isto. Uma é analisar a linha de raciocínio (é uma ideia lógica?); a outra é olhar para os factos (o que sustenta a ideia?). Vamos por partes.

Cotrim de Figueiredo diz que “os pobres” votam no PS como se fosse um axioma, uma verdade tão óbvia e consensual que dispensa demonstração. Tão inquestionável como dizer “penso, logo existo”. Só um louco tem dúvidas.

A seguir, o deputado apresenta as consequências da sua evidência: o PS produz pobres para se manter no poder e por isso não os quer tirar da pobreza. Favorecer os pobres seria suicídio político. Levada a tese ao extremo, fiquei à espera que Cotrim de Figueiredo aconselhasse o PS a favorecer os ricos. Afinal, seria a melhor forma de manter os pobres na pobreza.

Pequeno problema: os factos mostram que o axioma é falso e destroem a tese do deputado.

Aceitando a simplicidade do termo “pobres” usada, em Portugal os pobres votam pouco e votam menos do que os ricos.

Foi isso que ouvi dos seis cientistas políticos com quem falei depois do discurso. E o que confirmei no novo estudo Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal: diagnóstico e hipóteses de reforma, de João Cancela e Marta Vicente, apresentado em 2018 na conferência do think tank Portugal Talks promovido pela Câmara de Cascais. Nas eleições de 1975, 92% dos recenseados votaram (recorde português de participação) e nas legislativas de Outubro, 51,4% dos eleitores não votaram (recorde de abstenção). O que aconteceu?

“Entre 1985 e 2002 as diferenças de propensão para o voto entre os 20% com rendimentos mais baixos e os 20% com rendimentos mais altos só foram significativas numa ocasião (1991)”, dizem os investigadores. Mas “entre 2005 e 2015 cavou-se um fosso entre estes dois grupos” e “em 2015 verificou-se uma diferença de 20 pontos percentuais na propensão para o voto” entre pobres e ricos. Conclusão: “A desigualdade económica é hoje um factor a ter em conta na explicação da participação eleitoral em Portugal.”

A seguir, fui ler o ensaio de André Freire no livro As Eleições Legislativas e Presidenciais 2005-2006 – Comportamento Eleitoral e Atitudes Políticas dos Portugueses (edição Imprensa de Ciências Sociais, 2009), com organização de Marina Costa Lobo e Pedro Magalhães. É aí que o investigador mostra que o perfil dos eleitores do PCP é idêntico ao dos do PS em vários critérios menos em três: os comunistas são menos religiosos, mais sindicalizados e têm um estatuto socio-económico mais baixo. São mais pobres.

É também aí que Freire diz que “o voto dos portugueses está fracamente ancorado na estrutura de clivagens sociais (classe social, religião, região, habitat)”, um “traço que remonta [à] transição para a democracia e às estratégias dos partidos nessa fase fundacional”. Esta ideia também é dita por todos com quem falei: a classe social tem pouco peso no voto, a importância do nível de rendimentos é ténue e difusa, todos os partidos recolhem votantes de diferentes extractos sociais e os eleitores do PS e do PSD são parecidos e ambos muito heterogéneos.

Cavaco Silva sabe tudo isto. Quando foi candidato nas presidenciais de 2006, “fez um manifesto e uma campanha assumindo como suas muitas das posições caras ao eleitorado centro-esquerda” e apresentou-se “apoiado por uma larga frente de grupos sociais” — empresários, sindicalistas, mulheres e imigrantes, escreve Freire. Talvez por tudo isto, em 2006, o eleitorado de Cavaco “é menos instruído, mas também menos religioso” do que o eleitorado de Mário Soares e “identifica-se mais com as classes mais baixas”. O deputado liberal deve lembrar-se.

Como estamos 20 anos depois? O único estudo recente que encontrei sobre comportamento eleitoral é de Alexandre Afonso e Fabio Bulfone (Electoral Coalitions and Policy Reversals in Portugal and Italy in the Aftermath of the Eurozone Crisis, 2019).

Sugiro a leitura do quadro 4. Os autores usam o esquema de classes moderno proposto por Daniel Oesch. Em vez de ricos e pobres, analisam a sociedade em oito categorias: trabalhadores produtivos, pequenos empresários, trabalhadores de serviços, administrativos, gestores, profissionais socio-culturais, profissionais técnicos e profissionais por conta própria.

Aí aprendi que 33% dos eleitores portugueses são operários (obras, carpinteiros, mecânicos) e que os operários votam em todos os partidos. São 43% do eleitorado do PCP, 39,6% do PS, 26% do PSD/CDS e 20,9% do BE. Os trabalhadores de serviços (empregados de limpeza e mesa) são 21,5% no total e também votam em todos os partidos: são 25% do eleitorado do PCP, 22,4% do PS, 20,6% do PSD/CDS e 14% do BE. E o mesmo acontece com os gestores: são 6,2% do total de eleitores e representam 8% do BE, 7,9% do centro-direita, 4,8% do PS e 4,6% do PCP. É giro dizer no Parlamento que o PS se alimenta dos pobres. Mas não cola.​

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