«A missão da Misericórdia é o jogo»

21-09-1999
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Vejamos como poderia explicar aquele caso a provedora da Misericórdia, Maria do Carmo Romão, seguindo as pisadas da sua subordinada, enf. Belo Projecto.

EXPRESSO - Afinal, qual é a missão da Misericórdia?

MARIA DO CARMO ROMÃO - A missão da Misericórdia é, como bem saberá, o jogo. Primordialmente, temos de organizar o jogo em Portugal: totobola, totoloto, lotarias, raspadinhas, etc. Enquanto o jogo correr bem, não haverá sobressaltos públicos. Imagine o que seriam as reportagens da SIC, e imagine as consequências que não teriam, se houvesse um verdadeiro escândalo nos jogos!...

EXP. - Seria muito pior do que com o caso das crianças com sida?!

M.C.R. - Não tenha a menor dúvida! Nesse caso, caía eu, mais depressa do que o eng. Torres Campos, e até poderia cair o ministro da tutela. Mas também nos preocupamos com as crianças da sida. E a prova de que nos preocupamos, como frisou a sra. enf. Belo Projecto, é que temos um belo projecto para elas, praticamente com um centro hospitalar inteiramente a elas dedicado: aí temos o espaço onde vivem, e o pessoal encarregado desse espaço, com os seus ordenados, que ninguém regateia.

EXP. - No fundo, as crianças proporcionam a criação de alguns postos de trabalho na Misericórdia...

M.C.R. - Ora aí está: em reconhecimento da atenção que nós lhes damos, elas próprias acabam por nos fazer o favor de justificar a manutenção de um serviço em funcionamento.

EXP. - E não acha que seria melhor, como se faz noutros sítios, integrar as crianças numa vida normal, num dos vossos centros de acolhimento?

M.C.R. - Sim?! E o que é que fazíamos aos serviços que lhes temos dedicado? Não acha que isso iria criar um sarilho? Por outro lado, a Antiguidade trouxe-nos muitos ensinamentos. E também não podemos deitar pela janela fora os ensinamentos medievais. Se antes se segregavam as pessoas com peste, porque não segregar hoje as que têm sida, que é afinal a peste dos nossos tempos? Penso ser esta a lógica dos meus serviços.

EXP. - Mas nem sequer poderem aceder aos baloiços, para não se misturarem com os filhos do pessoal da casa...

M.C.R. - Sim, também me pareceu estranho! Mas fui informada de que os baloiços se destinam ao pessoal da casa. E de que a sala hospitalar filmada pela SIC, essa sim, se destina às crianças da sida. Assim como os filhos do pessoal da casa não ocupam a tal sala hospitalar, por natural reciprocidade, as crianças da sida não devem ocupar os baloiços. É a lógica dos meus serviços.

EXP. - Sobre a hipótese de acolher as crianças com sida num centro de acolhimento normal da Misericórdia...

M.C.R. - A lógica dos serviços, em relação a essa questão, é a mesma: se as crianças que estão nos nossos centros normais de acolhimento não ocupam a sala hospitalar das crianças da sida, por natural reciprocidade, também as crianças da sida não devem ocupar os nossos centros normais de acolhimento. E não falámos já do sarilho que seria acabar com o centro hospitalar?

EXP. - E por que é que o vosso pessoal não mantém um contacto humano mais estreito com as crianças da sida? Porque é que não conversam com elas, porque é que não as deixam ter luzes acesas, porque não as deixam sair das grades, porque não as passeiam? Afinal, são apenas três crianças aí abandonadas!

M.C.R. - Penso que, nesse aspecto, a lógica dos meus serviços é essencialmente técnica: não se pode deixar afectar a competência técnica e profissional com que lhes dispensam os cuidados médicos por emoções indesejáveis. Afinal, como disse a sra. enf. Belo Projecto, as crianças enquadradas neste belo projecto são doentes.

EXP. - Mas os doentes de sida, na fase em que a doença está controlada, como o caso destas crianças, não devem ser integrados numa vida normal?

M.C.R. - Precisamente! Estão integradas na vida normal do centro hospital que lhes destinamos. A lógica dos meus serviços diz que, qualquer alteração, iria transtornar a vida normal do pessoal, e dos filhos do pessoal, do centro hospitalar.

EXP. - Mas o centro hospitalar destina-se às crianças com sida ou ao pessoal?

M.C.R. - A todos. Mas a lógica dos meus serviços diz que as crianças com sida são mais passageiras e efémeras do que o nosso pessoal. Nesse aspecto, é lógico entender que o centro hospitalar se destine mais ao nosso pessoal.

PEDRO BRAGANÇA

Vejamos como poderia explicar aquele caso a provedora da Misericórdia, Maria do Carmo Romão, seguindo as pisadas da sua subordinada, enf. Belo Projecto.

EXPRESSO - Afinal, qual é a missão da Misericórdia?

MARIA DO CARMO ROMÃO - A missão da Misericórdia é, como bem saberá, o jogo. Primordialmente, temos de organizar o jogo em Portugal: totobola, totoloto, lotarias, raspadinhas, etc. Enquanto o jogo correr bem, não haverá sobressaltos públicos. Imagine o que seriam as reportagens da SIC, e imagine as consequências que não teriam, se houvesse um verdadeiro escândalo nos jogos!...

EXP. - Seria muito pior do que com o caso das crianças com sida?!

M.C.R. - Não tenha a menor dúvida! Nesse caso, caía eu, mais depressa do que o eng. Torres Campos, e até poderia cair o ministro da tutela. Mas também nos preocupamos com as crianças da sida. E a prova de que nos preocupamos, como frisou a sra. enf. Belo Projecto, é que temos um belo projecto para elas, praticamente com um centro hospitalar inteiramente a elas dedicado: aí temos o espaço onde vivem, e o pessoal encarregado desse espaço, com os seus ordenados, que ninguém regateia.

EXP. - No fundo, as crianças proporcionam a criação de alguns postos de trabalho na Misericórdia...

M.C.R. - Ora aí está: em reconhecimento da atenção que nós lhes damos, elas próprias acabam por nos fazer o favor de justificar a manutenção de um serviço em funcionamento.

EXP. - E não acha que seria melhor, como se faz noutros sítios, integrar as crianças numa vida normal, num dos vossos centros de acolhimento?

M.C.R. - Sim?! E o que é que fazíamos aos serviços que lhes temos dedicado? Não acha que isso iria criar um sarilho? Por outro lado, a Antiguidade trouxe-nos muitos ensinamentos. E também não podemos deitar pela janela fora os ensinamentos medievais. Se antes se segregavam as pessoas com peste, porque não segregar hoje as que têm sida, que é afinal a peste dos nossos tempos? Penso ser esta a lógica dos meus serviços.

EXP. - Mas nem sequer poderem aceder aos baloiços, para não se misturarem com os filhos do pessoal da casa...

M.C.R. - Sim, também me pareceu estranho! Mas fui informada de que os baloiços se destinam ao pessoal da casa. E de que a sala hospitalar filmada pela SIC, essa sim, se destina às crianças da sida. Assim como os filhos do pessoal da casa não ocupam a tal sala hospitalar, por natural reciprocidade, as crianças da sida não devem ocupar os baloiços. É a lógica dos meus serviços.

EXP. - Sobre a hipótese de acolher as crianças com sida num centro de acolhimento normal da Misericórdia...

M.C.R. - A lógica dos serviços, em relação a essa questão, é a mesma: se as crianças que estão nos nossos centros normais de acolhimento não ocupam a sala hospitalar das crianças da sida, por natural reciprocidade, também as crianças da sida não devem ocupar os nossos centros normais de acolhimento. E não falámos já do sarilho que seria acabar com o centro hospitalar?

EXP. - E por que é que o vosso pessoal não mantém um contacto humano mais estreito com as crianças da sida? Porque é que não conversam com elas, porque é que não as deixam ter luzes acesas, porque não as deixam sair das grades, porque não as passeiam? Afinal, são apenas três crianças aí abandonadas!

M.C.R. - Penso que, nesse aspecto, a lógica dos meus serviços é essencialmente técnica: não se pode deixar afectar a competência técnica e profissional com que lhes dispensam os cuidados médicos por emoções indesejáveis. Afinal, como disse a sra. enf. Belo Projecto, as crianças enquadradas neste belo projecto são doentes.

EXP. - Mas os doentes de sida, na fase em que a doença está controlada, como o caso destas crianças, não devem ser integrados numa vida normal?

M.C.R. - Precisamente! Estão integradas na vida normal do centro hospital que lhes destinamos. A lógica dos meus serviços diz que, qualquer alteração, iria transtornar a vida normal do pessoal, e dos filhos do pessoal, do centro hospitalar.

EXP. - Mas o centro hospitalar destina-se às crianças com sida ou ao pessoal?

M.C.R. - A todos. Mas a lógica dos meus serviços diz que as crianças com sida são mais passageiras e efémeras do que o nosso pessoal. Nesse aspecto, é lógico entender que o centro hospitalar se destine mais ao nosso pessoal.

PEDRO BRAGANÇA

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