Leonor Coutinho: «Não é um crime de lesa-Estado emprestar o carro...»
Um especialista em Direito Administrativo contactado pelo EXPRESSO acrescenta ainda que o caso pode traduzir uma situação de «desvio de poder», tanto mais que o carro atribuído a Leonor Coutinho nem sequer pertence ao parque do Ministério do Equipamento (do qual depende a SEHC).
A notícia foi dada na semana passada pelo semanário «Tal & Qual», que publicava fotografias de um BMW 520, atribuído a Leonor Coutinho, a ser conduzido por um amigo pessoal da secretária de Estado nas suas deslocações a bares e restaurantes. O uso do automóvel chegou mesmo a ser feito durante uma ausência de Leonor Coutinho em missão de serviço ao estrangeiro.
A tese do uso pessoal
Na sequência da notícia, o Gabinete da secretária de Estado veio a público explicar que o carro em causa tinha sido atribuído para «uso pessoal» da responsável governamental, acrescentando ainda o assessor de Imprensa não ser «um crime de lesa Estado emprestar um carro a um amigo». Mais tarde, e em resposta a um pedido de esclarecimentos por parte do EXPRESSO, o Gabinete do Ministro do Planeamento adiantava ainda tratar-se de uma viatura «de uso permanente» e registada «sob o nome do Instituto de Comunicações de Portugal- ICP», organismo que paga o seguro da viatura.
«Houve sempre a preocupação da secretária de Estado em responder ao enquadramento legal», acrescenta a mesma fonte, explicando que de acordo com a regulamentação em vigor «cabe aos detentores dos veículos decidir do seu uso por terceiros a título excepcional».
A interpretação dos acontecimentos dada pelos assessores do Ministério do Equipamento não é, porém, coincidente com a opinião de outros gabinetes governamentais. Segundo fonte do Ministério das Finanças, «os carros do Estado não são para uso pessoal ou para fins particulares». E embora a lei refira explicitamente a existência de veículos oficiais «de uso pessoal», o mesmo diploma esclarece que o destino normal destes carros é a «utilização no exercício, por causa ou em proveito das funções dos seus detentores».
O caso de Leonor Coutinho ultrapassaria claramente estes princípios, motivo pelo qual a Procuradoria-Geral da República decidiu abrir um inquérito.
Desvio de poder
Além da questão do uso do carro, dois outros problemas jurídicos se levantam nesta situação. Um especialista em Direito Administrativo consultado pelo EXPRESSO considera que «tanto a propriedade do automóvel como a sua utilização por uma terceira pessoa» levantam «dúvidas legais».
Quanto ao primeiro ponto, o certo é que o veículo pertence a um instituto autónomo perante o qual a secretaria de Estado tem apenas «poderes de superintendência». Normalmente, acrescenta a mesma fonte, «estes são poderes de nomeação e demissão de chefias, tal como a definição de directivas genéricas de actuação por parte da entidade governativa». Nenhum dos poderes do Ministério sobre o ICP enquadraria a cedência de um carro para uso pessoal da secretária de Estado, que já dispõe oficialmente de um automóvel do Estado.
A questão complica-se ainda quando o uso do carro é feito por uma terceira pessoa, sem qualquer vínculo ao Estado ou a desempenhar funções públicas. A lei é bem clara neste aspecto: «Os veículos do Estado só poderão ser conduzidos pelo funcionário ou agente a que estejam distribuídos, ou que seja autorizado para o efeito,»
O Gabinete de Leonor Coutinho garante que a pessoa dispunha de uma autorização da secretária de Estado para conduzir o carro, mas o documento não foi facultado ao EXPRESSO com o argumento de que irá ser apenso ao processo de investigação.
O administrativista consultado vai, porém, mais longe. Na sua opinião, a cedência de um carro oficial só pode ser feita a título absolutamente excepcional. «São casos de comprovada necessidade e urgência e devem ser justificados pela pessoa a quem foi atribuída a viatura», diz, acrescentando que «o espírito da lei é claro ao definir que o uso dos carros do Estado é para interesse público e não privado».
A lei em vigor data de 1978, altura em que Mário Soares era primeiro-ministro e Medina Carreira era responsável pela pasta das Finanças. Segundo o antigo ministro, «naquele tempo não havia carros para uso pessoal» e a lei que ele assinou «sempre foi entendida com um sentido muito restritivo».
Rosa Pedroso Lima
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Leonor Coutinho: «Não é um crime de lesa-Estado emprestar o carro...»
Um especialista em Direito Administrativo contactado pelo EXPRESSO acrescenta ainda que o caso pode traduzir uma situação de «desvio de poder», tanto mais que o carro atribuído a Leonor Coutinho nem sequer pertence ao parque do Ministério do Equipamento (do qual depende a SEHC).
A notícia foi dada na semana passada pelo semanário «Tal & Qual», que publicava fotografias de um BMW 520, atribuído a Leonor Coutinho, a ser conduzido por um amigo pessoal da secretária de Estado nas suas deslocações a bares e restaurantes. O uso do automóvel chegou mesmo a ser feito durante uma ausência de Leonor Coutinho em missão de serviço ao estrangeiro.
A tese do uso pessoal
Na sequência da notícia, o Gabinete da secretária de Estado veio a público explicar que o carro em causa tinha sido atribuído para «uso pessoal» da responsável governamental, acrescentando ainda o assessor de Imprensa não ser «um crime de lesa Estado emprestar um carro a um amigo». Mais tarde, e em resposta a um pedido de esclarecimentos por parte do EXPRESSO, o Gabinete do Ministro do Planeamento adiantava ainda tratar-se de uma viatura «de uso permanente» e registada «sob o nome do Instituto de Comunicações de Portugal- ICP», organismo que paga o seguro da viatura.
«Houve sempre a preocupação da secretária de Estado em responder ao enquadramento legal», acrescenta a mesma fonte, explicando que de acordo com a regulamentação em vigor «cabe aos detentores dos veículos decidir do seu uso por terceiros a título excepcional».
A interpretação dos acontecimentos dada pelos assessores do Ministério do Equipamento não é, porém, coincidente com a opinião de outros gabinetes governamentais. Segundo fonte do Ministério das Finanças, «os carros do Estado não são para uso pessoal ou para fins particulares». E embora a lei refira explicitamente a existência de veículos oficiais «de uso pessoal», o mesmo diploma esclarece que o destino normal destes carros é a «utilização no exercício, por causa ou em proveito das funções dos seus detentores».
O caso de Leonor Coutinho ultrapassaria claramente estes princípios, motivo pelo qual a Procuradoria-Geral da República decidiu abrir um inquérito.
Desvio de poder
Além da questão do uso do carro, dois outros problemas jurídicos se levantam nesta situação. Um especialista em Direito Administrativo consultado pelo EXPRESSO considera que «tanto a propriedade do automóvel como a sua utilização por uma terceira pessoa» levantam «dúvidas legais».
Quanto ao primeiro ponto, o certo é que o veículo pertence a um instituto autónomo perante o qual a secretaria de Estado tem apenas «poderes de superintendência». Normalmente, acrescenta a mesma fonte, «estes são poderes de nomeação e demissão de chefias, tal como a definição de directivas genéricas de actuação por parte da entidade governativa». Nenhum dos poderes do Ministério sobre o ICP enquadraria a cedência de um carro para uso pessoal da secretária de Estado, que já dispõe oficialmente de um automóvel do Estado.
A questão complica-se ainda quando o uso do carro é feito por uma terceira pessoa, sem qualquer vínculo ao Estado ou a desempenhar funções públicas. A lei é bem clara neste aspecto: «Os veículos do Estado só poderão ser conduzidos pelo funcionário ou agente a que estejam distribuídos, ou que seja autorizado para o efeito,»
O Gabinete de Leonor Coutinho garante que a pessoa dispunha de uma autorização da secretária de Estado para conduzir o carro, mas o documento não foi facultado ao EXPRESSO com o argumento de que irá ser apenso ao processo de investigação.
O administrativista consultado vai, porém, mais longe. Na sua opinião, a cedência de um carro oficial só pode ser feita a título absolutamente excepcional. «São casos de comprovada necessidade e urgência e devem ser justificados pela pessoa a quem foi atribuída a viatura», diz, acrescentando que «o espírito da lei é claro ao definir que o uso dos carros do Estado é para interesse público e não privado».
A lei em vigor data de 1978, altura em que Mário Soares era primeiro-ministro e Medina Carreira era responsável pela pasta das Finanças. Segundo o antigo ministro, «naquele tempo não havia carros para uso pessoal» e a lei que ele assinou «sempre foi entendida com um sentido muito restritivo».
Rosa Pedroso Lima