O camarada ministro

29-08-1999
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O actual ministro da Economia ainda é um menino entre as bruxas, embora sendo um homem feito de e para a política. Em jovem, preferia os clássicos comunistas às boémias, mas em 1990 disse ao PCP: «Sinto que é meu dever expressar a minha discordância...» Foi o braço-direito de Cunhal, é o braço-direito de Guterres.

Pina Moura, ministro da Economia

NO VERSO da fotografia, datada de 1962, a caligrafia escolar está um pouco encavalitada, mas é clara: «Minha querida mãe: aí vai a minha cara tirada no dia das papas. Continuo bem. Tirei dois pontos com 20 valores. Beijos do filho amigo. Quim.» Ou, mais propriamente, Joaquim Augusto Nunes de Pina Moura, actualmente com 46 anos, ministro da Economia e, na expressão de um amigo, a única pessoa que «conseguiu na mesma existência passar de 'braço direito' de Cunhal a 'braço direito' de Guterres sem precisar de reencarnar pelo meio». Nascido a 22 de Fevereiro de 1952, em Loriga, Joaquim escreve à mãe a partir da aldeia de Pereiro, também no concelho de Seia, em cuja escola termina a primária, na quarta classe da tia Ilídia. A carta viajará até à caixa de correio do segundo andar do número 626 da Rua de Cedofeita, onde a família vive com o irmão mais novo, Viriato. A princípio, Joaquim acompanha os pais na deslocação para a cidade, mas a inadaptação urbana e a melancolia da aldeia remetem-no à procedência. «Como não vivíamos juntos, só me lembro de ele ser muito calado e tímido», diz Viriato Pina Moura, economista, dois anos mais novo que o irmão e, como ele, funcionário do PCP durante longos anos.

A casa dos avós, em Loriga, onde nasceu em Fevereiro de 1952

Por doença da tia Ilídia, depois da primeira classe feita em Carvalhal da Louça, Joaquim frequenta a segunda e a terceira classes na escola de Cedofeita, no Porto, com os professores Valério e Rocha, como recorda reclinando-se no sofá do seu gabinete de ministro na Rua da Horta Seca. À excepção da transitória agitação citadina, o bucolismo tranquilo da primeira infância de Joaquim Pina Moura apenas fora perturbado com seriedade uma vez, quando, com cerca de um ano, caiu sobre uma garrafa na casa dos avós, em Loriga, onde vivia com os pais. O vidro cravou-se-lhe a milímetros de um dos olhos. E por sorte apenas lhe deixou uma profunda cicatriz, que o tempo nunca apagou. No ano seguinte, a família viaja para o Carvalhal da Louça, onde a mãe, Maria Filomena Nunes de Pina, é colocada como professora primária. Viriato Moura era veterinário municipal em Gouveia. O segundo filho nasce nesse período, em Loriga, um microcosmos que se notabilizou por albergar com a indústria têxtil, em plena encosta da serra da Estrela, uma das raras formações capitalistas portuguesas dos finais do século passado, onde a electricidade chegou antes ainda de se generalizar o seu uso em Lisboa.

A aldeia natal coberta de neve. Nos anos 40 - segundo conta Viriato, o irmão mais novo de Joaquim Pina Moura -, havia por lá uns 45 universitários. Chamavam-lhe a «Academia de Loriga»

A família descende deste núcleo protocapitalista, que além de curar dos negócios garantia a continuidade mandando estudar os seus filhos. «Na juventude dos nossos pais, pelos anos 40», reconstitui Viriato Pina Moura, «havia por lá uns 45 universitários. Chamavam-lhe a 'Academia de Loriga'.» Os pais Pina Moura vivem pacatamente neste clima de tertúlia estudantil e catolicismo ameno, que, mais tarde, levará Joaquim Pina Moura aos bancos da catequese do futuro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, e a frequentar, no liceu, a Juventude Estudantil Católica. De acordo com Viriato, e apesar de terem depois concretizado «um afastamento sereno» do cristianismo, «este precedeu o marxismo na formação da consciência social» dos dois irmãos. O envolvimento do pai na campanha presidencial de Norton de Matos leva à sua expulsão abrupta do funcionalismo público. Para a família, nada mais resta do que trilhar o rumo urbano do grande Porto, onde Viriato Moura, depois de um período instável, arranja emprego como delegado de propaganda médica. Maria Filomena consegue, por seu lado, uma colocação na direcção de ensino da cidade, enquanto o marido começa a radicalizar progressivamente o seu trajecto político. Em 1958, representa a candidatura de Delgado nas mesas de voto. «Lembro-me da grande preocupação e angústia da minha mãe», declara Joaquim Pina Moura. «Vi-a várias vezes a chorar. É uma recordação traumática que guardo desse tempo.»

O «Quim» com oito meses

Os destaques da memória infantil oficial prendem-se maioritariamente com acontecimentos políticos. Como o da noite em que despertou com o rufar dos tambores de Cavalaria 6, que desfilava a caminho dos primeiros cenários de guerra em Angola. E também se recorda de ver pela janela da casa o cortejo da Rainha de Inglaterra, que na sua visita a Portugal em 1958 por ali passou. A vida doméstica era, então, pautada por uma organização disciplinada e fluente. «Todos os anos fazíamos um mês de praia em Leça, coincidente com as férias escolares da minha mãe. E passávamos 15 dias a três semanas na aldeia. De manhã passeávamos, depois de almoço tínhamos de fazer uma sesta de duas horas...» Aos fins-de-semana, a família passeava pela costa Norte, às vezes até Viana. Ou então Viriato Moura levava Joaquim ao futebol, sempre para ver a Académica. Herdada do pai e complementada por jogos em equipas de liceu, a paixão pela «Briosa» só será aplacada pela militância no Futebol Clube do Porto anos depois. «Quando deixei atrasar as quotas e recentemente perguntei ao Pinto da Costa como é que podia pagá-las, ele aconselhou-me que recorresse ao Plano Mateus», conta o ministro da Economia.

Guilherme da Costa Carvalho, que haveria de ser seu sogro, partindo algemado em 1949 para o Tarrafal, donde sairia no ano em que Pina Moura nasceu

Os irmãos ligam-se a partir do regresso de Joaquim ao Porto. Passam férias juntos, e em Junho de 1968 viajarão a Paris. Mais que para Cohn-Benditt e as barricadas do mês anterior, a atenção de Pina Moura dirige-se para a livraria das Editions Sociales, ligada ao PCF. Joaquim não tem problemas nos estudos. Mas destaca-se na área de ciências, com a Matemática à cabeça. Por ironia, o Desenho é o ponto fraco de um Pina Moura que, anos mais tarde, tanta arquitectura política terá de gizar. A sua curiosidade selectiva e concentrada leva-o a trocar muitos dos clássicos literários, imperativamente municiados pela mãe, por outros clássicos, de capa vermelha e embrulhados em papel pardo. «Leu toda a cartilha comunista. Mais Estaline que Lenine, mais Lenine que Marx, mas tratou de que não ficasse nada de fora», assinala o irmão. O camarada «Duarte» Joaquim Pina Moura em estado puro. Gostos e vocações definidos, convergentes e uma extrema focalização de esforços para as áreas que privilegia. Deus, Cunhal e Guterres saberão não apenas que isso é assim mas também o jeito que dá que assim seja. «O Pina não é um tipo extraordinariamente culto, no sentido geral do termo. Conhece a fundo o que lhe interessa e aquilo em que está a trabalhar. Mas não vê muito ao lado», afirma um antigo companheiro.

Entre os 18 meses e os três anos, Pina Moura gozou a infância em ambiente rural

No entanto - ressaltam com total unanimidade os seus amigos -, até pela influência familiar, Joaquim Pina Moura não é um sectário a nível intelectual. «A minha mãe era uma pessoa de pensamento livre», evoca. «Eu nunca soube, sequer, o sentido do seu voto.» Enquanto para Viriato, a mãe, «uma mulher intrinsecamente de esquerda, tinha uma distância do militantismo que lhe permitia criar um clima educativo muitíssimo tolerante». A aproximação à Faculdade coloca Joaquim Pina Moura no seu trilho próprio - é uma galopada crescente. Segundo Viriato, «aquilo que nós notávamos em casa era que sabíamos cada vez menos por onde é que ele andava e o que fazia». Joaquim conhecia a música da moda, mas dava-lhe uma utilização incomum. «Os bailes nas garagens, por exemplo, eram excelentes cenários para outras coisas. Eram uns bailes um bocado especiais, tal como o São João do Porto», recorda o irmão. Eram espaços que por vezes os clandestinos aproveitavam para, na confusão, virem à superfície por alguns momentos.

Em casa dos avós, em Loriga, ou em Carvalhal da Louça, onde a mãe foi colocada como professora, os primeiros anos foram passados sem sobressaltos

Freguês de tudo quanto era plenário, em 1970, o caloiro de Engenharia Mecânica Joaquim Pina Moura é detido e identificado pela PSP. «Estávamos num protesto contra uma serenata da direita estudantil. Na primeira fila, senti que nos isolávamos dos de trás. Mas como só vi gente à civil não me apercebi que era um cordão de polícias à paisana a empurrar. Já só conheci o Pina Moura dentro da ramona», recorda Edgar Secca, um gestor que em meados da década de 90 foi responsável pela Associação de Jovens Empresários. Daqui em diante, a actividade associativa do jovem neófito será escrupulosamente avaliada, até ao momento sublime de 1972 em que o actual repórter do «Público» António Arnaldo Mesquita formalizará o recrutamento. Sob o pseudónimo de «Duarte», o mesmo de Cunhal, Pina Moura rapidamente ascende à direcção da organização da UEC portuense, com Jorge Resende, hoje professor universitário de Matemática em Lisboa, e Carlos Semedo, há longos anos radicado em Paris, onde trabalha em cinema. O organismo era controlado por «Soeiro», aliás, Albano Nunes. Reuniam-se no Luso, numa casa da serra de Valongo e numa cave de Resende no Porto.

À superfície, Edgar Secca retém desse tempo a capacidade argumentativa de Pina Moura em acaloradas e estéreis discussões associativas com Pacheco Pereira na sede da Juventude Universitária Católica (JUC). Em 1973, Joaquim é candidato da CDE e participa no Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro. Inexplicavelmente, porém, é Viriato que a PIDE escolhe para prender. A 6 de Fevereiro de 1973, uma brigada de luxo da DGS, chefiada por Rosa Casaco, visita a casa da família Pina Moura. «Era o Joaquim que lá estava», diz Viriato. «Só gritaram: 'Polícia!' Pedi um momento para me vestir, enquanto atirava com dois maços de 'Avante!' clandestinos para a varanda da vizinha do lado, que nos conhecia, e abri a porta», reconstitui Joaquim com ironia. «Como vinham por causa do Viriato só revistaram o lado dele no quarto que partilhávamos... tudo muito legalista.» O auto de apreensão é hilariante: «Dezanove cartões de boas-festas com os seguintes dizeres: 'Que floresça sobre a terra do Vietname, do Laos e do Cambodja um ano de paz, de liberdade, sem a intervenção americana!'» Ou então: «Meia folha de papel amarelo com os dizeres: 'Contra a Repressão, comunicado nº 11'.»

A sua biografia apenas regista um acidente: com cerca de um ano, caiu sobre uma garrafa, tendo o vidro ficado cravado a milímetros de um olho; mas disto apenas resultou uma profunda cicatriz, que o tempo nunca apagou

Joaquim começou a dormir menos em casa. Marianela Secca, ainda hoje militante do PCP e amiga da família, situa-o nesta fase dentro da sua invariável camisola de malha vermelha: «Era um rapaz certinho, determinado e muito ambicioso. Isso via-se nele.» «Pina Moura, agente da CIA» No dia 25 de Abril, Viriato nem se lembra se o irmão estava em Engenharia ou não. A primeira orientação que retém, provavelmente oriunda de Joaquim, é «fazermos reuniões de informação nas escolas. Foi aí que, quando íamos a descer a rua, um de nós faz emocionadamente a declaração do dia: 'Camaradas, proponho que cantemos todos a conhecida canção Avante, Camarada, Avante'». Dirigida pelo triunvirato de antes do 25 de Abril, a UEC do Porto mergulha a fundo na época dos grandes excessos e na querela permanente com a extrema-esquerda estudantil. Sem assinatura, Pina Moura escreve então um violento opúsculo antiesquerdista, intitulado «Quem Diz o Quê?». Contudo, a própria UEC depressa contrai o mau hábito de, na suave formulação de Edgar Secca, «arranjar conflitos com a linha oficial».

Com os pais, num dos passeios habituais de fim-de-semana pelas praias do Norte

Entre outras barbaridades, editou um discurso formidavelmente herético, no qual Fidel Castro critica a invasão da Checoslováquia em 68. Joaquim Pina Moura diz que não se lembra do episódio. Mas, no seu rescaldo, Jorge Resende salta sem remissão do posto que ocupava na direcção. Zangado, o partido olha em volta, e, dois meses depois do caso, os olhos de Ângelo Veloso encontram Pina Moura. É ele o primeiro a notar o jovem dotado que trocava a Engenharia, a boémia estudantil e a afectividade dispersa dos namoros adolescentes pelos clássicos do marxismo-leninismo. Veloso consagrará a devoção do jovem, que, apesar de nunca ter fumado, preferia o ambiente pesado de fumo nas salas de reunião, misturado com o cheiro a tinta do policopiador e a cola de farinha para colar cartazes à agitação ideológico-etílica dos cafés e cervejarias das redondezas. O missionarismo estóico de Pina Moura ganha alento. Até o boicote decidido pelo partido em 1975 a um comício do PS no Porto, que «acabou por ser um 'flop' total de mobilização, contou com a presença massiva da UEC do Pina. Éramos os únicos, mas não faltávamos», refere um ex-militante da UEC na cidade.

Aos oito anos, com o irmão Viriato, Pina Moura recita «A Viola» num convívio de família

Sob a batuta da sua ortodoxia metódica e circunspecta, não se repetiriam no Porto trapalhadas como a de Jorge Resende e Fidel Castro. Entramos no tempo dos inquéritos internos e do «camaradas, o partido viu que...», apesar de a UEC continuar a ser, até à sua extinção, uma incontrolável corrente de ar no pensamento médio, unanimista e com frequência preguiçoso do universo comunista. A organização estava bem longe de se tornar numa máquina educada, ideologicamente sã e fisicamente operacional. Um estudante de Engenharia, Almancinha, não se cansaria de ilustrar isto mesmo, questionando de forma tão sistemática Pina Moura que este chegou a cismar se não estaria na presença de um infiltrado. Esta história é lembrada anos mais tarde, quando ambos se cruzam num jantar de ex-membros da UEC no Porto, já nos anos 90. «Cumprimentaram-se, e o Almancinha perguntou-lhe: 'Então, Pina, lembras-te de mim? Almancinha, infiltrado, ex-agente da CIA!' Ao que o Pina respondeu de pronto: 'E tu lembras-te de mim? Pina Moura, actual agente da CIA!'» O episódio evidencia, para Edgar Secca, que o presenciou, «o tipo de humor do Pina, que a despeito de ser uma pessoa muito inteligente é sobretudo um trabalhador infatigável».

Aos 16 anos, Pina Moura viaja com o irmão até Paris. Estava-se em 1968, com os estudantes a ferro e fogo, mas ele pareceu mais interessado na livraria das Editions Sociales do que nos destinos traçados por Cohn-Benditt

É desse período a viagem que Zita Seabra se lembra de terem feito juntos para Lisboa, depois de uma reunião no Porto, num Mini que os pais lhe tinham oferecido. Recém-saída da clandestinidade, Zita só tinha carta há uma semana e «não sabia ultrapassar. De forma que quando aparecia um camião parávamos. Demorámos 16 horas a chegar». Em Novembro de 1976, Pina Moura vai para Lisboa coordenar a UEC. No mês anterior, porém, casa-se com Herculana Carvalho, uma militante que conhecera em Fevereiro de 74. Mais tarde enfermeira de profissão, Herculana provinha, a um só tempo, de uma das mais ricas famílias do Porto e de uma casa clandestina do partido, onde passara os dois primeiros anos de vida. A PIDE só tinha libertado o seu pai, Guilherme da Costa Carvalho, um dirigente mítico do PCP no Norte, para o deixar ir morrer a casa. «Pina Moura casava-se com o próprio aparelho», considera um militante desse tempo. «Maria não era virgem» Durante seis meses, Joaquim Pina Moura está em Lisboa sem Herculana, «significativamente a única mulher que lhe conheci na vida», como enaltece um velho amigo. Vive em casas transitórias e só mais tarde se muda com a família para o Restelo, onde ainda hoje habita.

A presença de Viriato na capital, durante a tropa, acaba por se revelar providencial. Uma vez que quando nasce Pedro, o primeiro dos três filhos do casal, é o tio que o vai buscar à maternidade, porque o pai partia no mesmo dia para Cuba. «Volta e meia digo-lhe: 'Olha que se não fosse eu ainda hoje estavas na maternidade!' Porque o meu irmão é um tipo assim, estrutura tudo em função do que está a fazer.» Nesta altura de 1979, Joaquim Pina Moura trabalha na Secção de Informação e Propaganda do PCP, «hoje mais conhecida por Ministério da Economia», como graceja o antigo companheiro de militância e dissidência Miguel Portas, devido ao facto de Pina Moura ter levado para a Rua da Horta Seca antigos camaradas de trabalho no aparelho do PCP. A partir de 1979, José Magalhães forma com Pina Moura o duo de comissários políticos para os tempos de antena. Cabia-lhes, na explicação do deputado, «equilibrar os pontos altos dos tempos de antena (que consistiam numas imagens de camaradas jovenzinhas, de 't-shirt' justinha, 'apanhadas' na Festa do Avante) e os pontos baixos. Estes eram um bloco político, com um 'take' de Domingos Abrantes, por exemplo, que teria sempre de aparecer entre dois blocos de sorrisos e maminhas, sem que o Jorge Araújo, no visionamento final, desaprovasse. Nem umas nem o outro».

Menos loquaz, Joaquim Pina Moura não regista dessa fase «nada de especial, para além da ortodoxia». Sublinha, pouco antes e em contraponto, a extinção da UEC, «a primeira grande decisão tomada no partido contra a vontade de Álvaro Cunhal. Se me tivesse oposto creio que poderia tê-la evitado. Não o fiz e hoje reconheço que o Miguel Portas e os outros tinham razão». O primeiro momento crítico de desacordo só surgirá no ano fatídico de 1985. O suporte comunista na segunda volta à primeira eleição de Mário Soares é o princípio do fim. «Álvaro Cunhal é contra um apoio imediato. Vítor Dias, curiosamente, é a favor», lembra Pina Moura. Mas o «sapo», somado a Gorbachov, divide o partido, para nunca mais o unir. A dissidência no PCP era um processo ideológico mas também geracional, opina Miguel Portas. «A geração então próxima dos 40 anos, a geração da UEC, está a preparar-se para mais trinta anos de espera. Está cansada e, sobretudo, está a perder. Não vê que os lugares que vão ficando vagos acima sobrem para ela. Ou as pessoas saem ainda a tempo de se reconverterem política ou profissionalmente ou tentam mudar por dentro.»

Excelente aluno, alimenta a paixão pelo futebol: por influência paterna, é adepto da Académica, mas mais tarde passa a ser do FC Porto

Ao certo, é difícil precisar quando começou Pina Moura a aperceber-se de que, na sua própria expressão, «a bota não casava com a perdigota», porque, explica, «havia demasiados sistemas de autojustificação». José Magalhães, contudo, é de opinião que, como outros, Pina Moura tinha boas informações. Demasiado boas, até. «Aquele tipo de informação um pouco inconfessável, do género: 'Camaradas, temos indicações seguras de que, afinal, Maria não era virgem. Mas não podemos começar já a distribuir isto aos outros macacos!'» Este panorama é adensado pela maioria absoluta de Cavaco e por um dado político-afectivo importantíssimo: a morte de Ângelo Veloso, com quem Pina Moura mantinha, desde há longos anos, uma relação «complexa e intensa, extremamente afectiva, mas marcada pelos verdadeiros acessos de fúria autoritária que ele por vezes tinha e com que eu me dava mal». Em todo o caso, Veloso foi, até hoje, uma das poucas inteligências lúcidas do PCP, comparável à de Cunhal, a não acabar na esquina de uma qualquer cilada pseudo-ideológica. Muitos anos mais tarde, a sua ausência pesará sobre a terceira via, cujo problema «era radical e insolúvel. Seria necessário que Cunhal morresse para que o PCP pudesse renovar-se, ou isso era possível com ele vivo? Sem Veloso, quem asseguraria a transição?», equaciona um jornalista então ligado ao PCP.

Auto de apreensão da brigada da PIDE que fez busca à casa de Pina Moura, em 1973, apreendendo papéis insignificantes

Pina Moura já se tinha insurgido contra a expulsão de Zita Seabra e, a despeito da sua brilhante carreira de bastidor, nunca será chamado à Comissão Política. Por um lado, «eu era demasiado novo», justifica, e, por outro, imperava «já desde o Júlio Fogaça ou o Chico Martins a política do eucalipto» na gestão das carreiras de topo no PCP de Álvaro Cunhal. Um estilo que consiste em «secar toda a inteligência crítica envolvente que possa ensombrar o seu brilho próprio. A solução Carvalhas é o mais acabado exemplo desta teoria». Excessivamente organicista na sua crítica, o Grupo dos Seis, com Vital Moreira à cabeça, acaba por valer, sobretudo, pelo pioneirismo. Tinham arvorado Zita Seabra em bandeira, mas «a inteligência estratégica» de Pina Moura, como a define hoje o próprio Vital Moreira, vê que a coisa não vai longe, e ele não se baterá mais do que o que entende razoável no interior do Comité Central. Ainda assim, «a partir de dada altura, é o próprio Álvaro Cunhal quem se encarrega de refutar pessoal e asperamente cada uma das suas intervenções mais estruturadas no CC», revela João Semedo, ele próprio ex-membro daquele organismo.

Com o irmão, a mãe e uma amiga em Paris

Ao contrário de outros, Pina Moura não viveu com dilaceração a crise de consciência comunista. «Geriu-a politicamente, foi tudo. Ele saía com um projecto. Tinha um grande controlo emocional», conta Viriato. E é nesse estado de espírito que ao fim da manhã de sábado, 19 de Maio de 1990, Pina Moura sobe à tribuna do XIII Congresso do PCP, em Loures, e começa a ler: «Sinto que é meu dever exprimir aqui a minha discordância...» Os congressistas vaiam o seu já então talvez pouco sincero «projecto de refundação da identidade comunista», como ele próprio lhe chamou nesse discurso, «escrito na sexta à noite, em casa», para ser lido «depois de ter avisado o Carvalhas do que iria dizer». A saída formal só ocorrerá, porém, mais de um ano e meio depois. Até lá, Joaquim Pina Moura aprende a técnica da manipulação subtil das «fugas de informação». A Imprensa de fim-de-semana torna-se o grande palco da crise desvairadamente pública no PCP. «Havia apenas um pacto de rigor», explica um dos autores desse cirúrgico trabalho de engenharia informativa, «só se difundia informação verdadeira e confirmada.» Que era imensa. Um menino entre bruxas

Casamento com Herculana Carvalho, em 1976

O curso de Economia, que começara a tirar em 1986, foi, entretanto, outro elemento crucial na evolução do seu polémico pensamento político rumo ao «círculo virtuoso» entre mercado e sociedade que hoje preconiza. Para algumas opiniões críticas, esta «descoberta recente da via capitalista para o socialismo» é uma charada insolúvel. No entanto, homens como Augusto Mateus ou Vítor Constâncio tornaram-se para ele referenciais. Além de João Ferreira do Amaral, de quem se torna assistente no ISE. Pina Moura faz uma pós-graduação, e em 1989 trabalha com efectividade durante algum tempo numa pequena sociedade de consultadoria, a Oficina Económica, que mantém com amigos. São dos anos 80 as teses segundo as quais «o valor do sector público da economia se deve medir pela sua importância económica e não pela sua relevância ideológica», uma traição ao mandamento que proclamava irreversíveis as nacionalizações.

Com Gorbatchev e ex-reformistas do PCP, em Cascais em 1995

O facto consumado e o labor discreto do Gabinete de Actividades Económicas, onde Pina Moura trabalha adstrito ao CC, levam o PCP a actualizar pouco convictamente o seu discurso europeu. «Só quem não conhecer o seu pensamento estranhará o 'círculo virtuoso'», sustenta a partir desta evolução João Semedo, ex-controleiro do sector intelectual do PCP no Porto. Em Agosto de 91 - outro pico crítico -, o movimento contestatário está num impasse. Álvaro Cunhal aplicava à crise uma estratégia «evolucionista», analisa hoje Pina Moura. «Não havia derrotas, e as coisas derivavam apenas logicamente das decisões anteriores. No fim, batia tudo certo à mesma», especifica, imitando na perfeição as típicas fórmulas do discurso cunhalista sobre o fraccionismo. A resposta virá, mais uma vez, de Moscovo, a 19 de Agosto, com o golpe comunista falhado que levará Ieltsin ao poder e que, com o coração noutros cenários, o PCP, numa reacção a quente, começa por apoiar.

Numa visita oficial aos Estados Unidos, cumprimenta Bill Clinton

«Reunião à noite na casa do Pina. Mais propriamente na cozinha do Pina. Que fazer ? Estava tudo a fraccionar, e bem, como o Cunhal dizia, cheio de razão. Tudo de saída, mas sem saber para onde.» Assim resume esses dias um crítico. Porém, se Joaquim Pina Moura está claramente «na asa direita» dos futuros plataformistas de esquerda, as assembleias dissidentes rapidamente vão assemelhar-se a velhos conciliábulos trotskistas: cada cabeça, dois partidos. Entre as teses do orfanato político e as da integração pura e simples no PS, há uma miríade de opções. Contudo, «para o Pina, a política faz-se fazendo», assinala um dos elementos da terceira via. Por isso, enquanto muitos dos mais adiantados plataformistas ainda discutem se devem ir para o PS através do guterrismo ou do sampaísmo, já Pina Moura está reunido com Guterres. Encontram-se pela primeira vez numa reunião no Rato, a 1 de Junho de 1992. «Fiquei muito impressionado com o 'engenheiro', sobretudo porque nós tínhamos uma ideia um pouco mítica de secretário-geral», ironiza.

Com a mulher Herculana, numa pausa da Cimeira Ibero Americana realizada em Santiago do Chile, em 1996

Aproxima-se o ponto em que Pina Moura, apesar de minoritário na plataforma, vai operar a ruptura. «Algo de que decididamente não gosta mas que irrevogavelmente faz quando acha que deve fazer», esclarece Miguel Portas. Ele, Pina Moura, seguirá viagem para o PS. Quem quiser ir também que vá. E foram! A proximidade com Guterres não espanta. Tradições educacionais similares, a obsessão da mudança, o clima político de desagregação do cavaquismo, uma «situação pré-revolucionária, como diria Lenine», citado por um plataformista da época, que aduz: «O que o Pina tem na cabeça, nessa altura, é todo um programa político, uma revolução.» Guterres também. E isto é verdade. Resta saber se será a mesma revolução. No plano humano, as relações entre Guterres e Pina Moura estreitar-se-ão a ponto de Herculana ter acompanhado, em Londres, uma parte da doença fatal da mulher do primeiro-ministro. Pina Moura trabalha febrilmente. Reata velhos contactos, quer ligar toda a gente. Edgar Secca, então na ANJE, é contactado nessa altura. «Conversámos sobre política económica. No dia seguinte, numa reunião connosco, ouvi Guterres focar um por um os tópicos que eu tinha abordado na véspera com o Pina Moura. 'Ora aqui está o Pina a funcionar', não deixei de pensar.»

Numa foto recente tirada à saída do Conselho de Ministros

Está-se nas vésperas dos Estados Gerais do PS, «uma realização muito fácil até para um simples quadro médio do aparelho do PC quanto mais para o Pina Moura», garante Miguel Portas. No novo concílio socialista, Pina Moura tornava-se «o cardeal». E o vendaval no PS não se faz esperar. «Guterres ouve-o demasiado, e só a ele. É lamentável», confidencia por essa altura um deputado histórico do PS. «O Pina é sempre de uma lealdade ascendente absoluta», diz um amigo, que acrescenta: «Pelo menos até ao dia em que resolva demarcar-se. Mas, aí, fá-lo com frontalidade. Não lhe falta coragem nem depende da política para sobreviver.» Contudo, necessita dela para viver. «Não me lembro de alguma vez o ter visto gostar tanto de qualquer coisa como de política», testemunha o irmão. E, neste momento, segundo corrobora um observador próximo do PS e antigo plataformista, «o Pina está na Economia a fazer política. Sob o impacto social do euro, ele tentará fazer a reforma fiscal de esquerda, nem que tenha de passar por cima do Sousa Franco. Nessa altura, talvez prepare a disputa da liderança do PS». Quem sabe?... Para já, está-se longe disso. Entre os barões da alta finança e os burocratas do PS, Joaquim Pina Moura parece ser, por vezes, um menino entre bruxas, como nas histórias infantis. No elenco de uma festa que a mulher lhe organizou para celebrar o seu 45º aniversário, reunindo-lhe em casa, de surpresa, outros tantos amigos, um ex-comunista presente notou que «ele nunca perdeu amigos pelo caminho», mas também não deixou de reparar na ausência completa nesse dia «daquilo a que nós chamávamos os 'chuchas', os PS puros - nem um lá estava». Para esse amigo, «o Pina é um político a meio do caminho e a evoluir em direcção a si próprio. Se ganhar, com ele ganharão talvez os tiques da política e do poder. Se perder, ressaltarão as qualidades humanas que, sem dúvida, tem». Seja qual for o resultado, talvez se justifique então actualizar a biografia de Joaquim Pina Moura. Texto de RUI PEREIRA

O actual ministro da Economia ainda é um menino entre as bruxas, embora sendo um homem feito de e para a política. Em jovem, preferia os clássicos comunistas às boémias, mas em 1990 disse ao PCP: «Sinto que é meu dever expressar a minha discordância...» Foi o braço-direito de Cunhal, é o braço-direito de Guterres.

Pina Moura, ministro da Economia

NO VERSO da fotografia, datada de 1962, a caligrafia escolar está um pouco encavalitada, mas é clara: «Minha querida mãe: aí vai a minha cara tirada no dia das papas. Continuo bem. Tirei dois pontos com 20 valores. Beijos do filho amigo. Quim.» Ou, mais propriamente, Joaquim Augusto Nunes de Pina Moura, actualmente com 46 anos, ministro da Economia e, na expressão de um amigo, a única pessoa que «conseguiu na mesma existência passar de 'braço direito' de Cunhal a 'braço direito' de Guterres sem precisar de reencarnar pelo meio». Nascido a 22 de Fevereiro de 1952, em Loriga, Joaquim escreve à mãe a partir da aldeia de Pereiro, também no concelho de Seia, em cuja escola termina a primária, na quarta classe da tia Ilídia. A carta viajará até à caixa de correio do segundo andar do número 626 da Rua de Cedofeita, onde a família vive com o irmão mais novo, Viriato. A princípio, Joaquim acompanha os pais na deslocação para a cidade, mas a inadaptação urbana e a melancolia da aldeia remetem-no à procedência. «Como não vivíamos juntos, só me lembro de ele ser muito calado e tímido», diz Viriato Pina Moura, economista, dois anos mais novo que o irmão e, como ele, funcionário do PCP durante longos anos.

A casa dos avós, em Loriga, onde nasceu em Fevereiro de 1952

Por doença da tia Ilídia, depois da primeira classe feita em Carvalhal da Louça, Joaquim frequenta a segunda e a terceira classes na escola de Cedofeita, no Porto, com os professores Valério e Rocha, como recorda reclinando-se no sofá do seu gabinete de ministro na Rua da Horta Seca. À excepção da transitória agitação citadina, o bucolismo tranquilo da primeira infância de Joaquim Pina Moura apenas fora perturbado com seriedade uma vez, quando, com cerca de um ano, caiu sobre uma garrafa na casa dos avós, em Loriga, onde vivia com os pais. O vidro cravou-se-lhe a milímetros de um dos olhos. E por sorte apenas lhe deixou uma profunda cicatriz, que o tempo nunca apagou. No ano seguinte, a família viaja para o Carvalhal da Louça, onde a mãe, Maria Filomena Nunes de Pina, é colocada como professora primária. Viriato Moura era veterinário municipal em Gouveia. O segundo filho nasce nesse período, em Loriga, um microcosmos que se notabilizou por albergar com a indústria têxtil, em plena encosta da serra da Estrela, uma das raras formações capitalistas portuguesas dos finais do século passado, onde a electricidade chegou antes ainda de se generalizar o seu uso em Lisboa.

A aldeia natal coberta de neve. Nos anos 40 - segundo conta Viriato, o irmão mais novo de Joaquim Pina Moura -, havia por lá uns 45 universitários. Chamavam-lhe a «Academia de Loriga»

A família descende deste núcleo protocapitalista, que além de curar dos negócios garantia a continuidade mandando estudar os seus filhos. «Na juventude dos nossos pais, pelos anos 40», reconstitui Viriato Pina Moura, «havia por lá uns 45 universitários. Chamavam-lhe a 'Academia de Loriga'.» Os pais Pina Moura vivem pacatamente neste clima de tertúlia estudantil e catolicismo ameno, que, mais tarde, levará Joaquim Pina Moura aos bancos da catequese do futuro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, e a frequentar, no liceu, a Juventude Estudantil Católica. De acordo com Viriato, e apesar de terem depois concretizado «um afastamento sereno» do cristianismo, «este precedeu o marxismo na formação da consciência social» dos dois irmãos. O envolvimento do pai na campanha presidencial de Norton de Matos leva à sua expulsão abrupta do funcionalismo público. Para a família, nada mais resta do que trilhar o rumo urbano do grande Porto, onde Viriato Moura, depois de um período instável, arranja emprego como delegado de propaganda médica. Maria Filomena consegue, por seu lado, uma colocação na direcção de ensino da cidade, enquanto o marido começa a radicalizar progressivamente o seu trajecto político. Em 1958, representa a candidatura de Delgado nas mesas de voto. «Lembro-me da grande preocupação e angústia da minha mãe», declara Joaquim Pina Moura. «Vi-a várias vezes a chorar. É uma recordação traumática que guardo desse tempo.»

O «Quim» com oito meses

Os destaques da memória infantil oficial prendem-se maioritariamente com acontecimentos políticos. Como o da noite em que despertou com o rufar dos tambores de Cavalaria 6, que desfilava a caminho dos primeiros cenários de guerra em Angola. E também se recorda de ver pela janela da casa o cortejo da Rainha de Inglaterra, que na sua visita a Portugal em 1958 por ali passou. A vida doméstica era, então, pautada por uma organização disciplinada e fluente. «Todos os anos fazíamos um mês de praia em Leça, coincidente com as férias escolares da minha mãe. E passávamos 15 dias a três semanas na aldeia. De manhã passeávamos, depois de almoço tínhamos de fazer uma sesta de duas horas...» Aos fins-de-semana, a família passeava pela costa Norte, às vezes até Viana. Ou então Viriato Moura levava Joaquim ao futebol, sempre para ver a Académica. Herdada do pai e complementada por jogos em equipas de liceu, a paixão pela «Briosa» só será aplacada pela militância no Futebol Clube do Porto anos depois. «Quando deixei atrasar as quotas e recentemente perguntei ao Pinto da Costa como é que podia pagá-las, ele aconselhou-me que recorresse ao Plano Mateus», conta o ministro da Economia.

Guilherme da Costa Carvalho, que haveria de ser seu sogro, partindo algemado em 1949 para o Tarrafal, donde sairia no ano em que Pina Moura nasceu

Os irmãos ligam-se a partir do regresso de Joaquim ao Porto. Passam férias juntos, e em Junho de 1968 viajarão a Paris. Mais que para Cohn-Benditt e as barricadas do mês anterior, a atenção de Pina Moura dirige-se para a livraria das Editions Sociales, ligada ao PCF. Joaquim não tem problemas nos estudos. Mas destaca-se na área de ciências, com a Matemática à cabeça. Por ironia, o Desenho é o ponto fraco de um Pina Moura que, anos mais tarde, tanta arquitectura política terá de gizar. A sua curiosidade selectiva e concentrada leva-o a trocar muitos dos clássicos literários, imperativamente municiados pela mãe, por outros clássicos, de capa vermelha e embrulhados em papel pardo. «Leu toda a cartilha comunista. Mais Estaline que Lenine, mais Lenine que Marx, mas tratou de que não ficasse nada de fora», assinala o irmão. O camarada «Duarte» Joaquim Pina Moura em estado puro. Gostos e vocações definidos, convergentes e uma extrema focalização de esforços para as áreas que privilegia. Deus, Cunhal e Guterres saberão não apenas que isso é assim mas também o jeito que dá que assim seja. «O Pina não é um tipo extraordinariamente culto, no sentido geral do termo. Conhece a fundo o que lhe interessa e aquilo em que está a trabalhar. Mas não vê muito ao lado», afirma um antigo companheiro.

Entre os 18 meses e os três anos, Pina Moura gozou a infância em ambiente rural

No entanto - ressaltam com total unanimidade os seus amigos -, até pela influência familiar, Joaquim Pina Moura não é um sectário a nível intelectual. «A minha mãe era uma pessoa de pensamento livre», evoca. «Eu nunca soube, sequer, o sentido do seu voto.» Enquanto para Viriato, a mãe, «uma mulher intrinsecamente de esquerda, tinha uma distância do militantismo que lhe permitia criar um clima educativo muitíssimo tolerante». A aproximação à Faculdade coloca Joaquim Pina Moura no seu trilho próprio - é uma galopada crescente. Segundo Viriato, «aquilo que nós notávamos em casa era que sabíamos cada vez menos por onde é que ele andava e o que fazia». Joaquim conhecia a música da moda, mas dava-lhe uma utilização incomum. «Os bailes nas garagens, por exemplo, eram excelentes cenários para outras coisas. Eram uns bailes um bocado especiais, tal como o São João do Porto», recorda o irmão. Eram espaços que por vezes os clandestinos aproveitavam para, na confusão, virem à superfície por alguns momentos.

Em casa dos avós, em Loriga, ou em Carvalhal da Louça, onde a mãe foi colocada como professora, os primeiros anos foram passados sem sobressaltos

Freguês de tudo quanto era plenário, em 1970, o caloiro de Engenharia Mecânica Joaquim Pina Moura é detido e identificado pela PSP. «Estávamos num protesto contra uma serenata da direita estudantil. Na primeira fila, senti que nos isolávamos dos de trás. Mas como só vi gente à civil não me apercebi que era um cordão de polícias à paisana a empurrar. Já só conheci o Pina Moura dentro da ramona», recorda Edgar Secca, um gestor que em meados da década de 90 foi responsável pela Associação de Jovens Empresários. Daqui em diante, a actividade associativa do jovem neófito será escrupulosamente avaliada, até ao momento sublime de 1972 em que o actual repórter do «Público» António Arnaldo Mesquita formalizará o recrutamento. Sob o pseudónimo de «Duarte», o mesmo de Cunhal, Pina Moura rapidamente ascende à direcção da organização da UEC portuense, com Jorge Resende, hoje professor universitário de Matemática em Lisboa, e Carlos Semedo, há longos anos radicado em Paris, onde trabalha em cinema. O organismo era controlado por «Soeiro», aliás, Albano Nunes. Reuniam-se no Luso, numa casa da serra de Valongo e numa cave de Resende no Porto.

À superfície, Edgar Secca retém desse tempo a capacidade argumentativa de Pina Moura em acaloradas e estéreis discussões associativas com Pacheco Pereira na sede da Juventude Universitária Católica (JUC). Em 1973, Joaquim é candidato da CDE e participa no Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro. Inexplicavelmente, porém, é Viriato que a PIDE escolhe para prender. A 6 de Fevereiro de 1973, uma brigada de luxo da DGS, chefiada por Rosa Casaco, visita a casa da família Pina Moura. «Era o Joaquim que lá estava», diz Viriato. «Só gritaram: 'Polícia!' Pedi um momento para me vestir, enquanto atirava com dois maços de 'Avante!' clandestinos para a varanda da vizinha do lado, que nos conhecia, e abri a porta», reconstitui Joaquim com ironia. «Como vinham por causa do Viriato só revistaram o lado dele no quarto que partilhávamos... tudo muito legalista.» O auto de apreensão é hilariante: «Dezanove cartões de boas-festas com os seguintes dizeres: 'Que floresça sobre a terra do Vietname, do Laos e do Cambodja um ano de paz, de liberdade, sem a intervenção americana!'» Ou então: «Meia folha de papel amarelo com os dizeres: 'Contra a Repressão, comunicado nº 11'.»

A sua biografia apenas regista um acidente: com cerca de um ano, caiu sobre uma garrafa, tendo o vidro ficado cravado a milímetros de um olho; mas disto apenas resultou uma profunda cicatriz, que o tempo nunca apagou

Joaquim começou a dormir menos em casa. Marianela Secca, ainda hoje militante do PCP e amiga da família, situa-o nesta fase dentro da sua invariável camisola de malha vermelha: «Era um rapaz certinho, determinado e muito ambicioso. Isso via-se nele.» «Pina Moura, agente da CIA» No dia 25 de Abril, Viriato nem se lembra se o irmão estava em Engenharia ou não. A primeira orientação que retém, provavelmente oriunda de Joaquim, é «fazermos reuniões de informação nas escolas. Foi aí que, quando íamos a descer a rua, um de nós faz emocionadamente a declaração do dia: 'Camaradas, proponho que cantemos todos a conhecida canção Avante, Camarada, Avante'». Dirigida pelo triunvirato de antes do 25 de Abril, a UEC do Porto mergulha a fundo na época dos grandes excessos e na querela permanente com a extrema-esquerda estudantil. Sem assinatura, Pina Moura escreve então um violento opúsculo antiesquerdista, intitulado «Quem Diz o Quê?». Contudo, a própria UEC depressa contrai o mau hábito de, na suave formulação de Edgar Secca, «arranjar conflitos com a linha oficial».

Com os pais, num dos passeios habituais de fim-de-semana pelas praias do Norte

Entre outras barbaridades, editou um discurso formidavelmente herético, no qual Fidel Castro critica a invasão da Checoslováquia em 68. Joaquim Pina Moura diz que não se lembra do episódio. Mas, no seu rescaldo, Jorge Resende salta sem remissão do posto que ocupava na direcção. Zangado, o partido olha em volta, e, dois meses depois do caso, os olhos de Ângelo Veloso encontram Pina Moura. É ele o primeiro a notar o jovem dotado que trocava a Engenharia, a boémia estudantil e a afectividade dispersa dos namoros adolescentes pelos clássicos do marxismo-leninismo. Veloso consagrará a devoção do jovem, que, apesar de nunca ter fumado, preferia o ambiente pesado de fumo nas salas de reunião, misturado com o cheiro a tinta do policopiador e a cola de farinha para colar cartazes à agitação ideológico-etílica dos cafés e cervejarias das redondezas. O missionarismo estóico de Pina Moura ganha alento. Até o boicote decidido pelo partido em 1975 a um comício do PS no Porto, que «acabou por ser um 'flop' total de mobilização, contou com a presença massiva da UEC do Pina. Éramos os únicos, mas não faltávamos», refere um ex-militante da UEC na cidade.

Aos oito anos, com o irmão Viriato, Pina Moura recita «A Viola» num convívio de família

Sob a batuta da sua ortodoxia metódica e circunspecta, não se repetiriam no Porto trapalhadas como a de Jorge Resende e Fidel Castro. Entramos no tempo dos inquéritos internos e do «camaradas, o partido viu que...», apesar de a UEC continuar a ser, até à sua extinção, uma incontrolável corrente de ar no pensamento médio, unanimista e com frequência preguiçoso do universo comunista. A organização estava bem longe de se tornar numa máquina educada, ideologicamente sã e fisicamente operacional. Um estudante de Engenharia, Almancinha, não se cansaria de ilustrar isto mesmo, questionando de forma tão sistemática Pina Moura que este chegou a cismar se não estaria na presença de um infiltrado. Esta história é lembrada anos mais tarde, quando ambos se cruzam num jantar de ex-membros da UEC no Porto, já nos anos 90. «Cumprimentaram-se, e o Almancinha perguntou-lhe: 'Então, Pina, lembras-te de mim? Almancinha, infiltrado, ex-agente da CIA!' Ao que o Pina respondeu de pronto: 'E tu lembras-te de mim? Pina Moura, actual agente da CIA!'» O episódio evidencia, para Edgar Secca, que o presenciou, «o tipo de humor do Pina, que a despeito de ser uma pessoa muito inteligente é sobretudo um trabalhador infatigável».

Aos 16 anos, Pina Moura viaja com o irmão até Paris. Estava-se em 1968, com os estudantes a ferro e fogo, mas ele pareceu mais interessado na livraria das Editions Sociales do que nos destinos traçados por Cohn-Benditt

É desse período a viagem que Zita Seabra se lembra de terem feito juntos para Lisboa, depois de uma reunião no Porto, num Mini que os pais lhe tinham oferecido. Recém-saída da clandestinidade, Zita só tinha carta há uma semana e «não sabia ultrapassar. De forma que quando aparecia um camião parávamos. Demorámos 16 horas a chegar». Em Novembro de 1976, Pina Moura vai para Lisboa coordenar a UEC. No mês anterior, porém, casa-se com Herculana Carvalho, uma militante que conhecera em Fevereiro de 74. Mais tarde enfermeira de profissão, Herculana provinha, a um só tempo, de uma das mais ricas famílias do Porto e de uma casa clandestina do partido, onde passara os dois primeiros anos de vida. A PIDE só tinha libertado o seu pai, Guilherme da Costa Carvalho, um dirigente mítico do PCP no Norte, para o deixar ir morrer a casa. «Pina Moura casava-se com o próprio aparelho», considera um militante desse tempo. «Maria não era virgem» Durante seis meses, Joaquim Pina Moura está em Lisboa sem Herculana, «significativamente a única mulher que lhe conheci na vida», como enaltece um velho amigo. Vive em casas transitórias e só mais tarde se muda com a família para o Restelo, onde ainda hoje habita.

A presença de Viriato na capital, durante a tropa, acaba por se revelar providencial. Uma vez que quando nasce Pedro, o primeiro dos três filhos do casal, é o tio que o vai buscar à maternidade, porque o pai partia no mesmo dia para Cuba. «Volta e meia digo-lhe: 'Olha que se não fosse eu ainda hoje estavas na maternidade!' Porque o meu irmão é um tipo assim, estrutura tudo em função do que está a fazer.» Nesta altura de 1979, Joaquim Pina Moura trabalha na Secção de Informação e Propaganda do PCP, «hoje mais conhecida por Ministério da Economia», como graceja o antigo companheiro de militância e dissidência Miguel Portas, devido ao facto de Pina Moura ter levado para a Rua da Horta Seca antigos camaradas de trabalho no aparelho do PCP. A partir de 1979, José Magalhães forma com Pina Moura o duo de comissários políticos para os tempos de antena. Cabia-lhes, na explicação do deputado, «equilibrar os pontos altos dos tempos de antena (que consistiam numas imagens de camaradas jovenzinhas, de 't-shirt' justinha, 'apanhadas' na Festa do Avante) e os pontos baixos. Estes eram um bloco político, com um 'take' de Domingos Abrantes, por exemplo, que teria sempre de aparecer entre dois blocos de sorrisos e maminhas, sem que o Jorge Araújo, no visionamento final, desaprovasse. Nem umas nem o outro».

Menos loquaz, Joaquim Pina Moura não regista dessa fase «nada de especial, para além da ortodoxia». Sublinha, pouco antes e em contraponto, a extinção da UEC, «a primeira grande decisão tomada no partido contra a vontade de Álvaro Cunhal. Se me tivesse oposto creio que poderia tê-la evitado. Não o fiz e hoje reconheço que o Miguel Portas e os outros tinham razão». O primeiro momento crítico de desacordo só surgirá no ano fatídico de 1985. O suporte comunista na segunda volta à primeira eleição de Mário Soares é o princípio do fim. «Álvaro Cunhal é contra um apoio imediato. Vítor Dias, curiosamente, é a favor», lembra Pina Moura. Mas o «sapo», somado a Gorbachov, divide o partido, para nunca mais o unir. A dissidência no PCP era um processo ideológico mas também geracional, opina Miguel Portas. «A geração então próxima dos 40 anos, a geração da UEC, está a preparar-se para mais trinta anos de espera. Está cansada e, sobretudo, está a perder. Não vê que os lugares que vão ficando vagos acima sobrem para ela. Ou as pessoas saem ainda a tempo de se reconverterem política ou profissionalmente ou tentam mudar por dentro.»

Excelente aluno, alimenta a paixão pelo futebol: por influência paterna, é adepto da Académica, mas mais tarde passa a ser do FC Porto

Ao certo, é difícil precisar quando começou Pina Moura a aperceber-se de que, na sua própria expressão, «a bota não casava com a perdigota», porque, explica, «havia demasiados sistemas de autojustificação». José Magalhães, contudo, é de opinião que, como outros, Pina Moura tinha boas informações. Demasiado boas, até. «Aquele tipo de informação um pouco inconfessável, do género: 'Camaradas, temos indicações seguras de que, afinal, Maria não era virgem. Mas não podemos começar já a distribuir isto aos outros macacos!'» Este panorama é adensado pela maioria absoluta de Cavaco e por um dado político-afectivo importantíssimo: a morte de Ângelo Veloso, com quem Pina Moura mantinha, desde há longos anos, uma relação «complexa e intensa, extremamente afectiva, mas marcada pelos verdadeiros acessos de fúria autoritária que ele por vezes tinha e com que eu me dava mal». Em todo o caso, Veloso foi, até hoje, uma das poucas inteligências lúcidas do PCP, comparável à de Cunhal, a não acabar na esquina de uma qualquer cilada pseudo-ideológica. Muitos anos mais tarde, a sua ausência pesará sobre a terceira via, cujo problema «era radical e insolúvel. Seria necessário que Cunhal morresse para que o PCP pudesse renovar-se, ou isso era possível com ele vivo? Sem Veloso, quem asseguraria a transição?», equaciona um jornalista então ligado ao PCP.

Auto de apreensão da brigada da PIDE que fez busca à casa de Pina Moura, em 1973, apreendendo papéis insignificantes

Pina Moura já se tinha insurgido contra a expulsão de Zita Seabra e, a despeito da sua brilhante carreira de bastidor, nunca será chamado à Comissão Política. Por um lado, «eu era demasiado novo», justifica, e, por outro, imperava «já desde o Júlio Fogaça ou o Chico Martins a política do eucalipto» na gestão das carreiras de topo no PCP de Álvaro Cunhal. Um estilo que consiste em «secar toda a inteligência crítica envolvente que possa ensombrar o seu brilho próprio. A solução Carvalhas é o mais acabado exemplo desta teoria». Excessivamente organicista na sua crítica, o Grupo dos Seis, com Vital Moreira à cabeça, acaba por valer, sobretudo, pelo pioneirismo. Tinham arvorado Zita Seabra em bandeira, mas «a inteligência estratégica» de Pina Moura, como a define hoje o próprio Vital Moreira, vê que a coisa não vai longe, e ele não se baterá mais do que o que entende razoável no interior do Comité Central. Ainda assim, «a partir de dada altura, é o próprio Álvaro Cunhal quem se encarrega de refutar pessoal e asperamente cada uma das suas intervenções mais estruturadas no CC», revela João Semedo, ele próprio ex-membro daquele organismo.

Com o irmão, a mãe e uma amiga em Paris

Ao contrário de outros, Pina Moura não viveu com dilaceração a crise de consciência comunista. «Geriu-a politicamente, foi tudo. Ele saía com um projecto. Tinha um grande controlo emocional», conta Viriato. E é nesse estado de espírito que ao fim da manhã de sábado, 19 de Maio de 1990, Pina Moura sobe à tribuna do XIII Congresso do PCP, em Loures, e começa a ler: «Sinto que é meu dever exprimir aqui a minha discordância...» Os congressistas vaiam o seu já então talvez pouco sincero «projecto de refundação da identidade comunista», como ele próprio lhe chamou nesse discurso, «escrito na sexta à noite, em casa», para ser lido «depois de ter avisado o Carvalhas do que iria dizer». A saída formal só ocorrerá, porém, mais de um ano e meio depois. Até lá, Joaquim Pina Moura aprende a técnica da manipulação subtil das «fugas de informação». A Imprensa de fim-de-semana torna-se o grande palco da crise desvairadamente pública no PCP. «Havia apenas um pacto de rigor», explica um dos autores desse cirúrgico trabalho de engenharia informativa, «só se difundia informação verdadeira e confirmada.» Que era imensa. Um menino entre bruxas

Casamento com Herculana Carvalho, em 1976

O curso de Economia, que começara a tirar em 1986, foi, entretanto, outro elemento crucial na evolução do seu polémico pensamento político rumo ao «círculo virtuoso» entre mercado e sociedade que hoje preconiza. Para algumas opiniões críticas, esta «descoberta recente da via capitalista para o socialismo» é uma charada insolúvel. No entanto, homens como Augusto Mateus ou Vítor Constâncio tornaram-se para ele referenciais. Além de João Ferreira do Amaral, de quem se torna assistente no ISE. Pina Moura faz uma pós-graduação, e em 1989 trabalha com efectividade durante algum tempo numa pequena sociedade de consultadoria, a Oficina Económica, que mantém com amigos. São dos anos 80 as teses segundo as quais «o valor do sector público da economia se deve medir pela sua importância económica e não pela sua relevância ideológica», uma traição ao mandamento que proclamava irreversíveis as nacionalizações.

Com Gorbatchev e ex-reformistas do PCP, em Cascais em 1995

O facto consumado e o labor discreto do Gabinete de Actividades Económicas, onde Pina Moura trabalha adstrito ao CC, levam o PCP a actualizar pouco convictamente o seu discurso europeu. «Só quem não conhecer o seu pensamento estranhará o 'círculo virtuoso'», sustenta a partir desta evolução João Semedo, ex-controleiro do sector intelectual do PCP no Porto. Em Agosto de 91 - outro pico crítico -, o movimento contestatário está num impasse. Álvaro Cunhal aplicava à crise uma estratégia «evolucionista», analisa hoje Pina Moura. «Não havia derrotas, e as coisas derivavam apenas logicamente das decisões anteriores. No fim, batia tudo certo à mesma», especifica, imitando na perfeição as típicas fórmulas do discurso cunhalista sobre o fraccionismo. A resposta virá, mais uma vez, de Moscovo, a 19 de Agosto, com o golpe comunista falhado que levará Ieltsin ao poder e que, com o coração noutros cenários, o PCP, numa reacção a quente, começa por apoiar.

Numa visita oficial aos Estados Unidos, cumprimenta Bill Clinton

«Reunião à noite na casa do Pina. Mais propriamente na cozinha do Pina. Que fazer ? Estava tudo a fraccionar, e bem, como o Cunhal dizia, cheio de razão. Tudo de saída, mas sem saber para onde.» Assim resume esses dias um crítico. Porém, se Joaquim Pina Moura está claramente «na asa direita» dos futuros plataformistas de esquerda, as assembleias dissidentes rapidamente vão assemelhar-se a velhos conciliábulos trotskistas: cada cabeça, dois partidos. Entre as teses do orfanato político e as da integração pura e simples no PS, há uma miríade de opções. Contudo, «para o Pina, a política faz-se fazendo», assinala um dos elementos da terceira via. Por isso, enquanto muitos dos mais adiantados plataformistas ainda discutem se devem ir para o PS através do guterrismo ou do sampaísmo, já Pina Moura está reunido com Guterres. Encontram-se pela primeira vez numa reunião no Rato, a 1 de Junho de 1992. «Fiquei muito impressionado com o 'engenheiro', sobretudo porque nós tínhamos uma ideia um pouco mítica de secretário-geral», ironiza.

Com a mulher Herculana, numa pausa da Cimeira Ibero Americana realizada em Santiago do Chile, em 1996

Aproxima-se o ponto em que Pina Moura, apesar de minoritário na plataforma, vai operar a ruptura. «Algo de que decididamente não gosta mas que irrevogavelmente faz quando acha que deve fazer», esclarece Miguel Portas. Ele, Pina Moura, seguirá viagem para o PS. Quem quiser ir também que vá. E foram! A proximidade com Guterres não espanta. Tradições educacionais similares, a obsessão da mudança, o clima político de desagregação do cavaquismo, uma «situação pré-revolucionária, como diria Lenine», citado por um plataformista da época, que aduz: «O que o Pina tem na cabeça, nessa altura, é todo um programa político, uma revolução.» Guterres também. E isto é verdade. Resta saber se será a mesma revolução. No plano humano, as relações entre Guterres e Pina Moura estreitar-se-ão a ponto de Herculana ter acompanhado, em Londres, uma parte da doença fatal da mulher do primeiro-ministro. Pina Moura trabalha febrilmente. Reata velhos contactos, quer ligar toda a gente. Edgar Secca, então na ANJE, é contactado nessa altura. «Conversámos sobre política económica. No dia seguinte, numa reunião connosco, ouvi Guterres focar um por um os tópicos que eu tinha abordado na véspera com o Pina Moura. 'Ora aqui está o Pina a funcionar', não deixei de pensar.»

Numa foto recente tirada à saída do Conselho de Ministros

Está-se nas vésperas dos Estados Gerais do PS, «uma realização muito fácil até para um simples quadro médio do aparelho do PC quanto mais para o Pina Moura», garante Miguel Portas. No novo concílio socialista, Pina Moura tornava-se «o cardeal». E o vendaval no PS não se faz esperar. «Guterres ouve-o demasiado, e só a ele. É lamentável», confidencia por essa altura um deputado histórico do PS. «O Pina é sempre de uma lealdade ascendente absoluta», diz um amigo, que acrescenta: «Pelo menos até ao dia em que resolva demarcar-se. Mas, aí, fá-lo com frontalidade. Não lhe falta coragem nem depende da política para sobreviver.» Contudo, necessita dela para viver. «Não me lembro de alguma vez o ter visto gostar tanto de qualquer coisa como de política», testemunha o irmão. E, neste momento, segundo corrobora um observador próximo do PS e antigo plataformista, «o Pina está na Economia a fazer política. Sob o impacto social do euro, ele tentará fazer a reforma fiscal de esquerda, nem que tenha de passar por cima do Sousa Franco. Nessa altura, talvez prepare a disputa da liderança do PS». Quem sabe?... Para já, está-se longe disso. Entre os barões da alta finança e os burocratas do PS, Joaquim Pina Moura parece ser, por vezes, um menino entre bruxas, como nas histórias infantis. No elenco de uma festa que a mulher lhe organizou para celebrar o seu 45º aniversário, reunindo-lhe em casa, de surpresa, outros tantos amigos, um ex-comunista presente notou que «ele nunca perdeu amigos pelo caminho», mas também não deixou de reparar na ausência completa nesse dia «daquilo a que nós chamávamos os 'chuchas', os PS puros - nem um lá estava». Para esse amigo, «o Pina é um político a meio do caminho e a evoluir em direcção a si próprio. Se ganhar, com ele ganharão talvez os tiques da política e do poder. Se perder, ressaltarão as qualidades humanas que, sem dúvida, tem». Seja qual for o resultado, talvez se justifique então actualizar a biografia de Joaquim Pina Moura. Texto de RUI PEREIRA

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