Todo o tempo é de poesia

09-09-1999
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Todo o tempo é de poesia

Reedição digital de um momento fundamental da música portuguesa anterior ao 25 de Abril

FALA DO HOMEM NASCIDO

António Gedeão José Niza Ed. original Orfeu, 1972; reed. em CD, Movieplay, 1998 FOI em «Zau Évua (Norte de Angola) Abril-Maio de 1970» que José Niza, alferes-médico do exército português a braços com «a angústia, o estar aqui, a viola, as noites, os estilhaços de um povo, o torniquete equatorial, a medicina artesanal, o resto» recebeu as Poesias Completas de António Gedeão, que lhe haviam sido enviadas de Lisboa pelo seu amigo Eduardo Cambezes, e constatou que «não eram poemas isolados, mas uma história, o que estava ali escrito. E a história, e a poesia, eram demasiado belas para que a música as estragasse». Tudo ganhou de súbito um outro sentido, garantia José Niza no texto que acompanhou a edição original deste disco, uma obra que é um momento fundamental da música portuguesa anterior ao 25 de Abril. A poesia de Gedeão, dominada por um sentido de ritmo que se julgaria insuspeito na identidade alternativa do autor, a do professor de Física Rómulo de Carvalho, agitava a Metrópole desde 1969, quando Manuel Freire desceu ao Teatro Villaret para interpretar a sua versão musicada de «Pedra Filosofal», um hoje célebre texto do poeta.

Em Angola, passado o choque inicial, Niza encontrou tempo para tanger a viola, descobrindo as sequências melódicas escondidas entre aquelas frases cheias de sentido: «Não há ventos que não prestem/ nem marés que não convenham,/ nem forças que me molestem,/ correntes que me detenham./ Quero eu e a Natureza,/ que a Natureza sou eu,/ e as forças da Natureza/ nunca ninguém as venceu./ Com licença! Com licença!/ Que a barca se faz ao mar./ Não há poder que me vença./ Mesmo morto hei-de passar.» Regressado à Metrópole, Niza encontrou um meio social profundamente trespassado pela importância do que era comunicado através das canções, graças à tácita cumplicidade (e gosto) de diversos locutores e estações radiofónicas - nessa época, era ainda a rádio quem garantia a animação do meio musical e discográfico. Para além disso, 25 anos depois, no texto da reedição em CD, José Niza recorda outros pormenores cheios de interesse: «Quando este disco foi gravado, em 1972, vivia-se uma fase de grande agitação criadora e criativa na música portuguesa, em especial na editora Arnaldo Trindade Lda.-Discos Orfeu, para onde gravavam, na altura, as melhores vozes portuguesas. Um ano antes, eu tinha composto um disco, Gente de Aqui e de Agora, para o Adriano Correia de Oliveira. Meses antes tinha ganho, com o José Calvário e o Carlos Mendes, o Festival RTP da canção com A Festa da Vida.» A ocasião era propícia: José Calvário concebeu os arranjos orquestrais (ou a «encenação musical» que a capa refere), seleccionaram-se as vozes de Tonicha, Carlos Mendes, Duarte Mendes e Samuel, gravaram-se as vozes em Lisboa, com Moreno Pinto, nos estúdios Polysom, e depois viajou-se até Espanha para gravar a orquestra porque «as gravações mais importantes eram feitas em Madrid, nos Estúdios Celada: a qualidade do som era incomparavelmente melhor à que se conseguia em Portugal, os músicos eram também melhores que os nossos e os preços bastante acessíveis». Desta forma, nesse local e nesse mês de Novembro de 1972, Niza produziu dois discos: Eu Vou Ser Como a Toupeira, de José Afonso, durante a primeira semana; e depois a Fala do Homem Nascido. Este segundo título é bastante diferente dos restantes trabalhos do período áureo da «canção de intervenção» portuguesa. Se bem que os textos sejam de Gedeão e as melodias de Niza, a responsabilidade pelo resultado final é mais difusa: as interpretações dos cantores são sublimes e inspiradas, as orquestrações de Calvário conferem aos temas o andamento dramático necessário ao «pequeno teatro radiofónico» que os ouvintes receberiam em casa, temperando-os com uns laivos de contemporaneidade «jazzy», que também fazia apelo a alguma sofisticação. Mas dizer isto é esquecer como esse pequeno teatro recorre a expedientes minimalistas sempre que o texto o exige - veja-se a guitarra monocórdica que acompanha Samuel enquanto ele desfia o «Poema da Pedra Lioz». Para outros pormenores, escutemos com atenção este disco e a sua colecção de momentos clássicos, a que um quarto de século puxou o lustro: «Estrela da Manhã», «Desencontro», «Poema da Malta das Naus», «Lágrima de Preta», «Poema do Fecho Éclair», «Calçada de Carriche», «Poema da Auto-estrada». Sobre o tempo, as palavras de António Gedeão, falecido no ano passado a 19 de Fevereiro, continuam a sorrir para alimento da encenação: «Todo o tempo é de poesia/ Desde a quentura do ventre/ à frigidez da agonia/ Desde a arrumação do caos/ à confusão da harmonia». JORGE P. PIRES

Todo o tempo é de poesia

Reedição digital de um momento fundamental da música portuguesa anterior ao 25 de Abril

FALA DO HOMEM NASCIDO

António Gedeão José Niza Ed. original Orfeu, 1972; reed. em CD, Movieplay, 1998 FOI em «Zau Évua (Norte de Angola) Abril-Maio de 1970» que José Niza, alferes-médico do exército português a braços com «a angústia, o estar aqui, a viola, as noites, os estilhaços de um povo, o torniquete equatorial, a medicina artesanal, o resto» recebeu as Poesias Completas de António Gedeão, que lhe haviam sido enviadas de Lisboa pelo seu amigo Eduardo Cambezes, e constatou que «não eram poemas isolados, mas uma história, o que estava ali escrito. E a história, e a poesia, eram demasiado belas para que a música as estragasse». Tudo ganhou de súbito um outro sentido, garantia José Niza no texto que acompanhou a edição original deste disco, uma obra que é um momento fundamental da música portuguesa anterior ao 25 de Abril. A poesia de Gedeão, dominada por um sentido de ritmo que se julgaria insuspeito na identidade alternativa do autor, a do professor de Física Rómulo de Carvalho, agitava a Metrópole desde 1969, quando Manuel Freire desceu ao Teatro Villaret para interpretar a sua versão musicada de «Pedra Filosofal», um hoje célebre texto do poeta.

Em Angola, passado o choque inicial, Niza encontrou tempo para tanger a viola, descobrindo as sequências melódicas escondidas entre aquelas frases cheias de sentido: «Não há ventos que não prestem/ nem marés que não convenham,/ nem forças que me molestem,/ correntes que me detenham./ Quero eu e a Natureza,/ que a Natureza sou eu,/ e as forças da Natureza/ nunca ninguém as venceu./ Com licença! Com licença!/ Que a barca se faz ao mar./ Não há poder que me vença./ Mesmo morto hei-de passar.» Regressado à Metrópole, Niza encontrou um meio social profundamente trespassado pela importância do que era comunicado através das canções, graças à tácita cumplicidade (e gosto) de diversos locutores e estações radiofónicas - nessa época, era ainda a rádio quem garantia a animação do meio musical e discográfico. Para além disso, 25 anos depois, no texto da reedição em CD, José Niza recorda outros pormenores cheios de interesse: «Quando este disco foi gravado, em 1972, vivia-se uma fase de grande agitação criadora e criativa na música portuguesa, em especial na editora Arnaldo Trindade Lda.-Discos Orfeu, para onde gravavam, na altura, as melhores vozes portuguesas. Um ano antes, eu tinha composto um disco, Gente de Aqui e de Agora, para o Adriano Correia de Oliveira. Meses antes tinha ganho, com o José Calvário e o Carlos Mendes, o Festival RTP da canção com A Festa da Vida.» A ocasião era propícia: José Calvário concebeu os arranjos orquestrais (ou a «encenação musical» que a capa refere), seleccionaram-se as vozes de Tonicha, Carlos Mendes, Duarte Mendes e Samuel, gravaram-se as vozes em Lisboa, com Moreno Pinto, nos estúdios Polysom, e depois viajou-se até Espanha para gravar a orquestra porque «as gravações mais importantes eram feitas em Madrid, nos Estúdios Celada: a qualidade do som era incomparavelmente melhor à que se conseguia em Portugal, os músicos eram também melhores que os nossos e os preços bastante acessíveis». Desta forma, nesse local e nesse mês de Novembro de 1972, Niza produziu dois discos: Eu Vou Ser Como a Toupeira, de José Afonso, durante a primeira semana; e depois a Fala do Homem Nascido. Este segundo título é bastante diferente dos restantes trabalhos do período áureo da «canção de intervenção» portuguesa. Se bem que os textos sejam de Gedeão e as melodias de Niza, a responsabilidade pelo resultado final é mais difusa: as interpretações dos cantores são sublimes e inspiradas, as orquestrações de Calvário conferem aos temas o andamento dramático necessário ao «pequeno teatro radiofónico» que os ouvintes receberiam em casa, temperando-os com uns laivos de contemporaneidade «jazzy», que também fazia apelo a alguma sofisticação. Mas dizer isto é esquecer como esse pequeno teatro recorre a expedientes minimalistas sempre que o texto o exige - veja-se a guitarra monocórdica que acompanha Samuel enquanto ele desfia o «Poema da Pedra Lioz». Para outros pormenores, escutemos com atenção este disco e a sua colecção de momentos clássicos, a que um quarto de século puxou o lustro: «Estrela da Manhã», «Desencontro», «Poema da Malta das Naus», «Lágrima de Preta», «Poema do Fecho Éclair», «Calçada de Carriche», «Poema da Auto-estrada». Sobre o tempo, as palavras de António Gedeão, falecido no ano passado a 19 de Fevereiro, continuam a sorrir para alimento da encenação: «Todo o tempo é de poesia/ Desde a quentura do ventre/ à frigidez da agonia/ Desde a arrumação do caos/ à confusão da harmonia». JORGE P. PIRES

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