Poluição resiste à divisão do país

10-09-1999
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Celulose do Caima: o processo de regionalização a referendar deixa tudo em aberto quanto às competências das eventuais futuras regiões em matéria de ambiente; e as opiniões divergem

«AI, QUE a língua está enrolada!» Alfredo Jesus Luís, antigo funcionário da autarquia de Constância, ri-se da sua dificuldade em soletrar a palavra que o Governo diz vir a ser a «reforma do século»: a regionalização. Sentado no banco de uma praça da pequena vila ribatejana, este reformado é bem o reflexo do desinteresse e falta de informação da população local em relação ao referendo de 8 de Novembro. Não fosse um cartaz favorável ao «sim» à entrada da povoação e dir-se-ia que o assunto que mobiliza o mundo político nacional encontra aqui uma população longe sequer de estar indecisa. Encravada entre os rios Tejo e Zêzere, Constância - um dos menos populosos concelhos do país - convive com duas realidades ambientais distintas, para as quais supostamente a regionalização também deveria dar resposta. Por um lado, o rio que nasce na Serra da Estrela, fonte de água transparente que abastece, a partir da barragem de Castelo de Bode, grande parte das populações do Ribatejo, Estremadura e Área Metropolitana de Lisboa. Por outro, o maior rio português com as suas águas turvas, das quais se vão extraindo anarquicamente areias e despejando esgotos domésticos, incluindo os do principal pólo empregador da região: a celulose do Caima. Se existem, neste concelho, desejos de um futuro melhor, eles passam pela requalificação ambiental do Tejo e pela diminuição das emissões sulfurosas da fábrica de pasta de papel que emana um cheiro a «couves podres» dificilmente suportável, sobretudo para a vizinha Praia do Ribatejo. Certo é que as populações parecem estar pouco confiantes de que, se algum dia estes problemas terminarem, o seja por «obra e graça» do processo de regionalização do país. «Nessas coisas não estou muito por dentro», confessa Hugo Milagaia, um jovem bombeiro «desmobilizado» há uma semana da tropa, que aguarda pacientemente a chegada de alguns canoístas que descem o límpido Zêzere. Do outro lado da povoação, na margem direita do Tejo - junto à antiga casa do poeta d'Os Lusíadas -, Sérgio Silva, um funcionário camarário, espera com o seu pequeno barco a motor os incertos clientes para uma travessia que por dez escudos os transportará para o outro lado do rio. Não sabe quantos passageiros terá, tal como não sabe «para que servirá a regionalização». Desinteresse e desconhecimento são, aliás, o denominador comum das opiniões sobre a regionalização. «Não sei», assim se resumem as respostas dadas por Gilberto Pinto, um ex-emigrante em França, por António Silva, um antigo pescador de taínhas, e por Quirino Calado, um empregado da Caima. Neste cenário pouco sentido fará saber a opinião da população de Constância sobre as implicações ambientais da regionalização. Mesmo o próprio presidente da autarquia, o comunista António Santos Mendes - que se afirma «um regionalista muito tímido» -, tem dúvidas sobre as suas virtudes, já que, na sua opinião, «depende das competências que sejam dadas às Juntas Regionais e do reforço técnico das autarquias». Para este edil, «a maior proximidade aos problemas ambientais pode permitir, caso haja meios, intervir mais adequadamente». «Já aconteceu a autarquia ter dado um parecer negativo para a extracção de inertes no Tejo e a Administração Central vir a conceder mesmo assim uma licença», acrescenta.

Sérgio Vieira desconhece «para que servirá a regionalização»

Contudo, de acordo com o modelo regional do Governo, a intervenção directa das eventuais futuras Juntas nas questões ambientais continuará a ser limitada, devendo consistir em pouco mais do que a transferência das competências das actuais cinco direcções-regionais do ambiente (DRA). Estas delegações regionais embora tenham já competências generalizadas possuem grandes deficiências em meios técnicos e humanos, sobretudo porque o seu orçamento apenas representa, na globalidade, pouco mais de dois por cento do PIDDAC do Ministério do Ambiente. A proposta governamental para o sector ambiental atribuiu às futuras Juntas Regionais sobretudo tarefas de índole consultiva em planos e estratégias, embora também lhes prometa a coordenação dos processos de licenciamento dos recursos hídricos e atmosférico, do uso do solo e controlo de poluição, bem como a gestão das áreas protegidas de âmbito local. «Essa transferência, através das DRA, apenas implicará um aumento da situação caótica da gestão ambiental do país durante vários anos», advoga Viriato Soromenho Marques, ex-presidente da Quercus. Para este professor universitário - que foi mandatário em Setúbal da candidatura presidencial de Jorge Sampaio -, «a promoção da competição entre as regiões pode implicar políticas fiscais ou maior benevolência no cumprimento das leis que trarão efeitos negativos no estado do ambiente». Esta é também, aliás, a opinião de Eugénio Sequeira, presidente da Liga para a Protecção da Natureza e antigo vereador socialista da autarquia de Cascais. Este especialista em solos considera que «qualquer regionalização do país que não passe pela sua divisão em função das bacias hidrográficas ou das regiões naturais só irá aumentar a entropia». Soromenho Marques preocupa-se também com «as dificuldades em se encontrarem consensos para a resolução de problemas ambientais nacionais», exemplificando com o caso da actual escolha das cimenteiras que irão queimar os lixos industriais. «Se ao nível das associações de municípios já se torna difícil, imagine-se com as regiões», sublinha. Contudo, para Eduardo Cabrita, alto-comissário para a regionalização, este é um falso problema: «A uma escala regional haverá uma melhor coordenação de estratégias, sendo particularmente notórias nas questões ambientais e de ordenamento, evitando-se assim algumas das actuais incongruências entre estratégias de concelhos próximos». Assim será também para Francisco Torres, deputado do PSD, que, contudo, discorda do modelo apresentado pelo Governo, dado que «é ambíguo, permitindo que alguns autarcas mais ambiciosos possam vir a delapidar o ambiente para agradarem a curto prazo». Pedro Almeida Vieira «Não» ganha pontos

O CHUMBO das regiões parece mais certo, à medida que aumenta o número de eleitores que dizem ir votar no referendo de 8 de Novembro e que são, no Painel EXPRESSO/Euroexpansão de Setembro, mais sete por cento do que no mês passado. O «não» à regionalização conquistou mais seis por cento do eleitorado. E, em proporção inversa, o «sim» perdeu sete pontos.

Perante esta tendência anti-regionalista dos eleitores consultados não é de estranhar que a maioria (56 por cento) defenda que se ganhar o «sim», ainda que com menos de metade dos eleitores, a regionalização não deva prosseguir.

Aliás, sobre esta matéria, os inquiridos não têm dúvidas: 87 por cento pensam que o Presidente da República tem que esclarecer, antes ainda do referendo, se a votação será ou não válida com menos de 50 por cento de votantes. C.F.

Não 56% Sim 33%

Viagens no reino da burocracia

Poluição resiste à divisão do país

É preciso descentralizar mesmo sem as regiões

Celulose do Caima: o processo de regionalização a referendar deixa tudo em aberto quanto às competências das eventuais futuras regiões em matéria de ambiente; e as opiniões divergem

«AI, QUE a língua está enrolada!» Alfredo Jesus Luís, antigo funcionário da autarquia de Constância, ri-se da sua dificuldade em soletrar a palavra que o Governo diz vir a ser a «reforma do século»: a regionalização. Sentado no banco de uma praça da pequena vila ribatejana, este reformado é bem o reflexo do desinteresse e falta de informação da população local em relação ao referendo de 8 de Novembro. Não fosse um cartaz favorável ao «sim» à entrada da povoação e dir-se-ia que o assunto que mobiliza o mundo político nacional encontra aqui uma população longe sequer de estar indecisa. Encravada entre os rios Tejo e Zêzere, Constância - um dos menos populosos concelhos do país - convive com duas realidades ambientais distintas, para as quais supostamente a regionalização também deveria dar resposta. Por um lado, o rio que nasce na Serra da Estrela, fonte de água transparente que abastece, a partir da barragem de Castelo de Bode, grande parte das populações do Ribatejo, Estremadura e Área Metropolitana de Lisboa. Por outro, o maior rio português com as suas águas turvas, das quais se vão extraindo anarquicamente areias e despejando esgotos domésticos, incluindo os do principal pólo empregador da região: a celulose do Caima. Se existem, neste concelho, desejos de um futuro melhor, eles passam pela requalificação ambiental do Tejo e pela diminuição das emissões sulfurosas da fábrica de pasta de papel que emana um cheiro a «couves podres» dificilmente suportável, sobretudo para a vizinha Praia do Ribatejo. Certo é que as populações parecem estar pouco confiantes de que, se algum dia estes problemas terminarem, o seja por «obra e graça» do processo de regionalização do país. «Nessas coisas não estou muito por dentro», confessa Hugo Milagaia, um jovem bombeiro «desmobilizado» há uma semana da tropa, que aguarda pacientemente a chegada de alguns canoístas que descem o límpido Zêzere. Do outro lado da povoação, na margem direita do Tejo - junto à antiga casa do poeta d'Os Lusíadas -, Sérgio Silva, um funcionário camarário, espera com o seu pequeno barco a motor os incertos clientes para uma travessia que por dez escudos os transportará para o outro lado do rio. Não sabe quantos passageiros terá, tal como não sabe «para que servirá a regionalização». Desinteresse e desconhecimento são, aliás, o denominador comum das opiniões sobre a regionalização. «Não sei», assim se resumem as respostas dadas por Gilberto Pinto, um ex-emigrante em França, por António Silva, um antigo pescador de taínhas, e por Quirino Calado, um empregado da Caima. Neste cenário pouco sentido fará saber a opinião da população de Constância sobre as implicações ambientais da regionalização. Mesmo o próprio presidente da autarquia, o comunista António Santos Mendes - que se afirma «um regionalista muito tímido» -, tem dúvidas sobre as suas virtudes, já que, na sua opinião, «depende das competências que sejam dadas às Juntas Regionais e do reforço técnico das autarquias». Para este edil, «a maior proximidade aos problemas ambientais pode permitir, caso haja meios, intervir mais adequadamente». «Já aconteceu a autarquia ter dado um parecer negativo para a extracção de inertes no Tejo e a Administração Central vir a conceder mesmo assim uma licença», acrescenta.

Sérgio Vieira desconhece «para que servirá a regionalização»

Contudo, de acordo com o modelo regional do Governo, a intervenção directa das eventuais futuras Juntas nas questões ambientais continuará a ser limitada, devendo consistir em pouco mais do que a transferência das competências das actuais cinco direcções-regionais do ambiente (DRA). Estas delegações regionais embora tenham já competências generalizadas possuem grandes deficiências em meios técnicos e humanos, sobretudo porque o seu orçamento apenas representa, na globalidade, pouco mais de dois por cento do PIDDAC do Ministério do Ambiente. A proposta governamental para o sector ambiental atribuiu às futuras Juntas Regionais sobretudo tarefas de índole consultiva em planos e estratégias, embora também lhes prometa a coordenação dos processos de licenciamento dos recursos hídricos e atmosférico, do uso do solo e controlo de poluição, bem como a gestão das áreas protegidas de âmbito local. «Essa transferência, através das DRA, apenas implicará um aumento da situação caótica da gestão ambiental do país durante vários anos», advoga Viriato Soromenho Marques, ex-presidente da Quercus. Para este professor universitário - que foi mandatário em Setúbal da candidatura presidencial de Jorge Sampaio -, «a promoção da competição entre as regiões pode implicar políticas fiscais ou maior benevolência no cumprimento das leis que trarão efeitos negativos no estado do ambiente». Esta é também, aliás, a opinião de Eugénio Sequeira, presidente da Liga para a Protecção da Natureza e antigo vereador socialista da autarquia de Cascais. Este especialista em solos considera que «qualquer regionalização do país que não passe pela sua divisão em função das bacias hidrográficas ou das regiões naturais só irá aumentar a entropia». Soromenho Marques preocupa-se também com «as dificuldades em se encontrarem consensos para a resolução de problemas ambientais nacionais», exemplificando com o caso da actual escolha das cimenteiras que irão queimar os lixos industriais. «Se ao nível das associações de municípios já se torna difícil, imagine-se com as regiões», sublinha. Contudo, para Eduardo Cabrita, alto-comissário para a regionalização, este é um falso problema: «A uma escala regional haverá uma melhor coordenação de estratégias, sendo particularmente notórias nas questões ambientais e de ordenamento, evitando-se assim algumas das actuais incongruências entre estratégias de concelhos próximos». Assim será também para Francisco Torres, deputado do PSD, que, contudo, discorda do modelo apresentado pelo Governo, dado que «é ambíguo, permitindo que alguns autarcas mais ambiciosos possam vir a delapidar o ambiente para agradarem a curto prazo». Pedro Almeida Vieira «Não» ganha pontos

O CHUMBO das regiões parece mais certo, à medida que aumenta o número de eleitores que dizem ir votar no referendo de 8 de Novembro e que são, no Painel EXPRESSO/Euroexpansão de Setembro, mais sete por cento do que no mês passado. O «não» à regionalização conquistou mais seis por cento do eleitorado. E, em proporção inversa, o «sim» perdeu sete pontos.

Perante esta tendência anti-regionalista dos eleitores consultados não é de estranhar que a maioria (56 por cento) defenda que se ganhar o «sim», ainda que com menos de metade dos eleitores, a regionalização não deva prosseguir.

Aliás, sobre esta matéria, os inquiridos não têm dúvidas: 87 por cento pensam que o Presidente da República tem que esclarecer, antes ainda do referendo, se a votação será ou não válida com menos de 50 por cento de votantes. C.F.

Não 56% Sim 33%

Viagens no reino da burocracia

Poluição resiste à divisão do país

É preciso descentralizar mesmo sem as regiões

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