Toureiro Equestre, quo vadis?

15-11-2019
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As tradições, a arte, tudo o que
nos rodeia, evolui. Se não o fazem, acabam por se ir perdendo no horizonte da
memória. A tauromaquia não foge a este princípio. Há que evoluir, há que
procurar novos motivos de interesse, mas também há algo que jamais se pode
perder: as bases, a essência e os princípios. Tudo isto parece um pouco
contraditório, mas é importante que se tenha consciência de que há uma
fronteira muito ténue entre o que se entende por evolução e aquilo que é a
transformação/desvirtuação. Serve esta pequena introdução para que se reflicta um
pouco sobre o actual panorama do Toureio Equestre em Portugal.

Neste momento, e cada vez mais, é
debatida a forma de atrair mais aficionados às praças de toiros, mediante a
apresentação de cartéis aliciantes. O que é facto é que a chamada “nova
geração” não tem tido o condão de arrastar multidões. O toureio nacional parece
estar adormecido, faltando figuras que arrastem multidões. Ainda são os nomes
da “geração de ouro” que chamam o público às bancadas (quando chamam!). Não há
aqui qualquer tipo de saudosismo ou apologia do “antigamente”, mas a realidade
é que não tem havido evolução que cative de forma verdadeira e com emoção, quem
assiste. Cada vez mais assistimos a imitações. Imitações que pura e
simplesmente descartam as já referidas bases e essência. Tudo ao abrigo de uma
pretensa evolução que não passa de um desvirtuar das regras mais elementares. É
claro que existem excepções e, ainda bem que as há! Mas o problema é mesmo
esse: são excepções, não são a maioria.

Portugal assiste a uma espécie de
“mais do mesmo”, com a agravante de esse “mesmo” estar esbatido. Há algumas
décadas, assistiu-se à grande revolução do toureio equestre, facto tão badalado
sempre que se fala em João Moura, seu autor. Houve realmente uma alteração de
conceito, mas as bases sempre estiveram lá e foram respeitadas. Serviu esta
acção do Cavaleiro de Monforte, para que também o toureio equestre evoluísse (e
de que maneira) em Espanha. No entanto, agora deu-se uma espécie de efeito
boomerang: muitos dos que por cá andam e vestem de casaca e tricórnio, parecem
ter colocado de parte os fundamentos da Arte que elegeram, para se dedicarem ao
que de menos verdadeiro vem do lado dos vizinhos Ibéricos. Há quem diga que é
de facto uma questão de conceito. Talvez seja…

Tourear a cavalo não se resume à
cravagem dos ferros. O momento da reunião, as sortes, aquela fracção de segundo
interminável é o resultado máximo de toda uma série de momentos de preparação
que são necessários e fundamentais. Exige-se a um Cavaleiro que saiba montar a
cavalo. Não é possível alguém querer dominar o ímpeto e a investida de um toiro
se não souber, antes de tudo, ligar-se à sua montada como se um fosse o
prolongamento do corpo do outro. Hoje assiste-se a uma equitação pior, apesar
de existirem cavalos cada vez melhores e com mais ferramentas. Hoje já ninguém
vai buscar uma montada que anteriormente andou na lavoura, preso a um sacho.
Hoje todos sabem a linhagem das suas montadas e escolhem-nas por isso.
Curiosamente, os cavaleiros ditos “classicistas”, são aqueles que melhor
equitação demonstram. São aqueles que de facto parecem um centauro em praça,
mostrando uma união e um domínio tal com a montada, ao ponto de nem marcas de
esporas se verem no final das lides.

Aliado a uma equitação mais
deficitária, vem todo o resto. E quando acima referia que a cravagem do ferro é
o resultado de toda uma preparação, também me referia à interpretação do
comportamento do toiro. Há que observar o oponente, há que prová-lo com a
montada, há que perceber quais os seus terrenos, há que mexer com o toiro e
dar-lhe a lide adequada, não a que vem decorada de casa. Muitos destes aspectos
têm-se perdido, parecendo que já muito poucos lidam. Talvez uma das razões para
que isto aconteça, seja a escolha de encastes que, hoje em dia, já é regra para
muitos. São poucos os que enfrentam qualquer encaste. Já quase não existem
Cavaleiros que se formam para enfrentar qualquer toiro. Agora são formados
toiros que sejam capazes de enfrentar qualquer Cavaleiro. Nem vale a pena estar
a amaldiçoar o encaste Murube, tão de eleição dos Cavaleiros actuais. Os
toiros-telecomandados e quase “costum-made”. Mas é maioritariamente com esses
que se assiste ao que tem proliferado nas praças nacionais.

As lides (quando existem, na
verdadeira acessão da palavra) são cada vez mais acessórias. Não se brega, não
se escolhem bem os terrenos. Interessam sim, os adornos (muitos!), os números
circenses do cavalinho. As sortes não são preparadas, interessando apenas
cravar, de preferência com um câmbio gigante na cara de um toiro com pouco
andamento, deixando o ferro quando o oponente já está quase para além da
garupa. Rematar a sorte? Muito poucos sabem o que é! Assim se toureia… o
público (todos nós!) … e o público gosta! O Cavaleiro explode de emoção e todos
aplaudem uma obra distorcida. Deixou de ser a acção na arena a transmitir
emoção, para ser o Cavaleiro com a sua euforia e exuberância de festejos a
procurar transmiti-la à assistência. O público gosta…. Pois! Mas, depois de
assistirem a duas ou três corridas em que tudo é igual, em que tudo está
formatado e já se sabe ao que se vai, esse mesmo público começa a querer ver e
sentir a verdadeira emoção. Se não a encontra, se não a consegue renovar,
procura outro tipo de fonte e abandona as bancadas das praças de toiros.

É no toureio fundamental, na
preparação das lides, no cravar ao estribo vencendo o piton, no enfrentar
toiros de verdade que mostrem perigo, que está a “galinha dos ovos de oiro”.
Sempre ali esteve, não são necessários outros artefactos. Há que evoluir, mas
há que perceber que a verdadeira emoção, é aquela que resulta na transformação
do verdadeiro perigo em momentos sublimes de arte. A verdadeira emoção é a que
resulta da fusão do conhecimento e capacidade de entendimento Cavaleiro/Cavalo
com o ímpeto bravio do toiro. São estes momentos de pura imprevisibilidade que
fazem com que as pessoas queiram assistir a momentos irrepetíveis de forma
repetida, sentindo a emoção e verdade que o toureiro a cavalo deve transmitir.

Bruno Bettencourt
Foto: Paulo Gil

Caregoria: Equestre, Opinião

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As tradições, a arte, tudo o que
nos rodeia, evolui. Se não o fazem, acabam por se ir perdendo no horizonte da
memória. A tauromaquia não foge a este princípio. Há que evoluir, há que
procurar novos motivos de interesse, mas também há algo que jamais se pode
perder: as bases, a essência e os princípios. Tudo isto parece um pouco
contraditório, mas é importante que se tenha consciência de que há uma
fronteira muito ténue entre o que se entende por evolução e aquilo que é a
transformação/desvirtuação. Serve esta pequena introdução para que se reflicta um
pouco sobre o actual panorama do Toureio Equestre em Portugal.

Neste momento, e cada vez mais, é
debatida a forma de atrair mais aficionados às praças de toiros, mediante a
apresentação de cartéis aliciantes. O que é facto é que a chamada “nova
geração” não tem tido o condão de arrastar multidões. O toureio nacional parece
estar adormecido, faltando figuras que arrastem multidões. Ainda são os nomes
da “geração de ouro” que chamam o público às bancadas (quando chamam!). Não há
aqui qualquer tipo de saudosismo ou apologia do “antigamente”, mas a realidade
é que não tem havido evolução que cative de forma verdadeira e com emoção, quem
assiste. Cada vez mais assistimos a imitações. Imitações que pura e
simplesmente descartam as já referidas bases e essência. Tudo ao abrigo de uma
pretensa evolução que não passa de um desvirtuar das regras mais elementares. É
claro que existem excepções e, ainda bem que as há! Mas o problema é mesmo
esse: são excepções, não são a maioria.

Portugal assiste a uma espécie de
“mais do mesmo”, com a agravante de esse “mesmo” estar esbatido. Há algumas
décadas, assistiu-se à grande revolução do toureio equestre, facto tão badalado
sempre que se fala em João Moura, seu autor. Houve realmente uma alteração de
conceito, mas as bases sempre estiveram lá e foram respeitadas. Serviu esta
acção do Cavaleiro de Monforte, para que também o toureio equestre evoluísse (e
de que maneira) em Espanha. No entanto, agora deu-se uma espécie de efeito
boomerang: muitos dos que por cá andam e vestem de casaca e tricórnio, parecem
ter colocado de parte os fundamentos da Arte que elegeram, para se dedicarem ao
que de menos verdadeiro vem do lado dos vizinhos Ibéricos. Há quem diga que é
de facto uma questão de conceito. Talvez seja…

Tourear a cavalo não se resume à
cravagem dos ferros. O momento da reunião, as sortes, aquela fracção de segundo
interminável é o resultado máximo de toda uma série de momentos de preparação
que são necessários e fundamentais. Exige-se a um Cavaleiro que saiba montar a
cavalo. Não é possível alguém querer dominar o ímpeto e a investida de um toiro
se não souber, antes de tudo, ligar-se à sua montada como se um fosse o
prolongamento do corpo do outro. Hoje assiste-se a uma equitação pior, apesar
de existirem cavalos cada vez melhores e com mais ferramentas. Hoje já ninguém
vai buscar uma montada que anteriormente andou na lavoura, preso a um sacho.
Hoje todos sabem a linhagem das suas montadas e escolhem-nas por isso.
Curiosamente, os cavaleiros ditos “classicistas”, são aqueles que melhor
equitação demonstram. São aqueles que de facto parecem um centauro em praça,
mostrando uma união e um domínio tal com a montada, ao ponto de nem marcas de
esporas se verem no final das lides.

Aliado a uma equitação mais
deficitária, vem todo o resto. E quando acima referia que a cravagem do ferro é
o resultado de toda uma preparação, também me referia à interpretação do
comportamento do toiro. Há que observar o oponente, há que prová-lo com a
montada, há que perceber quais os seus terrenos, há que mexer com o toiro e
dar-lhe a lide adequada, não a que vem decorada de casa. Muitos destes aspectos
têm-se perdido, parecendo que já muito poucos lidam. Talvez uma das razões para
que isto aconteça, seja a escolha de encastes que, hoje em dia, já é regra para
muitos. São poucos os que enfrentam qualquer encaste. Já quase não existem
Cavaleiros que se formam para enfrentar qualquer toiro. Agora são formados
toiros que sejam capazes de enfrentar qualquer Cavaleiro. Nem vale a pena estar
a amaldiçoar o encaste Murube, tão de eleição dos Cavaleiros actuais. Os
toiros-telecomandados e quase “costum-made”. Mas é maioritariamente com esses
que se assiste ao que tem proliferado nas praças nacionais.

As lides (quando existem, na
verdadeira acessão da palavra) são cada vez mais acessórias. Não se brega, não
se escolhem bem os terrenos. Interessam sim, os adornos (muitos!), os números
circenses do cavalinho. As sortes não são preparadas, interessando apenas
cravar, de preferência com um câmbio gigante na cara de um toiro com pouco
andamento, deixando o ferro quando o oponente já está quase para além da
garupa. Rematar a sorte? Muito poucos sabem o que é! Assim se toureia… o
público (todos nós!) … e o público gosta! O Cavaleiro explode de emoção e todos
aplaudem uma obra distorcida. Deixou de ser a acção na arena a transmitir
emoção, para ser o Cavaleiro com a sua euforia e exuberância de festejos a
procurar transmiti-la à assistência. O público gosta…. Pois! Mas, depois de
assistirem a duas ou três corridas em que tudo é igual, em que tudo está
formatado e já se sabe ao que se vai, esse mesmo público começa a querer ver e
sentir a verdadeira emoção. Se não a encontra, se não a consegue renovar,
procura outro tipo de fonte e abandona as bancadas das praças de toiros.

É no toureio fundamental, na
preparação das lides, no cravar ao estribo vencendo o piton, no enfrentar
toiros de verdade que mostrem perigo, que está a “galinha dos ovos de oiro”.
Sempre ali esteve, não são necessários outros artefactos. Há que evoluir, mas
há que perceber que a verdadeira emoção, é aquela que resulta na transformação
do verdadeiro perigo em momentos sublimes de arte. A verdadeira emoção é a que
resulta da fusão do conhecimento e capacidade de entendimento Cavaleiro/Cavalo
com o ímpeto bravio do toiro. São estes momentos de pura imprevisibilidade que
fazem com que as pessoas queiram assistir a momentos irrepetíveis de forma
repetida, sentindo a emoção e verdade que o toureiro a cavalo deve transmitir.

Bruno Bettencourt
Foto: Paulo Gil

Caregoria: Equestre, Opinião

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