Portugal condenado a indemnizar família de vítima das praxes no Meco

22-01-2020
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A investigação foi “ineficaz” e por isso o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou esta terça-feira que Portugal violou o segundo artigo da Convenção, que define o “direito à vida”. O Estado português é condenado a pagar 13 mil euros a José Soares Campos, pai de um dos estudantes que morreu na praia do Meco em 2013 quando participava em atividades de praxe da Universidade Lusófona. É ainda responsável pelo pagamento das despesas processuais, no valor de €7.118,51.

“No caso Soares Campos v. Portugal, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem decidiu, unanimemente, que houve uma violação do aspecto processual do Artigo 2 (direito à vida) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e que não houve violação do aspecto substantivo do Artigo 2”, pode ler-se no documento esta terça-feira divulgado. “O tribunal considerou que, em particular, a investigação criminal não satisfaz os requerimentos do Artigo 2 da Convenção. De notar que uma série de medidas urgentes poderiam ter sido ordenadas imediatamente após a tragédia.”

O TEDH considera que há seis ações que poderiam ter sido exigidas imediatamente, fazendo diferença no curso da investigação, após a tragédia e que não foram: a casa onde os jovens estavam a dormir “poderia ter sido guardada e o acesso condicionado a todas as pessoas que não estavam ligadas à investigação”, impedindo que “provas se perdessem” com a limpeza do apartamento (“o tribunal está particularmente chocado”); o facto de as análises forenses à casa não terem acontecido imediatamente e só se terem concretizado quase dois meses depois da noite do incidente; a demora na apreensão da roupa e computador de João Gouveia, o dux da universidade e o principal responsável pelas atividades de praxe; a demora na reconstituição daquilo que aconteceu na noite da tragédia; a demora na recolha dos depoimentos das testemunhas, pessoas “na vizinhança, incluindo vizinhos e as pessoas responsáveis pela casa onde estavam”; e, por último, o facto de “a investigação só ter “começado a sério mais de um mês após os eventos”.

Tudo isto, acredita o TEDH, deveria ter acontecido de “imediato”. A onda arrastou os seis jovens na noite de 15 de dezembro de 2013. A casa foi alvo de análises forenses a 11 de fevereiro de 2014, as roupas e o computador de João Gouveia só foram apreendidos a 7 de março de 2014, a reconstituição dos eventos na praia só se realizou a 14 de fevereiro de 2014 e os depoimentos das testemunhas foram recolhidos a 10 de fevereiro de 2014.

O caso deu entrada no tribunal europeu em maio de 2016, quando José Soares Campos, pai de Tiago Campos (primeiro corpo recuperado pelas autoridades), queixou-se de não ter tido direito a “uma investigação efetivamente capaz de estabelecer as circunstâncias da morte do seu filho”. Alegou ainda que a morte do filho fora ainda causada pela falta de enquadramento legal para a prática de atividades de praxe nas universidades portuguesas.

Ora se o TEDH concordou com a acusação relativamente às falhas da investigação, não esteve de acordo quanto à falta de legislação das praxes. Para o tribunal, “não existe um vácuo legal” nesta matéria, considerando que a lei portuguesa já prevê “uma série de sanções criminais, civis e disciplinares para prevenir, suprimir e punir ofensas à integridade física e psicológica”.

“Reconhecendo sem qualquer dúvida a trágica natureza do presente caso, o tribunal não foi capaz de provar que o Estado falhou nas suas obrigações positivas perante o artigo 2 e, por isso, ser responsabilizado desta forma pela morte do filho de Soares Campos”, pode ler-se ainda no documento. Apesar da praxe não ser criminalizada, as ofensas são.

A história: seis mortes e um arquivamento polémico

A noite da tragédia, que vitimou mortalmente Joana Barroso, Ana Catarina Soares, Andreia Revez, Carina Correia, Pedro Tito Negrão e Tiago Campos, todos estudantes da Universidade Lusófona e da comissão de praxe académica, foi descrita ao pormenor. O único sobrevivente, João Gouveia, revelou aos procuradores que depois de uma caminhada de cinco quilómetros até à praia, o grupo entrou no areal pela zona do parque automóvel e atravessou a areia durante cerca de 100 metros, ficando aí sentado a conversar durante 15 minutos. Daí apenas viam o reflexo da água e uma “massa preta” no horizonte, nunca se apercebendo da rebentação.

Quando se preparavam para sair do local, devido ao frio e humidade, o ‘dux’ disse ter sentido um forte impacto, do lado direito e nas costas, e todo o grupo foi envolvido por uma massa de água que os sugou em direção ao declive acentuado de areia molhada e daí para dentro do mar. O traje académico que vestia acabou por lhe atrapalhar os movimentos, indo para o fundo, em movimentos desordenados como se estivesse "dentro de uma máquina de lavar roupa". De início ainda ouviu os apelos desesperados de Joana, mas acabou por perder de vista os colegas. Nos vários depoimentos feitos aos procuradores, explicou que sobreviveu por sorte e talvez por se ter desenvencilhado da capa, num rasgo de lucidez. Conseguiu sair do mar e chamar o 112 pelo telemóvel. Quando chegaram à praia, as autoridades confirmaram o estado de hipotermia, os vómitos e o desfalecimento do estudante.

A investigação concluiu, por exemplo, que as garrafas de bebidas alcoólicas mais fortes nem sequer foram abertas, que apenas metade da cerveja transportada para a casa alugada foi consumida e que o vinho foi misturado com gasosa. Além disso, grande parte das bebidas tinha sido ingerida no dia anterior. Antes da caminhada noturna de 15 de dezembro, o grupo estava na posse de todas as suas faculdades, "deixando antever capacidade de resistência e lucidez contra 'ordens' cruéis e irresponsáveis".

Muitas das testemunhas que apareceram em reportagens televisivas a garantir que viram os estudantes a rastejar com pedras atadas aos pés ou que tinham visto mais jovens trajados na noite da tragédia acabaram por confessar aos investigadores não estarem a dizer a verdade. Um dos exemplos mais constrangedores apurados pelos investigadores foi o de concluírem que as referidas pedras citadas por várias pessoas não eram mais do que bolas de enfeite de uma árvore de Natal levada pelo falecido Tiago Campos para esse fim de semana.

Todos os cruzamentos feitos pelas antenas de telemóvel no local também não deixaram dúvidas: na noite de 15 de dezembro estavam apenas presentes os sete estudantes.

E a colher de pau, o símbolo máximo de poder de praxe do 'dux', nem sequer foi transportada para a caminhada até à praia por João Gouveia. Ficou na lareira da casa alugada. Os procuradores concluem que este foi um sinal inequívoco de que naquela noite o estudante (que não era o mais velho, nem o mais graduado academicamente do grupo) abdicou de afirmar a sua hierarquia.

Ficou igualmente colocada de parte a hipótese de o 'dux' e o seu cunhado terem limpado eventuais vestígios de crime na casa, nas horas que se seguiram às mortes na praia. A vivenda esteve sempre vigiada por dois elementos da Polícia Marítima. Segundo o Ministério Público de Almada, caiu também por terra a tese de que o caso teria sido negligenciado pelas autoridades nas primeiras semanas após a tragédia: foram contabilizadas quase 100 inquirições realizadas a testemunhas, familiares, colegas e amigos das vítimas do Meco, além de dezenas de apreensões de telemóveis, perícias forenses, exames toxicológicos, recolha documental e várias reconstituições.

No final, os procuradores declararam estar em condições de proferir a decisão, "que apenas pode ser de arquivamento", por não existirem quaisquer indícios de crime por parte do 'dux' João Gouveia.

A investigação foi “ineficaz” e por isso o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou esta terça-feira que Portugal violou o segundo artigo da Convenção, que define o “direito à vida”. O Estado português é condenado a pagar 13 mil euros a José Soares Campos, pai de um dos estudantes que morreu na praia do Meco em 2013 quando participava em atividades de praxe da Universidade Lusófona. É ainda responsável pelo pagamento das despesas processuais, no valor de €7.118,51.

“No caso Soares Campos v. Portugal, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem decidiu, unanimemente, que houve uma violação do aspecto processual do Artigo 2 (direito à vida) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e que não houve violação do aspecto substantivo do Artigo 2”, pode ler-se no documento esta terça-feira divulgado. “O tribunal considerou que, em particular, a investigação criminal não satisfaz os requerimentos do Artigo 2 da Convenção. De notar que uma série de medidas urgentes poderiam ter sido ordenadas imediatamente após a tragédia.”

O TEDH considera que há seis ações que poderiam ter sido exigidas imediatamente, fazendo diferença no curso da investigação, após a tragédia e que não foram: a casa onde os jovens estavam a dormir “poderia ter sido guardada e o acesso condicionado a todas as pessoas que não estavam ligadas à investigação”, impedindo que “provas se perdessem” com a limpeza do apartamento (“o tribunal está particularmente chocado”); o facto de as análises forenses à casa não terem acontecido imediatamente e só se terem concretizado quase dois meses depois da noite do incidente; a demora na apreensão da roupa e computador de João Gouveia, o dux da universidade e o principal responsável pelas atividades de praxe; a demora na reconstituição daquilo que aconteceu na noite da tragédia; a demora na recolha dos depoimentos das testemunhas, pessoas “na vizinhança, incluindo vizinhos e as pessoas responsáveis pela casa onde estavam”; e, por último, o facto de “a investigação só ter “começado a sério mais de um mês após os eventos”.

Tudo isto, acredita o TEDH, deveria ter acontecido de “imediato”. A onda arrastou os seis jovens na noite de 15 de dezembro de 2013. A casa foi alvo de análises forenses a 11 de fevereiro de 2014, as roupas e o computador de João Gouveia só foram apreendidos a 7 de março de 2014, a reconstituição dos eventos na praia só se realizou a 14 de fevereiro de 2014 e os depoimentos das testemunhas foram recolhidos a 10 de fevereiro de 2014.

O caso deu entrada no tribunal europeu em maio de 2016, quando José Soares Campos, pai de Tiago Campos (primeiro corpo recuperado pelas autoridades), queixou-se de não ter tido direito a “uma investigação efetivamente capaz de estabelecer as circunstâncias da morte do seu filho”. Alegou ainda que a morte do filho fora ainda causada pela falta de enquadramento legal para a prática de atividades de praxe nas universidades portuguesas.

Ora se o TEDH concordou com a acusação relativamente às falhas da investigação, não esteve de acordo quanto à falta de legislação das praxes. Para o tribunal, “não existe um vácuo legal” nesta matéria, considerando que a lei portuguesa já prevê “uma série de sanções criminais, civis e disciplinares para prevenir, suprimir e punir ofensas à integridade física e psicológica”.

“Reconhecendo sem qualquer dúvida a trágica natureza do presente caso, o tribunal não foi capaz de provar que o Estado falhou nas suas obrigações positivas perante o artigo 2 e, por isso, ser responsabilizado desta forma pela morte do filho de Soares Campos”, pode ler-se ainda no documento. Apesar da praxe não ser criminalizada, as ofensas são.

A história: seis mortes e um arquivamento polémico

A noite da tragédia, que vitimou mortalmente Joana Barroso, Ana Catarina Soares, Andreia Revez, Carina Correia, Pedro Tito Negrão e Tiago Campos, todos estudantes da Universidade Lusófona e da comissão de praxe académica, foi descrita ao pormenor. O único sobrevivente, João Gouveia, revelou aos procuradores que depois de uma caminhada de cinco quilómetros até à praia, o grupo entrou no areal pela zona do parque automóvel e atravessou a areia durante cerca de 100 metros, ficando aí sentado a conversar durante 15 minutos. Daí apenas viam o reflexo da água e uma “massa preta” no horizonte, nunca se apercebendo da rebentação.

Quando se preparavam para sair do local, devido ao frio e humidade, o ‘dux’ disse ter sentido um forte impacto, do lado direito e nas costas, e todo o grupo foi envolvido por uma massa de água que os sugou em direção ao declive acentuado de areia molhada e daí para dentro do mar. O traje académico que vestia acabou por lhe atrapalhar os movimentos, indo para o fundo, em movimentos desordenados como se estivesse "dentro de uma máquina de lavar roupa". De início ainda ouviu os apelos desesperados de Joana, mas acabou por perder de vista os colegas. Nos vários depoimentos feitos aos procuradores, explicou que sobreviveu por sorte e talvez por se ter desenvencilhado da capa, num rasgo de lucidez. Conseguiu sair do mar e chamar o 112 pelo telemóvel. Quando chegaram à praia, as autoridades confirmaram o estado de hipotermia, os vómitos e o desfalecimento do estudante.

A investigação concluiu, por exemplo, que as garrafas de bebidas alcoólicas mais fortes nem sequer foram abertas, que apenas metade da cerveja transportada para a casa alugada foi consumida e que o vinho foi misturado com gasosa. Além disso, grande parte das bebidas tinha sido ingerida no dia anterior. Antes da caminhada noturna de 15 de dezembro, o grupo estava na posse de todas as suas faculdades, "deixando antever capacidade de resistência e lucidez contra 'ordens' cruéis e irresponsáveis".

Muitas das testemunhas que apareceram em reportagens televisivas a garantir que viram os estudantes a rastejar com pedras atadas aos pés ou que tinham visto mais jovens trajados na noite da tragédia acabaram por confessar aos investigadores não estarem a dizer a verdade. Um dos exemplos mais constrangedores apurados pelos investigadores foi o de concluírem que as referidas pedras citadas por várias pessoas não eram mais do que bolas de enfeite de uma árvore de Natal levada pelo falecido Tiago Campos para esse fim de semana.

Todos os cruzamentos feitos pelas antenas de telemóvel no local também não deixaram dúvidas: na noite de 15 de dezembro estavam apenas presentes os sete estudantes.

E a colher de pau, o símbolo máximo de poder de praxe do 'dux', nem sequer foi transportada para a caminhada até à praia por João Gouveia. Ficou na lareira da casa alugada. Os procuradores concluem que este foi um sinal inequívoco de que naquela noite o estudante (que não era o mais velho, nem o mais graduado academicamente do grupo) abdicou de afirmar a sua hierarquia.

Ficou igualmente colocada de parte a hipótese de o 'dux' e o seu cunhado terem limpado eventuais vestígios de crime na casa, nas horas que se seguiram às mortes na praia. A vivenda esteve sempre vigiada por dois elementos da Polícia Marítima. Segundo o Ministério Público de Almada, caiu também por terra a tese de que o caso teria sido negligenciado pelas autoridades nas primeiras semanas após a tragédia: foram contabilizadas quase 100 inquirições realizadas a testemunhas, familiares, colegas e amigos das vítimas do Meco, além de dezenas de apreensões de telemóveis, perícias forenses, exames toxicológicos, recolha documental e várias reconstituições.

No final, os procuradores declararam estar em condições de proferir a decisão, "que apenas pode ser de arquivamento", por não existirem quaisquer indícios de crime por parte do 'dux' João Gouveia.

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