Chantagem ao Presidente

09-09-1999
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Presidente da República entre 1951 e 1958, no fim do mandato Craveiro Lopes entrou em ruptura com Salazar. O Estado Novo não lhe perdoou as críticas e tratou-o como se fosse um inimigo. A PIDE e a Legião passaram a vigiá-lo por todo o lado. Os telefonemas foram gravados, as cartas interceptadas. Esta é a primeira parte de uma reportagem sobre a vergonhosa chantagem à intimidade do marechal «Por mim estou à vontade: não sou amigo de ninguém» Oliveira Salazar sobre Craveiro Lopes

Craveiro Lopes e sua mulher, Berta, de partida para Guimarães, em Junho de 1953

JANEIRO de 1959. Craveiro Lopes - que deixou o Palácio de Belém vai para cinco meses - faz uma viagem particular a Angola e Moçambique. Salazar, pressionado pela ala mais conservadora do regime, substituíra-o na Presidência da República pelo almirante Américo Tomás. No rescaldo da campanha de Humberto Delgado, o país permanece num virote. A repressão sobe de tom, a ponto de levar à prisão figuras sagradas da oposição democrática, como António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes. Temendo pela sua segurança, Delgado refugia-se na Embaixada do Brasil, a quem solicita asilo político. Dias depois, Henrique Galvão foge do Hospital de Santa Maria, onde estava detido, e pede protecção à Embaixada da Argentina. As conspirações militares sucedem-se, enquanto é posta a circular uma petição nacional reclamando a demissão de Salazar. Promovido a marechal em Novembro, é em Lourenço Marques que o ex-Presidente recebe o respectivo bastão. A viagem às duas colónias é um sucesso local, que a censura à Imprensa impede de ecoar nos jornais da metrópole. O regime não confia no seu único marechal vivo, que é suspeito de intentos golpistas. Tanto assim que a PIDE e a Legião Portuguesa não o perdem de vista. À chegada ao aeroporto da Portela, na madrugada de 15 de Fevereiro, Craveiro Lopes é discretamente seguido por um agente da polícia política. A sua residência, na Avenida D. Rodrigo da Cunha, passa a ser objecto de especial vigilância por esbirros da PIDE, que fazem chegar os respectivos relatórios à sede da polícia. O correio é espiolhado, os telefonemas escutados e gravados, a sua vida espiada... No intervalo de meia dúzia de meses, Craveiro Lopes deixou de ser Presidente da República e passou à categoria de temido adversário do regime. Francisco Higino Craveiro Lopes sucedeu na Presidência da República a Óscar Fragoso Carmona, falecido a 18 de Abril de 1951, a meio do seu segundo mandato. A morte do velho marechal, de 82 anos, que se comportara como se fosse um monarca, obrigara o regime a escolher um novo Presidente. Assim, sob proposta de Oliveira Salazar, a União Nacional (o partido único) aprovou o nome do general Craveiro Lopes. Era a continuação dos militares na chefia do Estado, na mais pura tradição saída do 28 de Maio de 1926.

Posse do Presidente Craveiro Lopes, na Assembleia Nacional. A seu lado, Salazar e Marcello Caetano

Convidado por Salazar, Craveiro Lopes nem sequer hesitou: a um militar da sua cepa nunca passaria pela cabeça recusar uma missão ditada pelo interesse nacional. Oficial com uma invejável carreira mas praticamente desconhecido da opinião pública, foi eleito a 22 de Julho de 1951, num sufrágio em que não teve qualquer adversário. O candidato oposicionista - almirante Quintão Meireles - desistira três dias antes, por se recusar a participar no que designou de «simulacro de eleição presidencial». A posse teve lugar a 9 de Agosto de 1951. Ao contrário do marechal Carmona, o novo inquilino instala-se no Palácio, acompanhado pela esposa, Berta Arthur Craveiro Lopes. A reduzida equipa de colaboradores é recrutada exclusivamente entre a família e a esfera restrita de amigos mais chegados. Para ajudantes de campo, escolhe o primeiro dos seus quatro filhos, o capitão João Craveiro Lopes, e o genro, o capitão-aviador Raul Teles Grilo. Para chefe da Casa Militar, vai buscar o comandante Liberal da Câmara, mais tarde substituído pelo coronel Bento da França, sogro do filho Nuno. O médico é o velho amigo Ricardo Horta - que viria a ser director do Hospital Militar e presidente da Cruz Vermelha. A maior parte do mandato de Craveiro Lopes, de sete anos, é cumprido de forma pacífica, sem problemas de vulto e num ambiente de excelente colaboração com S. Bento. Craveiro e Salazar reúnem-se semanalmente ao fim da manhã de domingo na residência do primeiro, ao mesmo tempo que trocam várias centenas de cartas (parcialmente depositadas no Arquivo Oliveira Salazar, à guarda da Torre do Tombo). Esvaziado de poderes, carecendo de experiência governativa e revelando alguma insegurança política, Craveiro procura não dar passos em falso. Recorre amiúde ao conselho de Salazar, que lhe corrige ou até redige os seus discursos mais importantes. É o caso, designadamente, das intervenções feitas em visitas de Estado ou quando recebe personalidades estrangeiras de nomeada. Até mesmo as tradicionais mensagens de Ano Novo têm o dedo de Salazar.

O primeiro encontro do novo Presidente da República com os jornalistas, no dia da posse

A seriedade é um dos sinais mais marcantes de Craveiro Lopes, devidamente registada por Franco Nogueira, que na sua monumental biografia Salazar escreve que o Presidente «respira dignidade, honestidade, devoção à coisa pública». Em contrapartida, é notória «a sua rigidez, o seu formalismo protocolar», bem como alegadas «limitações naturais de inteligência e cultura», que contrastam «com as subtilezas de Salazar». A sua imagem pública, com efeito, é afectada por um perfil acentuadamente seco no trato, rígido no porte, austero no estilo, reservado e distante na comunicação... Militar da cabeça aos pés, político de formação conservadora e homem de educação tradicional, é um Presidente escrupuloso no protocolo mas de sorriso raro e de acesso difícil. Salazar tem sobejas razões para estar satisfeito com o desempenho presidencial. Tudo somado, é um chefe de Estado à imagem da função concebida pelo fautor do regime. Numa confidência feita ao seu ministro da Presidência, Marcello Caetano (relatada por este em Minhas Memórias de Salazar), reconhecerá: «Em Belém respira-se honestidade (...) Não sendo homem de largos voos e tendo inteligência limitada, possui todavia tão boa vontade de acertar, tal interesse pelos negócios públicos, que dá gosto tratar com ele.» Curiosamente, é nas suas várias deslocações ao exterior que obtém maior sucesso, confirmado por figuras insuspeitas como Marcello Caetano e Franco Nogueira. Visita as cinco colónias portuguesas em África. Desloca-se à África do Sul e à Federação das Rodésias e Niassalândia. Viaja à vizinha e aliada Espanha e ao longínquo e irmão Brasil. Em Outubro de 1955, vai à Grã-Bretanha; dois anos depois, recebe a Rainha Isabel II, que vem a Lisboa em viagem privada mas nem por isso menos mediatizada. A partir de 1956, porém, o mandato é agitado por uma fractura entre o Presidente e o ministro da Defesa, coronel Santos Costa, que aliás participara na sua escolha para Belém. As causas são variadas e vão desde a incompatibilidade de temperamentos até à forma discricionária como Santos Costa comanda as Forças Armadas desde há 22 anos - primeiro como subsecretário da Guerra (1936-44), depois como ministro da mesma pasta (1944-50) e, por fim, como ministro da Defesa Nacional (desde 1950).

Craveiro Lopes não se confinou aos muros do Palácio de Belém. Uma das primeiras visitas foi ao Porto, em Maio de 1952

De Santos Costa dirá Franco Nogueira que não ocultava «a sua animosidade, até o seu desdém para com o chefe de Estado». A esta fricção soma-se uma campanha por parte dos sectores monárquicos e ultras, que não perdoam um alegado «republicanismo jacobino» (na expressão do mesmo autor) do Presidente, a quem imputam o secreto projecto de substituição de Salazar por Marcello Caetano - o ministro da Presidência e líder da ala reformista e modernizadora do regime. A campanha intensifica-se na sequência da viagem presidencial ao Brasil de Junho de 1957. É a primeira visita de um chefe de Estado português ao Brasil desde António José de Almeida, há 35 anos. Franco Nogueira resume a visita num único adjectivo: «apoteótica». Mário de Figueiredo, um dos mais influentes conselheiros privados de Salazar e seu amigo dilecto desde os tempos do seminário, integra a comitiva. No regresso, o Presidente tem uma longa conversa no Palácio com Figueiredo, líder do partido único na Assembleia Nacional. Num ambiente descontraído e de grande confiança, procura equacionar o futuro político do país, uma vez que, justifica, Salazar, à beira de completar 68 anos, cansado e frequentemente doente, não é eterno. O episódio será narrado, dias depois, por Craveiro a Caetano, que o regista no seu diário. Vivamente alterado, Figueiredo rejeita liminarmente a hipótese de substituição de Salazar e ameaça: «No dia em que, por qualquer razão, Salazar deixar o Governo, há uma única solução a adoptar: restituir o poder ao Exército», ou seja, a Santos Costa. Antunes Varela, o então ministro da Justiça, confirma o incidente, de que teve conhecimento imediato: «O Mário de Figueiredo interpretou a questão colocada pelo Craveiro como a manifestação do desejo de querer reformar o dr. Salazar e ficou furioso.» Monárquico e um dos próceres da ditadura, Figueiredo apressa-se a propagar a notícia de que Craveiro tenciona afastar Salazar. Disso mesmo dá conta, num jantar íntimo, a Santos Costa e a João Lumbrales, ex-ministro da Presidência e outro dos esteios da corrente ultra.

Em Maio de 1953, Craveiro Lopes viajou até Madrid. As crónicas falam de uma recepção calorosa nas estações do comboio

Alarmado, este corre a avisar o ditador, que confirma a diligência a Caetano dizendo-lhe que aparecera «o Lumbrales a gaguejar a história de uma conspiração conduzida contra mim pelo chefe do Estado». Santos Costa, por seu turno, promove, a 20 de Agosto, uma reunião dos altos comandos das Forças Armadas, procurando aliciá-los contra uma eventual remoção de Salazar. O objectivo, conta o coronel João Craveiro Lopes, primogénito do marechal, era «retirar ao Presidente a prerrogativa de poder demitir o Presidente do Conselho». Ou seja, subtrair-lhe o único poder real que lhe era conferido pela Constituição. É por uma carta anónima - «a única do género que recebemos no Palácio durante sete anos», diz o filho João - que o Presidente toma conhecimento da iniciativa do ministro da Defesa. O alcance da reunião é confirmado, de viva voz, pelo coronel Mário Cunha, comandante-geral da PSP, e pelo general Valente de Carvalho, governador militar de Lisboa. Craveiro sente-se afrontado e injuriado. Pede explicações a Salazar, junto de quem reclama a demissão de Santos Costa. O então ajudante-de-campo prossegue: «O meu pai disse ao Salazar que retirava a sua confiança ao ministro da Defesa. Mais: se entretanto não fosse tomada nenhuma decisão, seria melhor que o ministro não lhe aparecesse pela frente em qualquer cerimónia oficial.» Salazar, porém, desvaloriza o caso e recusa tomar medidas contra o ministro. Agastado, o Presidente dirige, a 4 de Setembro, uma missiva a Salazar em que, pela primeira vez, não se coíbe de manifestar a sua indignação. Referindo-se à maquinação de Santos Costa, acusa-o de ter agravado «o Chefe do Estado, colocando-o, perante os oficiais generais e até os comandantes das unidades (...), em situação que não prestigia a função que exerce e atinge a sua dignidade». O episódio oficializa a ruptura política entre o Presidente e a ala mais conservadora. A intriga e a campanha montada por Mário de Figueiredo e sequazes prossegue, bem sucedida. O vírus da desconfiança é inoculado no próprio Salazar, que desabafa junto de Caetano: «(Craveiro Lopes) não tem inteligência suficiente para me iludir.» Como refere Antunes Varela, «criou-se efectivamente um clima contrário à sua continuação. Na União Nacional, engrossou muito a ideia de que se devia procurar outra pessoa» para Belém.

Abril de 1953, na Assembleia Nacional. As relações entre os presidentes do Conselho e da República ainda eram excelentes

Não demorará muito tempo até que se espalhe o rumor de uma alegada demissão do Presidente. Incrédulo, o almirante Mendes Cabeçadas, um dos clássicos da oposição, pede-lhe uma audiência para se inteirar do sucedido. O invulgar encontro realiza-se a 26 de Novembro de 1957. Mais tarde, em carta a Salazar, Craveiro explica que Cabeçadas «veio procurar-me por correr no país a notícia de que eu tinha decidido renunciar». Satisfeito com o desmentido, o almirante retira-se, dizendo que o ia comunicar «imediatamente aos seus amigos». A carta de Craveiro finaliza com um remoque às «almas caridosas» do regime que «puseram mais essa atoarda a correr». Neste contexto, de nada servem a Craveiro os êxitos internacionais. Nem os apoios manifestados pela Imprensa brasileira nem a simpatia da diplomacia britânica. Com efeito, o influente e bem informado embaixador em Lisboa «torce» pela sua continuidade. Num relatório de Março de 1958 (citado por Marta Duarte e Pedro Aires Oliveira em Humberto Delgado. As Eleições de 1958), Sir Charles Stirling elogia Craveiro Lopes: «Embora não seja uma figura popular nem pareça estar nas melhores relações com o dr. Salazar, ou com o ministro da Defesa, desempenhou os seus deveres como Presidente de forma conscienciosa e digna.» Em Abril, o regime desencadeia o processo de escolha do candidato às eleições presidenciais. Craveiro é liminarmente posto de lado. Franco Nogueira enumera os argumentos invocados: «Antes de mais, a sua impopularidade no país; depois, a sua identificação, real ou imaginária, com as esquerdas; e, por fim, a hostilidade que suscita por parte dos militares, ou de alguns destes.» No antecedente, Salazar dera a entender, por mais de uma vez, que estava satisfeito com o desempenho presidencial. Segundo Manuel José Homem de Mello (em Cartas de Salazar a Craveiro Lopes (1951-1958)), o Presidente «e sobretudo a esposa acreditavam que Salazar queria que ele fosse reeleito». É por sugestão de Caetano que Salazar se desloca a 26 de Abril a Belém, para comunicar a sua decisão de avançar com um outro candidato. Uma decisão, aliás, já noticiada pelo menos pelo diário francês «Le Monde», que até divulgara o nome do escolhido: o almirante Américo Tomás.

O Arquivo da PIDE/DGS conserva cartas interceptadas a Craveiro Lopes e relatórios de vigilância à sua residência

Numa tentativa de compor as coisas, Salazar propõe a Craveiro que lhe dirija uma carta, anunciando a vontade de não repetir o mandato. João Craveiro Lopes pormenoriza: «Salazar sugeriu ao meu pai que declarasse não ser seu desejo recandidatar-se, por motivos de saúde. É claro que ele recusou em termos firmes, dizendo que isso seria atraiçoar as pessoas que tinham confiado nele e o consideravam um homem de carácter.» A 1 de Maio, reúne-se a Comissão Central da União Nacional. Posta de parte a hipótese Craveiro, a maioria dos membros inclina-se a favor de uma candidatura do próprio Salazar, que, no entanto, se descarta. Acaba por ser confirmada a escolha do ministro da Marinha, Américo Tomás. A notícia é publicada na Imprensa internacional de dia 2. No mesmo dia, Salazar escreve a Craveiro. A carta é um tratado de hipocrisia: «Tive a grande satisfação de não ouvir senão encómios aos serviços prestados por Vossa Excelência e palavras de justiça para as suas qualidades. Foi altamente consolador sob este aspecto a sessão. A deliberação final nasceu apenas do reconhecimento das circunstâncias políticas a que pareceu conveniente atender.» Dias depois, Caetano desloca-se a Belém. Berta, a primeira-dama, é uma mulher profundamente decepcionada. Craveiro, por sua vez, não esconde um profundo azedume - com a conspiração, com a forma como o processo foi conduzido, com a falta de frontalidade de Salazar. «Saio daqui amargurado», confessa; «as intrigas dos meus inimigos puderam mais que a minha recta intenção e o meu desejo de bem servir.» Como mais tarde viria a confidenciar ao então capitão Vicente da Silva (que rendeu o filho no lugar de ajudante-de-campo), Craveiro ficou «chocadíssimo com a carta e a atitude de Salazar». Após a ruptura política, é a ruptura afectiva com Salazar.

Salazar dá as boas vindas a Craveiro, no regresso da viagem presidencial a Angola e Moçambique, em Julho de 1954

A marginalização de Craveiro Lopes é um dado novo na cena política, marcada pela agitação provocada pela candidatura a Belém do general Humberto Delgado. Ela é o sinal mais evidente de uma aguda crise nas fileiras do salazarismo, que se soma à crescente contestação ao ministro Santos Costa - o expoente da corrente mais autoritária e ortodoxa. Com o intuito de aproveitar o seu capital político, Craveiro é sondado por sectores da oposição, que admitem equacionar a sua eventual recandidatura a Belém, fora do quadro do regime. João Craveiro Lopes garante que Humberto Delgado terá dito ao seu pai que «retiraria a sua candidatura se ele se apresentasse ao sufrágio». O mesmo diz Homem de Mello: «No auge da agitação, Craveiro Lopes chega a receber do seu colega de armas, general Humberto Delgado, a garantia de que desistiria de se apresentar se o Presidente da República solicitasse a renovação do mandato.» Porém, a lealdade - um dos valores em que foi educado e que mais cultivou - impede-o de aceitar o repto. «Ele fez questão de ser leal ao regime e a Salazar até ao último dia do seu mandato», anota o filho João. «O soldado ficou fiel aos seus princípios», confirma Caetano; «só depois de sair do cargo começou a conspirar.» Durante a campanha eleitoral, e até como consequência da repressão, conduzida pessoalmente pelo ministro da Defesa, a contestação a Santos Costa amplia-se. Dentro e fora do regime, é cada vez maior o número dos que reclamam a sua cabeça. Inclusivamente no seio das Forças Armadas, onde se esboça um levantamento militar. Os oficiais mais activos são sobretudo capitães: Nuno Vaz Pinto (monárquico), Almeida Santos (o líder do movimento e que viria a ser assassinado, em Março de 1960, no Guincho), Vicente da Silva (futuro ajudante-de-campo do marechal), Varela Gomes. Vicente da Silva conta que o grupo «foi várias vezes falar com o Presidente da República, às tantas da manhã. Enquanto o Vaz Pinto e o Almeida Santos eram recebidos no Palácio, eu ficava cá fora, a vigiar, numa pastelaria junto ao Museu dos Coches». Tenaz adversário de Santos Costa, Caetano é posto ao corrente pelo próprio Craveiro, num gesto de inequívoca cumplicidade entre ambos. A 2 de Junho, a menos de uma semana das eleições, o Presidente recebe um grupo de revoltosos no Palácio. No dia seguinte, dirige-se a Salazar, a quem expõe por escrito os três «objectivos do movimento».

Francisco e Berta Craveiro Lopes no Palácio de Belém, em Outubro de 1951, rodeados de seis netos

A saber: «demissão do ministro Santos Costa; adiamento das eleições; reconsideração quanto à Chefia do Estado». Craveiro desmente que haja «qualquer ligação com o general Delgado» e elogia os sediciosos, «homens na força da vida, dignos e desinteressados, profundamente chocados - como eu próprio - pelas arbitrariedades, brutalidades e completa ausência de escrúpulos do homem que durante mais de 20 anos chefia o Exército». O alegado golpe partiria da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, e incluiria a leitura de uma proclamação ao país, a partir da Emissora Nacional. Abortou, constata João Craveiro Lopes, «por manifesta falta de apoio operacional». As eleições decorrem a 8 de Junho. Américo Tomás vence mas não convence: a sua vitória sobre Humberto Delgado, o candidato único da oposição, deve-se a uma gigantesca fraude eleitoral. Não admira, pois, que a instabilidade se mantenha. Persiste a eventualidade de um pronunciamento militar. A 12 de Junho, e como assinala Telmo Faria (em Humberto Delgado. As Eleições de 1958), o general «disponibiliza-se a Craveiro Lopes», a quem oferece apoio para um golpe: «Quando V. Ex.ª queira, se encontrarão elementos mais do que suficientes nas Forças Armadas (...) para a V. Ex.ª darem apoio de que necessite.» E a 21 de Junho, reflexo da contestação que transpirou durante toda a campanha eleitoral de Delgado, Craveiro avisa Salazar que «o descontentamento no Exército é cada vez maior». À beira de terminar o mandato, o Presidente não hesita nas palavras: «Achamo-nos nas vésperas de um levantamento militar para impor a saída do coronel Santos Costa do Governo.» A finalizar, sugere que seja «tomada qualquer decisão sobre esse assunto», o que evitaria «acontecimentos muito graves, que tornariam ainda mais difícil o momento que atravessamos». A 5 de Julho, morre Berta Craveiro Lopes, vítima de um acidente vascular cerebral. Descendente de uma família britânica que se instalara em Portugal durante as invasões francesas, Berta casara-se com Francisco Higino em 1918, em Lourenço Marques.

O Presidente e sua mulher, Berta, em Londres (Outubro de 1955). Ao contrário de Salazar, Craveiro foi várias vezes ao estrangeiro

Marcello Caetano viria a traçar-lhe o perfil: «Distinta no porte e nos modos, encantadora no trato, bondosa nos sentimentos, foi sempre a esposa devotada e apagada do oficial que ia ganhando os postos um a um, mudando de guarnição de vez em quando, pronta a acompanhar o marido e a ajudá-lo com o seu trabalho doméstico e o seu espírito de economia.» As últimas semanas do mandato de Craveiro Lopes são extremamente penosas, cruéis mesmo. Por um lado, é um Presidente virtual e sem poder, que se limita a aguardar a posse do sucessor. Por outro, sente-se desrespeitado e, pior ainda, traído por Salazar e pelos seus pares das Forças Armadas. Enfim, chocado com a morte brutal da esposa, é um homem condenado à solidão e a um futuro incerto. Em desespero de causa, acelera a sua cruzada anti-Santos Costa, o coronel e ministro que teima em identificar como fonte de todos os males. Em finais de Julho, a escassas duas semanas da posse de Américo Tomás, Craveiro ameaça renunciar ao cargo. É, sem dúvida, um gesto impetuoso, ditado pela cólera e pelo exaspero, tomado, como explica o filho João, «depois de esgotados todos os outros meios». Uma das últimas cerimónias em que Craveiro participa é o ritual de despedidas do Governo. O então ministro da Justiça, Antunes Varela, relata: «Fomos todos a Belém - todos menos o dr. Salazar, que o terá feito por outra via e noutra oportunidade. Foi uma cerimónia com uma frieza de gelar: todos em fila, a cumprimentar o Presidente, com Caetano à frente, a introduzir cada um dos membros do Executivo. Foi a coisa mais lúgubre em que em alguma vez participei. Foi como se fosse uma cerimónia pública de pêsames...» No princípio de Agosto, a agitação nos meios militares é de tal ordem que Santos Costa se vê obrigado a decretar o estado de prevenção geral. A contestação ao ministro é tamanha que ele tem os dias contados. A posse do novo Presidente é a 9 de Agosto. A 14, o Governo sofre uma profunda remodelação. Dele é excluído Santos Costa, cuja substituição fora insistentemente reclamada por Craveiro Lopes e que sai do Governo ao fim de 22 anos consecutivos. Na sua queda, o coronel arrasta o principal adversário, Marcello Caetano. Salomónico, Salazar faz questão de afastar do palco os líderes visíveis das duas principais correntes que se digladiam no interior do regime. De uma só penada, afasta os principais delfins e consolida ainda mais a sua chefia e o seu poder solitário. Para ministro da Presidência, entra Pedro Teotónio Pereira; e para a Defesa, ingressa o então chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Júlio Botelho Moniz.

Carta de 21/6/58, em que Craveiro avisa Salazar: «Achamo-nos nas vésperas de um levantamento militar»...

Viúvo e ofendido, Craveiro Lopes regressa à vida comum de simples cidadão. Militar orgulhoso, profundamente doído com o regime, dispensa toda e qualquer benesse por parte do poder: recusa a residência e a viatura a que legalmente um ex-Presidente teria direito. Para além do vencimento, aceita apenas os serviços de um ajudante-de-campo - o seu filho João, à época capitão. Instala-se na Praceta D. Rodrigo da Cunha, nas traseiras da Igreja de São João de Brito, enquanto os quatro filhos o presenteiam com um carro: um Ford Anglia preto, que posteriormente trocaria por um Triumph de dois lugares e da mesma cor. Mais tarde, muda-se para a Rua General Sinel de Cordes (hoje Rua Alves Redol), para o prédio com o nº 3. Ocupa o terceiro andar direito, enquanto no lado esquerdo vive o coronel Mário Cunha, que conhecera no Colégio Militar e que foi seguramente o seu maior amigo. Comandante-geral da PSP, Mário Cunha fora uma visita assídua do Palácio, à hora do chá, e um dos poucos informadores e fiéis conselheiros do Presidente. Em 13 de Novembro de 1958, Craveiro é promovido a marechal: o primeiro da história da Força Aérea portuguesa. A proposta não partiu nem de Américo Tomás nem de Salazar, mas do general Botelho Moniz - e é uma das primeiras medidas do novo ministro da Defesa. «O Botelho Moniz convenceu o meu pai a aceitar aquele cargo honorífico, alegando que era uma iniciativa das Forças Armadas e não do Governo e que lhe permitia continuar no activo», esclarece João Craveiro Lopes. Pela mesma altura, trava conhecimento com José Manuel Homem de Mello; ex-deputado à Assembleia Nacional pelo círculo de Aveiro e filho do conde de Águeda, é um dissidente do salazarismo.

... a 8, o general participara nas eleições de Delgado

A confiança pessoal e uma notória empatia política fazem do advogado (como o próprio afirma) «uma espécie de assessor político» ou conselheiro do marechal. Nos anos subsequentes, passam a avistar-se amiúde, incluindo um almoço semanal em casa do ex-Presidente. Assim que Craveiro deixa o Palácio de Belém, a PIDE e a Legião Portuguesa montam-lhe um sistema de vigilância quase permanente. A explicação posterior será dada por Franco Nogueira: «Regressado à vida privada, Craveiro Lopes não fica inactivo (...) Sente-se agora livre de exprimir as suas opiniões, formular as suas críticas, provocar encontros, mobilizar vontades, acaso esboçar um princípio de organização: a coberto da sua imunidade de antigo Presidente da República, conduz uma acção quase conspiratória.» Desde Março de 1940 que a PIDE tinha um processo, na sede (nº 2170 SR), aberto em nome de Francisco Higino Craveiro Lopes, era ele tenente-coronel em Tancos. Era um processo de rotina, interrompido durante a presidência mas retomado logo após a saída de Belém. Em Novembro de 1958 é aberto outro processo, na delegação de Coimbra (nº 17.583), onde é registado o rumor de que Craveiro «está ligado com os generais Botelho Moniz e Humberto Delgado e outros oficiais superiores na preparação, para breve, dum golpe de estado, formando a seguir uma Junta Militar». Essa informação insere a visita em curso a Angola e a Moçambique no mesmo projecto golpista - um temor partilhado pela Legião, que anota o facto na ficha aberta em nome do seu ex-comandante-geral. A viagem às duas grandes colónias africanas arrasta-se por alguns meses; apesar de ser de carácter particular, tem uma grande ressonância política. Sobretudo em Moçambique, onde viveu e combateu e onde recebe o bastão de marechal, fruto de uma subscrição em que participam as chamadas forças vivas do território. É uma bela peça, forrada a veludo azul e com incrustações de ouro e prata, entregue em Lourenço Marques; é ainda aqui que recebe as estrelas de ouro do marechalato. A censura, porém, impede os jornais da metrópole de relatar os pormenores - um «símbolo dos tempos que estamos vivendo», queixa-se o marechal em carta a Homem de Mello, escrita da capital moçambicana.

Manuel Craveiro Lopes, o filho mais novo e oficial da Força Aérea como o pai, exibe a foto oficial do Presidente

A visita a África coincide com uma inusitada agitação política e militar em Portugal, rescaldo da contestação sem precedentes à ditadura desencadeada pelo fenómeno Delgado. Pelo sim pelo não, no regresso do continente negro, o ex-Presidente é especialmente enquadrado. No aeroporto da Portela, onde chega no dia 15 de Fevereiro de 1959, aguardam-no o ministro da Presidência, Pedro Teotónio Pereira, o chefe de Estado-Maior da Força Aérea, general Costa Macedo, e o director da PIDE, capitão Neves Graça. Nessa noite e nos dias imediatos, a casa do marechal, na D. Rodrigo da Cunha, é objecto de especial vigilância por agentes da polícia, que fazem chegar à sede os seus relatórios. Este procedimento manter-se-á nos anos seguintes. «À porta da residência estava sempre um gajo à paisana. Era um pide, a quem ele não ligava nenhuma», refere Vicente da Silva. O controlo dos passos e contactos do marechal alarga-se ao correio. No Verão de 1959, pelo menos uma carta e um postal não chegam ao destinatário, tendo ficado retidos num dos três processos abertos pela PIDE. Também o telefone é colocado sob escuta. «Percebia-se perfeitamente. Era uma vergonha. Às vezes, até se metiam nas conversas», regista Vicente da Silva. Manuel Craveiro Lopes, o filho mais novo, recorda-se de um desabafo irado do pai ao ouvir o familiar «clic» no auscultador: «Lá estão estes canalhas a escutar!» Texto de JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA, com VALENTINA MARCELINO

Chantagem ao Presidente

Chantagem ao Presidente

Presidente ameaça renunciar

Carreira notável

Presidente da República entre 1951 e 1958, no fim do mandato Craveiro Lopes entrou em ruptura com Salazar. O Estado Novo não lhe perdoou as críticas e tratou-o como se fosse um inimigo. A PIDE e a Legião passaram a vigiá-lo por todo o lado. Os telefonemas foram gravados, as cartas interceptadas. Esta é a primeira parte de uma reportagem sobre a vergonhosa chantagem à intimidade do marechal «Por mim estou à vontade: não sou amigo de ninguém» Oliveira Salazar sobre Craveiro Lopes

Craveiro Lopes e sua mulher, Berta, de partida para Guimarães, em Junho de 1953

JANEIRO de 1959. Craveiro Lopes - que deixou o Palácio de Belém vai para cinco meses - faz uma viagem particular a Angola e Moçambique. Salazar, pressionado pela ala mais conservadora do regime, substituíra-o na Presidência da República pelo almirante Américo Tomás. No rescaldo da campanha de Humberto Delgado, o país permanece num virote. A repressão sobe de tom, a ponto de levar à prisão figuras sagradas da oposição democrática, como António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes. Temendo pela sua segurança, Delgado refugia-se na Embaixada do Brasil, a quem solicita asilo político. Dias depois, Henrique Galvão foge do Hospital de Santa Maria, onde estava detido, e pede protecção à Embaixada da Argentina. As conspirações militares sucedem-se, enquanto é posta a circular uma petição nacional reclamando a demissão de Salazar. Promovido a marechal em Novembro, é em Lourenço Marques que o ex-Presidente recebe o respectivo bastão. A viagem às duas colónias é um sucesso local, que a censura à Imprensa impede de ecoar nos jornais da metrópole. O regime não confia no seu único marechal vivo, que é suspeito de intentos golpistas. Tanto assim que a PIDE e a Legião Portuguesa não o perdem de vista. À chegada ao aeroporto da Portela, na madrugada de 15 de Fevereiro, Craveiro Lopes é discretamente seguido por um agente da polícia política. A sua residência, na Avenida D. Rodrigo da Cunha, passa a ser objecto de especial vigilância por esbirros da PIDE, que fazem chegar os respectivos relatórios à sede da polícia. O correio é espiolhado, os telefonemas escutados e gravados, a sua vida espiada... No intervalo de meia dúzia de meses, Craveiro Lopes deixou de ser Presidente da República e passou à categoria de temido adversário do regime. Francisco Higino Craveiro Lopes sucedeu na Presidência da República a Óscar Fragoso Carmona, falecido a 18 de Abril de 1951, a meio do seu segundo mandato. A morte do velho marechal, de 82 anos, que se comportara como se fosse um monarca, obrigara o regime a escolher um novo Presidente. Assim, sob proposta de Oliveira Salazar, a União Nacional (o partido único) aprovou o nome do general Craveiro Lopes. Era a continuação dos militares na chefia do Estado, na mais pura tradição saída do 28 de Maio de 1926.

Posse do Presidente Craveiro Lopes, na Assembleia Nacional. A seu lado, Salazar e Marcello Caetano

Convidado por Salazar, Craveiro Lopes nem sequer hesitou: a um militar da sua cepa nunca passaria pela cabeça recusar uma missão ditada pelo interesse nacional. Oficial com uma invejável carreira mas praticamente desconhecido da opinião pública, foi eleito a 22 de Julho de 1951, num sufrágio em que não teve qualquer adversário. O candidato oposicionista - almirante Quintão Meireles - desistira três dias antes, por se recusar a participar no que designou de «simulacro de eleição presidencial». A posse teve lugar a 9 de Agosto de 1951. Ao contrário do marechal Carmona, o novo inquilino instala-se no Palácio, acompanhado pela esposa, Berta Arthur Craveiro Lopes. A reduzida equipa de colaboradores é recrutada exclusivamente entre a família e a esfera restrita de amigos mais chegados. Para ajudantes de campo, escolhe o primeiro dos seus quatro filhos, o capitão João Craveiro Lopes, e o genro, o capitão-aviador Raul Teles Grilo. Para chefe da Casa Militar, vai buscar o comandante Liberal da Câmara, mais tarde substituído pelo coronel Bento da França, sogro do filho Nuno. O médico é o velho amigo Ricardo Horta - que viria a ser director do Hospital Militar e presidente da Cruz Vermelha. A maior parte do mandato de Craveiro Lopes, de sete anos, é cumprido de forma pacífica, sem problemas de vulto e num ambiente de excelente colaboração com S. Bento. Craveiro e Salazar reúnem-se semanalmente ao fim da manhã de domingo na residência do primeiro, ao mesmo tempo que trocam várias centenas de cartas (parcialmente depositadas no Arquivo Oliveira Salazar, à guarda da Torre do Tombo). Esvaziado de poderes, carecendo de experiência governativa e revelando alguma insegurança política, Craveiro procura não dar passos em falso. Recorre amiúde ao conselho de Salazar, que lhe corrige ou até redige os seus discursos mais importantes. É o caso, designadamente, das intervenções feitas em visitas de Estado ou quando recebe personalidades estrangeiras de nomeada. Até mesmo as tradicionais mensagens de Ano Novo têm o dedo de Salazar.

O primeiro encontro do novo Presidente da República com os jornalistas, no dia da posse

A seriedade é um dos sinais mais marcantes de Craveiro Lopes, devidamente registada por Franco Nogueira, que na sua monumental biografia Salazar escreve que o Presidente «respira dignidade, honestidade, devoção à coisa pública». Em contrapartida, é notória «a sua rigidez, o seu formalismo protocolar», bem como alegadas «limitações naturais de inteligência e cultura», que contrastam «com as subtilezas de Salazar». A sua imagem pública, com efeito, é afectada por um perfil acentuadamente seco no trato, rígido no porte, austero no estilo, reservado e distante na comunicação... Militar da cabeça aos pés, político de formação conservadora e homem de educação tradicional, é um Presidente escrupuloso no protocolo mas de sorriso raro e de acesso difícil. Salazar tem sobejas razões para estar satisfeito com o desempenho presidencial. Tudo somado, é um chefe de Estado à imagem da função concebida pelo fautor do regime. Numa confidência feita ao seu ministro da Presidência, Marcello Caetano (relatada por este em Minhas Memórias de Salazar), reconhecerá: «Em Belém respira-se honestidade (...) Não sendo homem de largos voos e tendo inteligência limitada, possui todavia tão boa vontade de acertar, tal interesse pelos negócios públicos, que dá gosto tratar com ele.» Curiosamente, é nas suas várias deslocações ao exterior que obtém maior sucesso, confirmado por figuras insuspeitas como Marcello Caetano e Franco Nogueira. Visita as cinco colónias portuguesas em África. Desloca-se à África do Sul e à Federação das Rodésias e Niassalândia. Viaja à vizinha e aliada Espanha e ao longínquo e irmão Brasil. Em Outubro de 1955, vai à Grã-Bretanha; dois anos depois, recebe a Rainha Isabel II, que vem a Lisboa em viagem privada mas nem por isso menos mediatizada. A partir de 1956, porém, o mandato é agitado por uma fractura entre o Presidente e o ministro da Defesa, coronel Santos Costa, que aliás participara na sua escolha para Belém. As causas são variadas e vão desde a incompatibilidade de temperamentos até à forma discricionária como Santos Costa comanda as Forças Armadas desde há 22 anos - primeiro como subsecretário da Guerra (1936-44), depois como ministro da mesma pasta (1944-50) e, por fim, como ministro da Defesa Nacional (desde 1950).

Craveiro Lopes não se confinou aos muros do Palácio de Belém. Uma das primeiras visitas foi ao Porto, em Maio de 1952

De Santos Costa dirá Franco Nogueira que não ocultava «a sua animosidade, até o seu desdém para com o chefe de Estado». A esta fricção soma-se uma campanha por parte dos sectores monárquicos e ultras, que não perdoam um alegado «republicanismo jacobino» (na expressão do mesmo autor) do Presidente, a quem imputam o secreto projecto de substituição de Salazar por Marcello Caetano - o ministro da Presidência e líder da ala reformista e modernizadora do regime. A campanha intensifica-se na sequência da viagem presidencial ao Brasil de Junho de 1957. É a primeira visita de um chefe de Estado português ao Brasil desde António José de Almeida, há 35 anos. Franco Nogueira resume a visita num único adjectivo: «apoteótica». Mário de Figueiredo, um dos mais influentes conselheiros privados de Salazar e seu amigo dilecto desde os tempos do seminário, integra a comitiva. No regresso, o Presidente tem uma longa conversa no Palácio com Figueiredo, líder do partido único na Assembleia Nacional. Num ambiente descontraído e de grande confiança, procura equacionar o futuro político do país, uma vez que, justifica, Salazar, à beira de completar 68 anos, cansado e frequentemente doente, não é eterno. O episódio será narrado, dias depois, por Craveiro a Caetano, que o regista no seu diário. Vivamente alterado, Figueiredo rejeita liminarmente a hipótese de substituição de Salazar e ameaça: «No dia em que, por qualquer razão, Salazar deixar o Governo, há uma única solução a adoptar: restituir o poder ao Exército», ou seja, a Santos Costa. Antunes Varela, o então ministro da Justiça, confirma o incidente, de que teve conhecimento imediato: «O Mário de Figueiredo interpretou a questão colocada pelo Craveiro como a manifestação do desejo de querer reformar o dr. Salazar e ficou furioso.» Monárquico e um dos próceres da ditadura, Figueiredo apressa-se a propagar a notícia de que Craveiro tenciona afastar Salazar. Disso mesmo dá conta, num jantar íntimo, a Santos Costa e a João Lumbrales, ex-ministro da Presidência e outro dos esteios da corrente ultra.

Em Maio de 1953, Craveiro Lopes viajou até Madrid. As crónicas falam de uma recepção calorosa nas estações do comboio

Alarmado, este corre a avisar o ditador, que confirma a diligência a Caetano dizendo-lhe que aparecera «o Lumbrales a gaguejar a história de uma conspiração conduzida contra mim pelo chefe do Estado». Santos Costa, por seu turno, promove, a 20 de Agosto, uma reunião dos altos comandos das Forças Armadas, procurando aliciá-los contra uma eventual remoção de Salazar. O objectivo, conta o coronel João Craveiro Lopes, primogénito do marechal, era «retirar ao Presidente a prerrogativa de poder demitir o Presidente do Conselho». Ou seja, subtrair-lhe o único poder real que lhe era conferido pela Constituição. É por uma carta anónima - «a única do género que recebemos no Palácio durante sete anos», diz o filho João - que o Presidente toma conhecimento da iniciativa do ministro da Defesa. O alcance da reunião é confirmado, de viva voz, pelo coronel Mário Cunha, comandante-geral da PSP, e pelo general Valente de Carvalho, governador militar de Lisboa. Craveiro sente-se afrontado e injuriado. Pede explicações a Salazar, junto de quem reclama a demissão de Santos Costa. O então ajudante-de-campo prossegue: «O meu pai disse ao Salazar que retirava a sua confiança ao ministro da Defesa. Mais: se entretanto não fosse tomada nenhuma decisão, seria melhor que o ministro não lhe aparecesse pela frente em qualquer cerimónia oficial.» Salazar, porém, desvaloriza o caso e recusa tomar medidas contra o ministro. Agastado, o Presidente dirige, a 4 de Setembro, uma missiva a Salazar em que, pela primeira vez, não se coíbe de manifestar a sua indignação. Referindo-se à maquinação de Santos Costa, acusa-o de ter agravado «o Chefe do Estado, colocando-o, perante os oficiais generais e até os comandantes das unidades (...), em situação que não prestigia a função que exerce e atinge a sua dignidade». O episódio oficializa a ruptura política entre o Presidente e a ala mais conservadora. A intriga e a campanha montada por Mário de Figueiredo e sequazes prossegue, bem sucedida. O vírus da desconfiança é inoculado no próprio Salazar, que desabafa junto de Caetano: «(Craveiro Lopes) não tem inteligência suficiente para me iludir.» Como refere Antunes Varela, «criou-se efectivamente um clima contrário à sua continuação. Na União Nacional, engrossou muito a ideia de que se devia procurar outra pessoa» para Belém.

Abril de 1953, na Assembleia Nacional. As relações entre os presidentes do Conselho e da República ainda eram excelentes

Não demorará muito tempo até que se espalhe o rumor de uma alegada demissão do Presidente. Incrédulo, o almirante Mendes Cabeçadas, um dos clássicos da oposição, pede-lhe uma audiência para se inteirar do sucedido. O invulgar encontro realiza-se a 26 de Novembro de 1957. Mais tarde, em carta a Salazar, Craveiro explica que Cabeçadas «veio procurar-me por correr no país a notícia de que eu tinha decidido renunciar». Satisfeito com o desmentido, o almirante retira-se, dizendo que o ia comunicar «imediatamente aos seus amigos». A carta de Craveiro finaliza com um remoque às «almas caridosas» do regime que «puseram mais essa atoarda a correr». Neste contexto, de nada servem a Craveiro os êxitos internacionais. Nem os apoios manifestados pela Imprensa brasileira nem a simpatia da diplomacia britânica. Com efeito, o influente e bem informado embaixador em Lisboa «torce» pela sua continuidade. Num relatório de Março de 1958 (citado por Marta Duarte e Pedro Aires Oliveira em Humberto Delgado. As Eleições de 1958), Sir Charles Stirling elogia Craveiro Lopes: «Embora não seja uma figura popular nem pareça estar nas melhores relações com o dr. Salazar, ou com o ministro da Defesa, desempenhou os seus deveres como Presidente de forma conscienciosa e digna.» Em Abril, o regime desencadeia o processo de escolha do candidato às eleições presidenciais. Craveiro é liminarmente posto de lado. Franco Nogueira enumera os argumentos invocados: «Antes de mais, a sua impopularidade no país; depois, a sua identificação, real ou imaginária, com as esquerdas; e, por fim, a hostilidade que suscita por parte dos militares, ou de alguns destes.» No antecedente, Salazar dera a entender, por mais de uma vez, que estava satisfeito com o desempenho presidencial. Segundo Manuel José Homem de Mello (em Cartas de Salazar a Craveiro Lopes (1951-1958)), o Presidente «e sobretudo a esposa acreditavam que Salazar queria que ele fosse reeleito». É por sugestão de Caetano que Salazar se desloca a 26 de Abril a Belém, para comunicar a sua decisão de avançar com um outro candidato. Uma decisão, aliás, já noticiada pelo menos pelo diário francês «Le Monde», que até divulgara o nome do escolhido: o almirante Américo Tomás.

O Arquivo da PIDE/DGS conserva cartas interceptadas a Craveiro Lopes e relatórios de vigilância à sua residência

Numa tentativa de compor as coisas, Salazar propõe a Craveiro que lhe dirija uma carta, anunciando a vontade de não repetir o mandato. João Craveiro Lopes pormenoriza: «Salazar sugeriu ao meu pai que declarasse não ser seu desejo recandidatar-se, por motivos de saúde. É claro que ele recusou em termos firmes, dizendo que isso seria atraiçoar as pessoas que tinham confiado nele e o consideravam um homem de carácter.» A 1 de Maio, reúne-se a Comissão Central da União Nacional. Posta de parte a hipótese Craveiro, a maioria dos membros inclina-se a favor de uma candidatura do próprio Salazar, que, no entanto, se descarta. Acaba por ser confirmada a escolha do ministro da Marinha, Américo Tomás. A notícia é publicada na Imprensa internacional de dia 2. No mesmo dia, Salazar escreve a Craveiro. A carta é um tratado de hipocrisia: «Tive a grande satisfação de não ouvir senão encómios aos serviços prestados por Vossa Excelência e palavras de justiça para as suas qualidades. Foi altamente consolador sob este aspecto a sessão. A deliberação final nasceu apenas do reconhecimento das circunstâncias políticas a que pareceu conveniente atender.» Dias depois, Caetano desloca-se a Belém. Berta, a primeira-dama, é uma mulher profundamente decepcionada. Craveiro, por sua vez, não esconde um profundo azedume - com a conspiração, com a forma como o processo foi conduzido, com a falta de frontalidade de Salazar. «Saio daqui amargurado», confessa; «as intrigas dos meus inimigos puderam mais que a minha recta intenção e o meu desejo de bem servir.» Como mais tarde viria a confidenciar ao então capitão Vicente da Silva (que rendeu o filho no lugar de ajudante-de-campo), Craveiro ficou «chocadíssimo com a carta e a atitude de Salazar». Após a ruptura política, é a ruptura afectiva com Salazar.

Salazar dá as boas vindas a Craveiro, no regresso da viagem presidencial a Angola e Moçambique, em Julho de 1954

A marginalização de Craveiro Lopes é um dado novo na cena política, marcada pela agitação provocada pela candidatura a Belém do general Humberto Delgado. Ela é o sinal mais evidente de uma aguda crise nas fileiras do salazarismo, que se soma à crescente contestação ao ministro Santos Costa - o expoente da corrente mais autoritária e ortodoxa. Com o intuito de aproveitar o seu capital político, Craveiro é sondado por sectores da oposição, que admitem equacionar a sua eventual recandidatura a Belém, fora do quadro do regime. João Craveiro Lopes garante que Humberto Delgado terá dito ao seu pai que «retiraria a sua candidatura se ele se apresentasse ao sufrágio». O mesmo diz Homem de Mello: «No auge da agitação, Craveiro Lopes chega a receber do seu colega de armas, general Humberto Delgado, a garantia de que desistiria de se apresentar se o Presidente da República solicitasse a renovação do mandato.» Porém, a lealdade - um dos valores em que foi educado e que mais cultivou - impede-o de aceitar o repto. «Ele fez questão de ser leal ao regime e a Salazar até ao último dia do seu mandato», anota o filho João. «O soldado ficou fiel aos seus princípios», confirma Caetano; «só depois de sair do cargo começou a conspirar.» Durante a campanha eleitoral, e até como consequência da repressão, conduzida pessoalmente pelo ministro da Defesa, a contestação a Santos Costa amplia-se. Dentro e fora do regime, é cada vez maior o número dos que reclamam a sua cabeça. Inclusivamente no seio das Forças Armadas, onde se esboça um levantamento militar. Os oficiais mais activos são sobretudo capitães: Nuno Vaz Pinto (monárquico), Almeida Santos (o líder do movimento e que viria a ser assassinado, em Março de 1960, no Guincho), Vicente da Silva (futuro ajudante-de-campo do marechal), Varela Gomes. Vicente da Silva conta que o grupo «foi várias vezes falar com o Presidente da República, às tantas da manhã. Enquanto o Vaz Pinto e o Almeida Santos eram recebidos no Palácio, eu ficava cá fora, a vigiar, numa pastelaria junto ao Museu dos Coches». Tenaz adversário de Santos Costa, Caetano é posto ao corrente pelo próprio Craveiro, num gesto de inequívoca cumplicidade entre ambos. A 2 de Junho, a menos de uma semana das eleições, o Presidente recebe um grupo de revoltosos no Palácio. No dia seguinte, dirige-se a Salazar, a quem expõe por escrito os três «objectivos do movimento».

Francisco e Berta Craveiro Lopes no Palácio de Belém, em Outubro de 1951, rodeados de seis netos

A saber: «demissão do ministro Santos Costa; adiamento das eleições; reconsideração quanto à Chefia do Estado». Craveiro desmente que haja «qualquer ligação com o general Delgado» e elogia os sediciosos, «homens na força da vida, dignos e desinteressados, profundamente chocados - como eu próprio - pelas arbitrariedades, brutalidades e completa ausência de escrúpulos do homem que durante mais de 20 anos chefia o Exército». O alegado golpe partiria da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, e incluiria a leitura de uma proclamação ao país, a partir da Emissora Nacional. Abortou, constata João Craveiro Lopes, «por manifesta falta de apoio operacional». As eleições decorrem a 8 de Junho. Américo Tomás vence mas não convence: a sua vitória sobre Humberto Delgado, o candidato único da oposição, deve-se a uma gigantesca fraude eleitoral. Não admira, pois, que a instabilidade se mantenha. Persiste a eventualidade de um pronunciamento militar. A 12 de Junho, e como assinala Telmo Faria (em Humberto Delgado. As Eleições de 1958), o general «disponibiliza-se a Craveiro Lopes», a quem oferece apoio para um golpe: «Quando V. Ex.ª queira, se encontrarão elementos mais do que suficientes nas Forças Armadas (...) para a V. Ex.ª darem apoio de que necessite.» E a 21 de Junho, reflexo da contestação que transpirou durante toda a campanha eleitoral de Delgado, Craveiro avisa Salazar que «o descontentamento no Exército é cada vez maior». À beira de terminar o mandato, o Presidente não hesita nas palavras: «Achamo-nos nas vésperas de um levantamento militar para impor a saída do coronel Santos Costa do Governo.» A finalizar, sugere que seja «tomada qualquer decisão sobre esse assunto», o que evitaria «acontecimentos muito graves, que tornariam ainda mais difícil o momento que atravessamos». A 5 de Julho, morre Berta Craveiro Lopes, vítima de um acidente vascular cerebral. Descendente de uma família britânica que se instalara em Portugal durante as invasões francesas, Berta casara-se com Francisco Higino em 1918, em Lourenço Marques.

O Presidente e sua mulher, Berta, em Londres (Outubro de 1955). Ao contrário de Salazar, Craveiro foi várias vezes ao estrangeiro

Marcello Caetano viria a traçar-lhe o perfil: «Distinta no porte e nos modos, encantadora no trato, bondosa nos sentimentos, foi sempre a esposa devotada e apagada do oficial que ia ganhando os postos um a um, mudando de guarnição de vez em quando, pronta a acompanhar o marido e a ajudá-lo com o seu trabalho doméstico e o seu espírito de economia.» As últimas semanas do mandato de Craveiro Lopes são extremamente penosas, cruéis mesmo. Por um lado, é um Presidente virtual e sem poder, que se limita a aguardar a posse do sucessor. Por outro, sente-se desrespeitado e, pior ainda, traído por Salazar e pelos seus pares das Forças Armadas. Enfim, chocado com a morte brutal da esposa, é um homem condenado à solidão e a um futuro incerto. Em desespero de causa, acelera a sua cruzada anti-Santos Costa, o coronel e ministro que teima em identificar como fonte de todos os males. Em finais de Julho, a escassas duas semanas da posse de Américo Tomás, Craveiro ameaça renunciar ao cargo. É, sem dúvida, um gesto impetuoso, ditado pela cólera e pelo exaspero, tomado, como explica o filho João, «depois de esgotados todos os outros meios». Uma das últimas cerimónias em que Craveiro participa é o ritual de despedidas do Governo. O então ministro da Justiça, Antunes Varela, relata: «Fomos todos a Belém - todos menos o dr. Salazar, que o terá feito por outra via e noutra oportunidade. Foi uma cerimónia com uma frieza de gelar: todos em fila, a cumprimentar o Presidente, com Caetano à frente, a introduzir cada um dos membros do Executivo. Foi a coisa mais lúgubre em que em alguma vez participei. Foi como se fosse uma cerimónia pública de pêsames...» No princípio de Agosto, a agitação nos meios militares é de tal ordem que Santos Costa se vê obrigado a decretar o estado de prevenção geral. A contestação ao ministro é tamanha que ele tem os dias contados. A posse do novo Presidente é a 9 de Agosto. A 14, o Governo sofre uma profunda remodelação. Dele é excluído Santos Costa, cuja substituição fora insistentemente reclamada por Craveiro Lopes e que sai do Governo ao fim de 22 anos consecutivos. Na sua queda, o coronel arrasta o principal adversário, Marcello Caetano. Salomónico, Salazar faz questão de afastar do palco os líderes visíveis das duas principais correntes que se digladiam no interior do regime. De uma só penada, afasta os principais delfins e consolida ainda mais a sua chefia e o seu poder solitário. Para ministro da Presidência, entra Pedro Teotónio Pereira; e para a Defesa, ingressa o então chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Júlio Botelho Moniz.

Carta de 21/6/58, em que Craveiro avisa Salazar: «Achamo-nos nas vésperas de um levantamento militar»...

Viúvo e ofendido, Craveiro Lopes regressa à vida comum de simples cidadão. Militar orgulhoso, profundamente doído com o regime, dispensa toda e qualquer benesse por parte do poder: recusa a residência e a viatura a que legalmente um ex-Presidente teria direito. Para além do vencimento, aceita apenas os serviços de um ajudante-de-campo - o seu filho João, à época capitão. Instala-se na Praceta D. Rodrigo da Cunha, nas traseiras da Igreja de São João de Brito, enquanto os quatro filhos o presenteiam com um carro: um Ford Anglia preto, que posteriormente trocaria por um Triumph de dois lugares e da mesma cor. Mais tarde, muda-se para a Rua General Sinel de Cordes (hoje Rua Alves Redol), para o prédio com o nº 3. Ocupa o terceiro andar direito, enquanto no lado esquerdo vive o coronel Mário Cunha, que conhecera no Colégio Militar e que foi seguramente o seu maior amigo. Comandante-geral da PSP, Mário Cunha fora uma visita assídua do Palácio, à hora do chá, e um dos poucos informadores e fiéis conselheiros do Presidente. Em 13 de Novembro de 1958, Craveiro é promovido a marechal: o primeiro da história da Força Aérea portuguesa. A proposta não partiu nem de Américo Tomás nem de Salazar, mas do general Botelho Moniz - e é uma das primeiras medidas do novo ministro da Defesa. «O Botelho Moniz convenceu o meu pai a aceitar aquele cargo honorífico, alegando que era uma iniciativa das Forças Armadas e não do Governo e que lhe permitia continuar no activo», esclarece João Craveiro Lopes. Pela mesma altura, trava conhecimento com José Manuel Homem de Mello; ex-deputado à Assembleia Nacional pelo círculo de Aveiro e filho do conde de Águeda, é um dissidente do salazarismo.

... a 8, o general participara nas eleições de Delgado

A confiança pessoal e uma notória empatia política fazem do advogado (como o próprio afirma) «uma espécie de assessor político» ou conselheiro do marechal. Nos anos subsequentes, passam a avistar-se amiúde, incluindo um almoço semanal em casa do ex-Presidente. Assim que Craveiro deixa o Palácio de Belém, a PIDE e a Legião Portuguesa montam-lhe um sistema de vigilância quase permanente. A explicação posterior será dada por Franco Nogueira: «Regressado à vida privada, Craveiro Lopes não fica inactivo (...) Sente-se agora livre de exprimir as suas opiniões, formular as suas críticas, provocar encontros, mobilizar vontades, acaso esboçar um princípio de organização: a coberto da sua imunidade de antigo Presidente da República, conduz uma acção quase conspiratória.» Desde Março de 1940 que a PIDE tinha um processo, na sede (nº 2170 SR), aberto em nome de Francisco Higino Craveiro Lopes, era ele tenente-coronel em Tancos. Era um processo de rotina, interrompido durante a presidência mas retomado logo após a saída de Belém. Em Novembro de 1958 é aberto outro processo, na delegação de Coimbra (nº 17.583), onde é registado o rumor de que Craveiro «está ligado com os generais Botelho Moniz e Humberto Delgado e outros oficiais superiores na preparação, para breve, dum golpe de estado, formando a seguir uma Junta Militar». Essa informação insere a visita em curso a Angola e a Moçambique no mesmo projecto golpista - um temor partilhado pela Legião, que anota o facto na ficha aberta em nome do seu ex-comandante-geral. A viagem às duas grandes colónias africanas arrasta-se por alguns meses; apesar de ser de carácter particular, tem uma grande ressonância política. Sobretudo em Moçambique, onde viveu e combateu e onde recebe o bastão de marechal, fruto de uma subscrição em que participam as chamadas forças vivas do território. É uma bela peça, forrada a veludo azul e com incrustações de ouro e prata, entregue em Lourenço Marques; é ainda aqui que recebe as estrelas de ouro do marechalato. A censura, porém, impede os jornais da metrópole de relatar os pormenores - um «símbolo dos tempos que estamos vivendo», queixa-se o marechal em carta a Homem de Mello, escrita da capital moçambicana.

Manuel Craveiro Lopes, o filho mais novo e oficial da Força Aérea como o pai, exibe a foto oficial do Presidente

A visita a África coincide com uma inusitada agitação política e militar em Portugal, rescaldo da contestação sem precedentes à ditadura desencadeada pelo fenómeno Delgado. Pelo sim pelo não, no regresso do continente negro, o ex-Presidente é especialmente enquadrado. No aeroporto da Portela, onde chega no dia 15 de Fevereiro de 1959, aguardam-no o ministro da Presidência, Pedro Teotónio Pereira, o chefe de Estado-Maior da Força Aérea, general Costa Macedo, e o director da PIDE, capitão Neves Graça. Nessa noite e nos dias imediatos, a casa do marechal, na D. Rodrigo da Cunha, é objecto de especial vigilância por agentes da polícia, que fazem chegar à sede os seus relatórios. Este procedimento manter-se-á nos anos seguintes. «À porta da residência estava sempre um gajo à paisana. Era um pide, a quem ele não ligava nenhuma», refere Vicente da Silva. O controlo dos passos e contactos do marechal alarga-se ao correio. No Verão de 1959, pelo menos uma carta e um postal não chegam ao destinatário, tendo ficado retidos num dos três processos abertos pela PIDE. Também o telefone é colocado sob escuta. «Percebia-se perfeitamente. Era uma vergonha. Às vezes, até se metiam nas conversas», regista Vicente da Silva. Manuel Craveiro Lopes, o filho mais novo, recorda-se de um desabafo irado do pai ao ouvir o familiar «clic» no auscultador: «Lá estão estes canalhas a escutar!» Texto de JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA, com VALENTINA MARCELINO

Chantagem ao Presidente

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