A cisão do olhar

08-09-1999
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O QUE VEMOS, O QUE NOS OLHA

Georges Didi-Huberman Editora 34, 1998, trad. de Paulo Neves, 260 págs., 3200$00

A sua abordagem recebe não só os contributos da fenomenologia de Merleau-Ponty como incorpora elementos das teorias psicanalíticas de Jacques Lacan e tende a aproximar-se de uma «antropologia da forma».

No seu estudo anterior sobre Frangelico (Flammarion, 1990), tentou estabelecer uma leitura da pintura quinhentista em grande medida contra a exclusividade das interpretações iconológicas, ainda que no seu interior, valorizando os silêncios aparentemente insignificantes inscritos na pintura religiosa e elevando-os à categoria de sintomas activos de uma determinada mundividência ancorada na crença.

Escultura em aço de Tony Smith, «Die»

Ce Que Nous Voyons, Ce Que Nous Regarde, editado em França em 1992 e agora passado à língua portuguesa pela brasileira Editora 34, debruça-se sobre um tempo e uma conjuntura estética completamente diversos. Didi-Huberman revisitou os textos e reflexões dos artistas ligados ao movimento minimalista, como Stella, Judd ou Robert Morris, e dos críticos seus contemporâneos, como Michael Fried, para estabelecer uma abordagem crítica da tentativa de ultrapassagem do antropomorfismo e da consumação de uma arte despojada de ilusionismos.

O ensaio ganha um sentido de complementaridade quando lido no seguimento de Frangelico, que esmiuçava os reenvios místicos da pintura do século XV. Pegando na máxima de Frank Stella sobre a sua própria obra, o célebre «what you see is what you see», e nos textos de Donald Judd, Didi-Huberman aborda as consequências da aspiração minimalista de literalidade e laicização do objecto artístico como um dos pólos de «um falso dilema». Para isso foi às origens, à patrística cristã e à arte tumular medieval para entender como a ausência de imagens (a visão da ausência) pode jogar o papel paradoxal de uma promessa do divino no sistema da fé. As aspirações tautológicas dos minimalistas (nomeadamente, de Stella e Judd) seriam assim uma resposta ao que resta dessa excitação do valor da ausência. Mas na sua exigência de literalidade espacial, na sua estabilidade absoluta e na sua autoreferencialidade estanque, esses objectos seriam a resposta radical e simétrica ao efeito da crença. Se esta coloca a promessa da imagem no seu futuro, a resposta tautológica tenderia a abolir simplesmente o efeito do tempo (e o efeito da história) na presença dos objectos. Crença e tautologia opor-se-iam, deste modo, infinitamente e ficariam presas desse antagonismo empobrecedor. Seria então necessário ultrapassar esta contradição, o que Didi-Huberman propõe através da análise do próprio processo do olhar.

Para ele, uma imagem só vive no nosso olhar na medida em que ela própria nos olha nesse movimento. Cada imagem exerceria toda a sua potência no momento mesmo em que olho e imagem se unem numa mesma deflagração, construindo-se mutuamente numa operação que, sendo cindida, se torna dialéctica.

O encontro com aquela pequena peça de mobiliário terá provocado no olhar de Smith um efeito de ruptura e instabilidade que se conserva nas peças que realizou depois dessa experiência. Com efeito, Die oferece-se como um objecto latente, simultaneamente maciço e tumular, possuidor de uma presença e arauto de uma perda. Por um lado, a sua aparência de caixa cúbica subtrai-o a um esgotamento na evidência da sua presença física. Promete um interior, um ser obscuro não facultado ao contacto visual. Por outro, a sua negritude encaminha-o para uma intuição do vazio. Não é, igualmente, indiferente, nessa relação especular entre o que olhamos e o que nos olha, que o objecto tenha a altura de um homem adulto. Também esse factor activa todo um conjunto de referências inconscientes que informam o nosso olhar e nos convocam a olhá-lo.

É essa vida afirmativa das imagens, capaz de gerar crises e contradições perceptivas que Didi-Huberman propõe como o gérmen de uma dialéctica visual: «É preciso tentar voltar ao ponto de inversão e de convertibilidade, ao motor dialéctico de todas as oposições. É o momento em que o que vemos começa a ser atingido pelo que nos olha – um momento que não impõe nem um excesso de sentido (que a crença glorifica), nem a ausência cínica de sentido (que a tautologia glorifica). É o momento em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vemos» (pág. 77).

Não é menosprezável a direcção em que Didi-Huberman encaminha a sua análise, no sentido da valorização da latência das imagens pela sua capacidade de produzir uma dialéctica do visual, principalmente num tempo em que essa força dialéctica esmorece por vezes nos braços de uma retórica plana que tudo equaliza. De igual modo, é iluminadora a sua abordagem da obra de Tony Smith, mas não deixa de ser sintomático que Didi-Huberman se refira essencialmente aos textos (sempre demasiado afirmativos) de Donald Judd e quase não se debruce sobre a sua obra material como o faz com Smith ou Add Reinhardt. Didi-Huberman não ignora que há necessariamente uma «décalage» entre um programa estético e a sua concretização, repleta de efeitos não controlados. Quando olhamos para as obras de Judd alinhadas no espaço como espectros tumulares banhados pela luz, não deixamos de sentir que uma teatralidade (a mesma que tanto repugnava a Michael Fried) faz viver o espaço. Que nessa relação de mútua contaminação entre o espaço e a presença objectual algo se instaura e nos integra. Também nesse momento, a autoreferencialidade do objecto se desvanece na pureza tétrica da sua presença. E essa morte, só pressentida, nos interroga e nos olha, de algum modo.

CELSO MARTINS

O QUE VEMOS, O QUE NOS OLHA

Georges Didi-Huberman Editora 34, 1998, trad. de Paulo Neves, 260 págs., 3200$00

A sua abordagem recebe não só os contributos da fenomenologia de Merleau-Ponty como incorpora elementos das teorias psicanalíticas de Jacques Lacan e tende a aproximar-se de uma «antropologia da forma».

No seu estudo anterior sobre Frangelico (Flammarion, 1990), tentou estabelecer uma leitura da pintura quinhentista em grande medida contra a exclusividade das interpretações iconológicas, ainda que no seu interior, valorizando os silêncios aparentemente insignificantes inscritos na pintura religiosa e elevando-os à categoria de sintomas activos de uma determinada mundividência ancorada na crença.

Escultura em aço de Tony Smith, «Die»

Ce Que Nous Voyons, Ce Que Nous Regarde, editado em França em 1992 e agora passado à língua portuguesa pela brasileira Editora 34, debruça-se sobre um tempo e uma conjuntura estética completamente diversos. Didi-Huberman revisitou os textos e reflexões dos artistas ligados ao movimento minimalista, como Stella, Judd ou Robert Morris, e dos críticos seus contemporâneos, como Michael Fried, para estabelecer uma abordagem crítica da tentativa de ultrapassagem do antropomorfismo e da consumação de uma arte despojada de ilusionismos.

O ensaio ganha um sentido de complementaridade quando lido no seguimento de Frangelico, que esmiuçava os reenvios místicos da pintura do século XV. Pegando na máxima de Frank Stella sobre a sua própria obra, o célebre «what you see is what you see», e nos textos de Donald Judd, Didi-Huberman aborda as consequências da aspiração minimalista de literalidade e laicização do objecto artístico como um dos pólos de «um falso dilema». Para isso foi às origens, à patrística cristã e à arte tumular medieval para entender como a ausência de imagens (a visão da ausência) pode jogar o papel paradoxal de uma promessa do divino no sistema da fé. As aspirações tautológicas dos minimalistas (nomeadamente, de Stella e Judd) seriam assim uma resposta ao que resta dessa excitação do valor da ausência. Mas na sua exigência de literalidade espacial, na sua estabilidade absoluta e na sua autoreferencialidade estanque, esses objectos seriam a resposta radical e simétrica ao efeito da crença. Se esta coloca a promessa da imagem no seu futuro, a resposta tautológica tenderia a abolir simplesmente o efeito do tempo (e o efeito da história) na presença dos objectos. Crença e tautologia opor-se-iam, deste modo, infinitamente e ficariam presas desse antagonismo empobrecedor. Seria então necessário ultrapassar esta contradição, o que Didi-Huberman propõe através da análise do próprio processo do olhar.

Para ele, uma imagem só vive no nosso olhar na medida em que ela própria nos olha nesse movimento. Cada imagem exerceria toda a sua potência no momento mesmo em que olho e imagem se unem numa mesma deflagração, construindo-se mutuamente numa operação que, sendo cindida, se torna dialéctica.

O encontro com aquela pequena peça de mobiliário terá provocado no olhar de Smith um efeito de ruptura e instabilidade que se conserva nas peças que realizou depois dessa experiência. Com efeito, Die oferece-se como um objecto latente, simultaneamente maciço e tumular, possuidor de uma presença e arauto de uma perda. Por um lado, a sua aparência de caixa cúbica subtrai-o a um esgotamento na evidência da sua presença física. Promete um interior, um ser obscuro não facultado ao contacto visual. Por outro, a sua negritude encaminha-o para uma intuição do vazio. Não é, igualmente, indiferente, nessa relação especular entre o que olhamos e o que nos olha, que o objecto tenha a altura de um homem adulto. Também esse factor activa todo um conjunto de referências inconscientes que informam o nosso olhar e nos convocam a olhá-lo.

É essa vida afirmativa das imagens, capaz de gerar crises e contradições perceptivas que Didi-Huberman propõe como o gérmen de uma dialéctica visual: «É preciso tentar voltar ao ponto de inversão e de convertibilidade, ao motor dialéctico de todas as oposições. É o momento em que o que vemos começa a ser atingido pelo que nos olha – um momento que não impõe nem um excesso de sentido (que a crença glorifica), nem a ausência cínica de sentido (que a tautologia glorifica). É o momento em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vemos» (pág. 77).

Não é menosprezável a direcção em que Didi-Huberman encaminha a sua análise, no sentido da valorização da latência das imagens pela sua capacidade de produzir uma dialéctica do visual, principalmente num tempo em que essa força dialéctica esmorece por vezes nos braços de uma retórica plana que tudo equaliza. De igual modo, é iluminadora a sua abordagem da obra de Tony Smith, mas não deixa de ser sintomático que Didi-Huberman se refira essencialmente aos textos (sempre demasiado afirmativos) de Donald Judd e quase não se debruce sobre a sua obra material como o faz com Smith ou Add Reinhardt. Didi-Huberman não ignora que há necessariamente uma «décalage» entre um programa estético e a sua concretização, repleta de efeitos não controlados. Quando olhamos para as obras de Judd alinhadas no espaço como espectros tumulares banhados pela luz, não deixamos de sentir que uma teatralidade (a mesma que tanto repugnava a Michael Fried) faz viver o espaço. Que nessa relação de mútua contaminação entre o espaço e a presença objectual algo se instaura e nos integra. Também nesse momento, a autoreferencialidade do objecto se desvanece na pureza tétrica da sua presença. E essa morte, só pressentida, nos interroga e nos olha, de algum modo.

CELSO MARTINS

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