Crítica de TV

11-11-1997
marcar artigo

TELEVISÃO

Ir ou não ir em cantigas

Por Correia da Fonseca

D esta vez, a representação portuguesa não trouxe um único ponto do Eurofestival, desaire total que aliás é injusto para a canção, bem melhor que outras que em anos anteriores de lá voltaram com um punhadinho de pontos que, embora magro, dava para ajudar a resignação. De qualquer modo, o caso não é dramático, e é-o tanto menos quanto desde há muito se sabe que a ida de canções portuguesas aos eurofestivais só serve, se é que serve, para ensinar a alguns que a Espanha é a Espanha e Portugal é um outro pais. Quanto a pontos, temos andado muitas vezes amparados na boa vontade de uns países que retribuem os pontos que lhes damos, o que aliás é um bonito caso de solidariedade na pobreza. Pouco mais. Nem admira que seja assim: nunca fomos uma grande ou sequer média potência na área do cançonetismo comercial, nem temos condições para isso. Já mandámos ao festival, é certo, canções muito bonitas; mas aquilo, muito antes de ser um confronto de méritos, é a montra de um mercado transnacional. O que é como quem diz que a música é outra.

Contudo, em matéria de canções temos um património invejável mesmo à escala internacional, mas não de canções estarolas ou apenas convencionais que correspondam ao modelo em trânsito nestes festivais. Por acaso, falou-se delas na RTP 1, numa destas madrugadas mas não de 25 do mês passado, como, madrugada por madrugada, seria mais adequado. São as canções que tiveram, e é claro que continuam a ter, vínculos directos com luta, com coragem, com libertação. Foi um programa um pouco inesperado que trouxe o título de «A canção é uma arma». Não direi que foi um programa notável como construção, como consecução, mas parece-me justo dizer que foi um programa quase precioso, talvez porque raro. Na verdade, tornou-se praticamente obrigatório menosprezar as canções de luta que ajudaram a preparar Abril ou que depois de Abril deram som à liberdade: contra elas foi decretado um global juízo condenatório por não terem qualidade. É uma sentença injusta e de má-fé: para chegar a ela é preciso excluir José Afonso e Adriano, José Mário e Manuel Freire, Ary e Manuel Alegre, José Niza e Tordo. Quando, no decurso do programa, Ruben de Carvalho salientou que o cancioneiro de luta contou com melodistas de grande qualidade não esteve a falar da revolução, mas de música. Quando se fala de Alegre e de Gedeão não se fala de palavras de ordem, mas de poesia.

Falar contra a maré

Apesar disto, porém, a emissão foi anunciada num grande jornal diário com um pequeno artigo portador do título escarninho e um pouco pejorativo de «Quando a Revolução ia em cantigas». Pareceu-me haver ali um leve toque de infâmia, sem dúvida involuntário, nascido apenas do conúbio entre um trocadilho fácil e preconceitos velhos, mas é claro que não me surpreendi quando, dois dias depois, deparei no mesmo lugar com um artigo do mesmo autor atestando a má qualidade do programa. Estava ele, o autor, por sinal muito mal impressionado com a circunstância de os participantes estarem muito bem vestidos, o que citou por duas vezes em pouco espaço e claramente veio provar não estarmos perante a opinião de um comunista. Foi Miguel Sousa Tavares que, um dia, o ensinou ao país, e passo a citar para que não se perca a lição: «Um PC tem mais de 50 anos, veste-se como se estivesse em conflito pessoal com as roupas, tem um ódio entranhado às pessoas ( ... )» Está visto: nenhum daqueles bem-vestidinhos que estiveram em «A canção é uma arma» é comunista. E ainda bem para Fernando Neves e Viriato Teles, autores do programa, porque assim, nos tempos que correm, sempre é mais seguro.

Sempre é mais seguro porque ali, sob o olhar de Salgueiro Maia por alguns minutos regressado ao Carmo onde ganhou um lugar na História e arruinou a carreira, a canção de luta que precedeu e continuou Abril foi louvada em vez de arrasada, o que só por si é extremamente perigoso. Chegou-se ao ponto de ouvirmos Carlos Alberto Moniz fazer, com impressionante tranquilidade, o elogio de Vasco Gonçalves, o mais caluniado dos militares portugueses, e afimar, sorridente, que ainda hoje teria muito gosto em voltar a cantar o hino da lntersindical e até o «Avante, camarada!».Dir-se-a que coisas destas não têm nada com o mérito ou o demérito de um programa. Mas olhem que têm, olhem que têm: os sinais de coragem de um homem que fala contra a maré têm uma carga estética a que, por mim, não posso ser indiferente mesmo que queira. E acontece que não quero.

As canções e as «cantigas»

Ao longo das quase duas horas de «A canção é uma arma», horas decerto que com auditório escasso porque a RTP, usando de cautela, programou a emissão para aquele horário naturalmente pouco frequentado, aconteceu no programa o bom e o menos bom, poucas vezes o excelente, nunca o sublime que, contudo, com outros cuidados e outros meios, poderia estar «ao alcance da mão», para usar as palavras que foram título de uma outra canção muito bela, afinal também de luta, que Nuno Gomes dos Santos escreveu, Mas não me lembro de nenhum momento que tenha sido para, de todo em todo, deitar fora, mesmo quando os depoimentos recolhidos vieram de quem menos eu podia esperar uma contribuição muito interessante, Em contrapartida, apetece anotar momento quase de pormenor mas que, por uma razão ou por outra, não merecem o esquecimento imediato. A maneira diferente, mas notável como Miguel Angelo cantou «Os vampiros». A informação, prestada por José Manuel Nunes, de que a música dos clássicos e agora indiscutíveis Beatles não passava na Rádio Renascença de antes de Abril, o que talvez faça entender aos jovens de hoje até onde ia a censura fascista. A injustiça de, quando se falou da hegemonia do som anglo-saxónico na Rádio actual, não ter sido aberta uma explícita excepção para o trabalho da Antena I da RDP, que faz prova quotidiana de que a música portuguesa de qualidade existe também em quantidade. A carga simbólica trazida pelo coral de Grândola.

Não só por estes instantes aqui apressadamente arrolados, mas também por eles, «A cantiga é uma arma» foi um programa importante, ainda que ferido por um simplismo que podemos, sem dúvida, lamentar, mas não sem esquecer que mesmo tal como foi, quase reduzido ao mínimo, o programa há-de ter caído mal em muitos paladares delicados e talvez não tenha reunido muitos apoios entusiásticos. A questão é que, bem ao contrário do que afirmava o tal título de jornal, a Revolução não ia em cantigas: foi anunciada por elas, viu reforçada por elas a felicidade da libertação que, como é natural, só não agradou aos carcereiros e seus próximos. Mais tarde, é certo, a contra-revolução utilizou outras cantigas, mas aqui já a palavra não deve ser entendida em sentido liberal: essas são as «cantigas» que continuam, muito na moda, a circular, subjacentes, na generalidade dos grandes media.

Seria excessivo e injusto, acentue-se, sustentar que esse cantiguismo mistificador é uma segregação dos descendentes directos dos antigos carcereiros, senão deles próprios, mas não podemos ser tão tontos que não entendamos que subsiste por aí fora um ódio à Revolução que se estende às suas canções. Como disse o Presidente da República: sejamos tolerantes mas não sejamos parvos.

TELEVISÃO

Ir ou não ir em cantigas

Por Correia da Fonseca

D esta vez, a representação portuguesa não trouxe um único ponto do Eurofestival, desaire total que aliás é injusto para a canção, bem melhor que outras que em anos anteriores de lá voltaram com um punhadinho de pontos que, embora magro, dava para ajudar a resignação. De qualquer modo, o caso não é dramático, e é-o tanto menos quanto desde há muito se sabe que a ida de canções portuguesas aos eurofestivais só serve, se é que serve, para ensinar a alguns que a Espanha é a Espanha e Portugal é um outro pais. Quanto a pontos, temos andado muitas vezes amparados na boa vontade de uns países que retribuem os pontos que lhes damos, o que aliás é um bonito caso de solidariedade na pobreza. Pouco mais. Nem admira que seja assim: nunca fomos uma grande ou sequer média potência na área do cançonetismo comercial, nem temos condições para isso. Já mandámos ao festival, é certo, canções muito bonitas; mas aquilo, muito antes de ser um confronto de méritos, é a montra de um mercado transnacional. O que é como quem diz que a música é outra.

Contudo, em matéria de canções temos um património invejável mesmo à escala internacional, mas não de canções estarolas ou apenas convencionais que correspondam ao modelo em trânsito nestes festivais. Por acaso, falou-se delas na RTP 1, numa destas madrugadas mas não de 25 do mês passado, como, madrugada por madrugada, seria mais adequado. São as canções que tiveram, e é claro que continuam a ter, vínculos directos com luta, com coragem, com libertação. Foi um programa um pouco inesperado que trouxe o título de «A canção é uma arma». Não direi que foi um programa notável como construção, como consecução, mas parece-me justo dizer que foi um programa quase precioso, talvez porque raro. Na verdade, tornou-se praticamente obrigatório menosprezar as canções de luta que ajudaram a preparar Abril ou que depois de Abril deram som à liberdade: contra elas foi decretado um global juízo condenatório por não terem qualidade. É uma sentença injusta e de má-fé: para chegar a ela é preciso excluir José Afonso e Adriano, José Mário e Manuel Freire, Ary e Manuel Alegre, José Niza e Tordo. Quando, no decurso do programa, Ruben de Carvalho salientou que o cancioneiro de luta contou com melodistas de grande qualidade não esteve a falar da revolução, mas de música. Quando se fala de Alegre e de Gedeão não se fala de palavras de ordem, mas de poesia.

Falar contra a maré

Apesar disto, porém, a emissão foi anunciada num grande jornal diário com um pequeno artigo portador do título escarninho e um pouco pejorativo de «Quando a Revolução ia em cantigas». Pareceu-me haver ali um leve toque de infâmia, sem dúvida involuntário, nascido apenas do conúbio entre um trocadilho fácil e preconceitos velhos, mas é claro que não me surpreendi quando, dois dias depois, deparei no mesmo lugar com um artigo do mesmo autor atestando a má qualidade do programa. Estava ele, o autor, por sinal muito mal impressionado com a circunstância de os participantes estarem muito bem vestidos, o que citou por duas vezes em pouco espaço e claramente veio provar não estarmos perante a opinião de um comunista. Foi Miguel Sousa Tavares que, um dia, o ensinou ao país, e passo a citar para que não se perca a lição: «Um PC tem mais de 50 anos, veste-se como se estivesse em conflito pessoal com as roupas, tem um ódio entranhado às pessoas ( ... )» Está visto: nenhum daqueles bem-vestidinhos que estiveram em «A canção é uma arma» é comunista. E ainda bem para Fernando Neves e Viriato Teles, autores do programa, porque assim, nos tempos que correm, sempre é mais seguro.

Sempre é mais seguro porque ali, sob o olhar de Salgueiro Maia por alguns minutos regressado ao Carmo onde ganhou um lugar na História e arruinou a carreira, a canção de luta que precedeu e continuou Abril foi louvada em vez de arrasada, o que só por si é extremamente perigoso. Chegou-se ao ponto de ouvirmos Carlos Alberto Moniz fazer, com impressionante tranquilidade, o elogio de Vasco Gonçalves, o mais caluniado dos militares portugueses, e afimar, sorridente, que ainda hoje teria muito gosto em voltar a cantar o hino da lntersindical e até o «Avante, camarada!».Dir-se-a que coisas destas não têm nada com o mérito ou o demérito de um programa. Mas olhem que têm, olhem que têm: os sinais de coragem de um homem que fala contra a maré têm uma carga estética a que, por mim, não posso ser indiferente mesmo que queira. E acontece que não quero.

As canções e as «cantigas»

Ao longo das quase duas horas de «A canção é uma arma», horas decerto que com auditório escasso porque a RTP, usando de cautela, programou a emissão para aquele horário naturalmente pouco frequentado, aconteceu no programa o bom e o menos bom, poucas vezes o excelente, nunca o sublime que, contudo, com outros cuidados e outros meios, poderia estar «ao alcance da mão», para usar as palavras que foram título de uma outra canção muito bela, afinal também de luta, que Nuno Gomes dos Santos escreveu, Mas não me lembro de nenhum momento que tenha sido para, de todo em todo, deitar fora, mesmo quando os depoimentos recolhidos vieram de quem menos eu podia esperar uma contribuição muito interessante, Em contrapartida, apetece anotar momento quase de pormenor mas que, por uma razão ou por outra, não merecem o esquecimento imediato. A maneira diferente, mas notável como Miguel Angelo cantou «Os vampiros». A informação, prestada por José Manuel Nunes, de que a música dos clássicos e agora indiscutíveis Beatles não passava na Rádio Renascença de antes de Abril, o que talvez faça entender aos jovens de hoje até onde ia a censura fascista. A injustiça de, quando se falou da hegemonia do som anglo-saxónico na Rádio actual, não ter sido aberta uma explícita excepção para o trabalho da Antena I da RDP, que faz prova quotidiana de que a música portuguesa de qualidade existe também em quantidade. A carga simbólica trazida pelo coral de Grândola.

Não só por estes instantes aqui apressadamente arrolados, mas também por eles, «A cantiga é uma arma» foi um programa importante, ainda que ferido por um simplismo que podemos, sem dúvida, lamentar, mas não sem esquecer que mesmo tal como foi, quase reduzido ao mínimo, o programa há-de ter caído mal em muitos paladares delicados e talvez não tenha reunido muitos apoios entusiásticos. A questão é que, bem ao contrário do que afirmava o tal título de jornal, a Revolução não ia em cantigas: foi anunciada por elas, viu reforçada por elas a felicidade da libertação que, como é natural, só não agradou aos carcereiros e seus próximos. Mais tarde, é certo, a contra-revolução utilizou outras cantigas, mas aqui já a palavra não deve ser entendida em sentido liberal: essas são as «cantigas» que continuam, muito na moda, a circular, subjacentes, na generalidade dos grandes media.

Seria excessivo e injusto, acentue-se, sustentar que esse cantiguismo mistificador é uma segregação dos descendentes directos dos antigos carcereiros, senão deles próprios, mas não podemos ser tão tontos que não entendamos que subsiste por aí fora um ódio à Revolução que se estende às suas canções. Como disse o Presidente da República: sejamos tolerantes mas não sejamos parvos.

marcar artigo