COMPANHIA DE CAÇADORES 4742/72 LUFICO - ANGOLA

24-09-2020
marcar artigo

Stresse

O
stresse (vulgo) cacimbo ou cacimbado, foi um dos problemas que (quase) todos os
militares em zona operacional tiveram de combater. Ainda hoje, cerca de cento e cinquenta mil militares das guerras coloniais sofrem desta doença, principalmente aqueles que
estiveram em zonas operacionais de grande desgaste físico e psicológico e onde
a sobrevivência
e a luta pela vida era uma constante.

A
nossa companhia teve alguns casos de stresse, uns de mais difícil de resolução
que outros, mas quase todos sofremos desse mal.

Os
casos mais complicados foram a do 1º cabo Rodrigues e do soldado Cabral, ambos
evacuados para Luanda. A situação do 1º cabo Rodrigues foi a de mais fácil
resolução, pois o mesmo não mostrava sinais de agressividade, apenas problemas
psíquicos que já o tinham afectado antes de integrar a vida militar e que se
agudizaram a seguir à mobilização. Com a chegada ao Lufico e com o ambiente que
encontrou, foi-lhe difícil a integração, para além de lhe ser difícil arranjar
amizades entre os camaradas. Isolava-se no seu mundo e pouco ou nada convivia.
Isso fez com que a certa altura a cabeça deixasse de funcionar em pleno. 


o Cabral foi completamente diferente, era sociável e não denotava nada de
“anormal”. Era extrovertido e bastante brincalhão, sempre pronto a ajudar e a
colaborar, achava-lhe piada aquele sotaque vem vincado de Rabo de Peixe, no
início confesso que me custava a compreender, mas com o passar do tempo já o
percebia bem. Era amigo do seu amigo e todos, apesar da sua irreverência,
gostavam dele. Eu compreendia-o bem, as suas amarguras e tristezas, as suas
angústias e estados de alma, não tanto os meus camaradas, quer furriéis quer
oficiais. Sei que era meu amigo e ele sabia que eu era seu amigo. Aos poucos,
fui denotando nele algumas diferenças comportamentais, tornou-se mais agressivo
e distante, começando a isolar-se dos restantes. Frequentemente e ao contrário
da maioria dos meus camaradas furriéis e oficiais, ia à caserna conviver com os
meus camaradas soldados e cabos, conversava-mos muito e até, aos que não sabiam
escrever predispunha-me a fazê-lo, sem nenhum tipo de complexo.

O
Cabral já tinha tido vários desaguisados com o capitão Pimenta, alguns trazidos
ainda dos Açores, diferentes formas de estar, faziam com que o relacionamento
não fosse o ideal. Apesar dos sinais que vinha demonstrando, nunca nos passou
pela cabeça, muito menos a mim, que a situação acabasse como acabou.

Uma
noite, cerca das duas horas da madrugada ouvem-se vários tiros, pensamos logo
que os mesmos fossem disparados por algum camarada de reforço e que tivesse
avistado algo anormal. Claro, que os mesmos puseram o aquartelamento em
polvorosa, toda a gente se levantou com as armas na mão. Qual não foi o nosso
espanto quando verificamos que os mesmos vinham de um camarada nosso (o Cabral)
no centro da parada a chamar pelo capitão. “eu mato-te meu desgraçado”, “vem cá
para fora se tens coragem”, “filho de puta, queres desgraçar-me mas eu mato-te
primeiro”, e ia disparado para o ar, causando enorme alvoroço entre nós. Depois
os mais “inteligentes” e “corajosos” diziam – o gajo está passado da cabeça,
“mata-se” o gajo, outros, os mais sensatos, diziam que é o cacimbo.

Penso
que o único sensato de entre cento e quarenta/cento e cinquenta homens era
eu, porque sabia dos problemas do Cabral, até de natureza (estes
principalmente) familiar. O Cabral era casado e já tinha uma filha, casou antes
de ir para a tropa, depois era oriundo de uma zona (Rabo de Peixe) com imensos
problemas quer económicos quer sociais, depois e quanto a mim o mais importante
para o comportamento do Cabral, foram/eram as notícias de caracter anónimo que
lhe chagavam acerca do comportamento da esposa. Juntar tudo isto naquela cabeça
dá uma mistura explosiva. O Cabral não aguentou a pressão, descarregou-a
naquele que menos lhe ligava importância (o capitão Pimenta). Fui o único que
se abeirou dele e o convenceu a parar com aquilo, também penso que só eu o
podia fazer, pois era o único que ele mais respeitava e eu tinha a certeza que
não me fazia mal algum. As quase duas horas que durou a nossa conversa, o
Cabral chorou a bom chorar, desabafou, saltaram-lhe para fora os ódios acumulados.
Apenas lhe disse para pensar só na filha e em nada mais, o resto resolvia-se.
No final levei o Cabral para a caserna e fiquei junto dele até de manhã. Falei
com o capitão e informei-o dos motivos de tal acontecer, e garanti-lhe que me
responsabilizava pelo comportamento do Cabral. Disse-me que o Cabral tem de ser
evacuado tal como o cabo Rodrigues. Disse-lhe que as coisas não podiam ser
feitas precipitadas pois as situações não eram iguais, ou pensa o meu capitão se ele lhe quisesse fazer algum mal não o faria de
outra forma? A solução, segundo o capitão era o Cabral ser evacuado para o
hospital militar de Luanda e eles que resolvessem o problema, para além de
participar dele o que o levará à prisão, pois o que ele fez não se tolera.
Respondi-lhe que pode ter toda a razão mas o senhor se me permite também tem
culpas no cartório, os
sinais eram evidentes e o meu capitão tinha o
dever de se inteirar deles. Falei com o Cabral acerca de ele ir uns dias para
Luanda, “descacimbar” e depois logo regressava. Mas não tenho dinheiro meu
furriel, não te preocupes, eu empresto-te algum. E assim foi, passado dois dias aterrou a DO que levaria o meu amigo Cabral para o hospital militar de Luanda. Só o tornamos a ver em Luanda dias
antes e embarcarmos para a metrópole. Do Rodrigues nunca mais soubemos.

Outros houve mas de menos amplitude, a maioria de camaradas
casados, alguns já pais e outros em vias de o ser. Eram situações a que
tinha-mos de acompanhar e aconselhar.

          
          João
Gouveia

Furriel
Miliciano de Infantaria 

Stresse

O
stresse (vulgo) cacimbo ou cacimbado, foi um dos problemas que (quase) todos os
militares em zona operacional tiveram de combater. Ainda hoje, cerca de cento e cinquenta mil militares das guerras coloniais sofrem desta doença, principalmente aqueles que
estiveram em zonas operacionais de grande desgaste físico e psicológico e onde
a sobrevivência
e a luta pela vida era uma constante.

A
nossa companhia teve alguns casos de stresse, uns de mais difícil de resolução
que outros, mas quase todos sofremos desse mal.

Os
casos mais complicados foram a do 1º cabo Rodrigues e do soldado Cabral, ambos
evacuados para Luanda. A situação do 1º cabo Rodrigues foi a de mais fácil
resolução, pois o mesmo não mostrava sinais de agressividade, apenas problemas
psíquicos que já o tinham afectado antes de integrar a vida militar e que se
agudizaram a seguir à mobilização. Com a chegada ao Lufico e com o ambiente que
encontrou, foi-lhe difícil a integração, para além de lhe ser difícil arranjar
amizades entre os camaradas. Isolava-se no seu mundo e pouco ou nada convivia.
Isso fez com que a certa altura a cabeça deixasse de funcionar em pleno. 


o Cabral foi completamente diferente, era sociável e não denotava nada de
“anormal”. Era extrovertido e bastante brincalhão, sempre pronto a ajudar e a
colaborar, achava-lhe piada aquele sotaque vem vincado de Rabo de Peixe, no
início confesso que me custava a compreender, mas com o passar do tempo já o
percebia bem. Era amigo do seu amigo e todos, apesar da sua irreverência,
gostavam dele. Eu compreendia-o bem, as suas amarguras e tristezas, as suas
angústias e estados de alma, não tanto os meus camaradas, quer furriéis quer
oficiais. Sei que era meu amigo e ele sabia que eu era seu amigo. Aos poucos,
fui denotando nele algumas diferenças comportamentais, tornou-se mais agressivo
e distante, começando a isolar-se dos restantes. Frequentemente e ao contrário
da maioria dos meus camaradas furriéis e oficiais, ia à caserna conviver com os
meus camaradas soldados e cabos, conversava-mos muito e até, aos que não sabiam
escrever predispunha-me a fazê-lo, sem nenhum tipo de complexo.

O
Cabral já tinha tido vários desaguisados com o capitão Pimenta, alguns trazidos
ainda dos Açores, diferentes formas de estar, faziam com que o relacionamento
não fosse o ideal. Apesar dos sinais que vinha demonstrando, nunca nos passou
pela cabeça, muito menos a mim, que a situação acabasse como acabou.

Uma
noite, cerca das duas horas da madrugada ouvem-se vários tiros, pensamos logo
que os mesmos fossem disparados por algum camarada de reforço e que tivesse
avistado algo anormal. Claro, que os mesmos puseram o aquartelamento em
polvorosa, toda a gente se levantou com as armas na mão. Qual não foi o nosso
espanto quando verificamos que os mesmos vinham de um camarada nosso (o Cabral)
no centro da parada a chamar pelo capitão. “eu mato-te meu desgraçado”, “vem cá
para fora se tens coragem”, “filho de puta, queres desgraçar-me mas eu mato-te
primeiro”, e ia disparado para o ar, causando enorme alvoroço entre nós. Depois
os mais “inteligentes” e “corajosos” diziam – o gajo está passado da cabeça,
“mata-se” o gajo, outros, os mais sensatos, diziam que é o cacimbo.

Penso
que o único sensato de entre cento e quarenta/cento e cinquenta homens era
eu, porque sabia dos problemas do Cabral, até de natureza (estes
principalmente) familiar. O Cabral era casado e já tinha uma filha, casou antes
de ir para a tropa, depois era oriundo de uma zona (Rabo de Peixe) com imensos
problemas quer económicos quer sociais, depois e quanto a mim o mais importante
para o comportamento do Cabral, foram/eram as notícias de caracter anónimo que
lhe chagavam acerca do comportamento da esposa. Juntar tudo isto naquela cabeça
dá uma mistura explosiva. O Cabral não aguentou a pressão, descarregou-a
naquele que menos lhe ligava importância (o capitão Pimenta). Fui o único que
se abeirou dele e o convenceu a parar com aquilo, também penso que só eu o
podia fazer, pois era o único que ele mais respeitava e eu tinha a certeza que
não me fazia mal algum. As quase duas horas que durou a nossa conversa, o
Cabral chorou a bom chorar, desabafou, saltaram-lhe para fora os ódios acumulados.
Apenas lhe disse para pensar só na filha e em nada mais, o resto resolvia-se.
No final levei o Cabral para a caserna e fiquei junto dele até de manhã. Falei
com o capitão e informei-o dos motivos de tal acontecer, e garanti-lhe que me
responsabilizava pelo comportamento do Cabral. Disse-me que o Cabral tem de ser
evacuado tal como o cabo Rodrigues. Disse-lhe que as coisas não podiam ser
feitas precipitadas pois as situações não eram iguais, ou pensa o meu capitão se ele lhe quisesse fazer algum mal não o faria de
outra forma? A solução, segundo o capitão era o Cabral ser evacuado para o
hospital militar de Luanda e eles que resolvessem o problema, para além de
participar dele o que o levará à prisão, pois o que ele fez não se tolera.
Respondi-lhe que pode ter toda a razão mas o senhor se me permite também tem
culpas no cartório, os
sinais eram evidentes e o meu capitão tinha o
dever de se inteirar deles. Falei com o Cabral acerca de ele ir uns dias para
Luanda, “descacimbar” e depois logo regressava. Mas não tenho dinheiro meu
furriel, não te preocupes, eu empresto-te algum. E assim foi, passado dois dias aterrou a DO que levaria o meu amigo Cabral para o hospital militar de Luanda. Só o tornamos a ver em Luanda dias
antes e embarcarmos para a metrópole. Do Rodrigues nunca mais soubemos.

Outros houve mas de menos amplitude, a maioria de camaradas
casados, alguns já pais e outros em vias de o ser. Eram situações a que
tinha-mos de acompanhar e aconselhar.

          
          João
Gouveia

Furriel
Miliciano de Infantaria 

marcar artigo