Anatomia de um crime

04-09-1999
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A Assembleia da República, ao revogar um decreto-lei que travava o crescimento suburbano na área de influência da nova ponte sobre o Tejo, acaba de abrir caminho a novos dormitórios na Margem Sul.

NO MÊS passado, a Assembleia da República - que desde Maio de 97 está para discutir e aprovar a Lei de Bases do Ordenamento do Território - aprovou discretamente uma proposta de lei de duas páginas. Tratou-se da revogação de um decreto de 1993, que controlava a construção na área de influência da nova ponte do Montijo. Exibindo a habilidade retórica do costume, os deputados conseguiram a proeza de, invocando uma incoerência jurídica que só agora parece terem descoberto, exigir a sua correcção imediata, não fosse o país sofrer mais 24 horas desse pequeno defeito jurídico. E em que é que consistiu essa correcção que tanto preocupava os representantes da Nação? Na simples eliminação de um Decreto-Lei 9/93, que ajudava a controlar a possibilidade de, em redor da Ponte Vasco da Gama, vir a gerar-se um novo mega-subúrbio, levando ao paroxismo a velha doença da macrocefalia territorial portuguesa. E alegando o quê? Os, aliás saudáveis, princípios de autonomia autárquica. E resultando tudo isto em quê? Na imediata possibilidade de, só pelo cômputo dos recém-nascidos PDM, criarem habitação para mais 100 mil portugueses nos concelhos de Benavente, Alcochete, Montijo e Palmela. Os deputados terão até razão quando alegam que as autarquias com PDM aprovados devem ter competências directas sobre os seus territórios. Mas o que está em causa é o futuro da Área Metropolitana de Lisboa e com ela do país em geral. Mais 100 mil pessoas na zona significará, dentro de alguns anos, a garantia dos mesmos problemas que estão hoje criados na velha ponte sobre o Tejo. Pode assim estar a preparar-se a reedição do fenómeno de Almada, que passou de 70 mil habitantes em 1960 - antes da construção da Ponte 25 de Abril - para os 151 mil em 1991, e que, apesar disto, prevê uma nova duplicação para o ano 2010. Perdido por cem, perdido por mais 100 mil; o mal é (deixar) começar, tal como a droga. Veja-se o caso de Alcochete - o último concelho rural da Área Metropolitana de Lisboa - que delimitou já áreas urbanas que permitirão triplicar a população nos próximos anos. Palmela, por seu lado, delimitou mais 2252 hectares de área urbana para mais 60 mil habitantes, ou seja, mais do dobro da população existente em 91. Até agora, por força do DL 9/93, era obrigatório um parecer prévio vinculativo da Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, tutelada pelo Ministério do Planeamento. Mas, para grandes males, grandes remédios! E se este remédio não é autarquicamente perfeito, permitiu mesmo assim recusar 528 processos dos 3800 analisados. Por que vem então a AR invocar, não sem perversidade, os valores democráticos do poder local para servir de «mula de carga» a manobras imobiliárias duvidosas em termos das mais elementares regras de ordenamento do território? É nisto que ainda estamos e estaremos, enquanto as Lei de Bases do Ordenamento do Território e a das Finanças Locais continuarem a não ter prioridade sobre estas resoluções expeditivas. Será assim enquanto o fulgor autárquico depender das sisas que cobra, enquanto os financiamentos dos partidos permanecerem numa sombra obscura; enquanto o formalismo jurídico algemar com os seus célebres «direitos adquiridos» toda e qualquer intenção governativa que vise corrigir esse que é o mais perene e fatal erro nacional: o desordenamento do território.

Os acessos à Ponte Vasco da Gama não constituem apenas um problema autárquico. O país está crivado de casos que, embora localizados, nada têm a ver com as autarquias. Em todos os concelhos com zonas portuárias, as administrações portuárias é que tomam as decisões com plena à-vontade. Não quer dizer que estes casos sejam todos positivos. Mas mostram bem que a invocação da autonomia do poder autárquico tem limites. E uma ponte é uma obra suficientemente estruturante do ordenamento territorial para que as suas consequências urbanísticas não sejam entregues à decisão local. Ter posto a ponte ali e suspender agora o débil decreto 9/93, é o mesmo que deixar um bolo ao sol sobre a relva: não tarda, estará negro de formigas. Sobretudo quando o instrumento regulador e de planeamento da AML - o PROTAML - continua «engavetado» e o plano nacional de ordenamento do território é apenas uma miragem legislativa. Ao contrário do que alegam os deputados, é nesta fase - com a ponte já construída e sem plano regional aprovado - que todos os cuidados são poucos. O que se esperaria do Parlamento era que reforçasse as medidas de controlo urbanístico, de modo a tornar, como diz a actual presidente da Câmara, «o Montijo na Cascais do século XXI». Por este caminho, talvez se transforme, de facto, em Cascais, mas o das traseiras; o Cascais do Bairro do Fim do Mundo, do Pai do Vento, etc. Esta é uma matéria da exclusiva competência e responsabilidade do Governo. Como compreender então o silêncio do ministro da tutela, João Cravinho, e o da ministra do Ambiente, Elisa Ferreira? Turvas decisões Quanto ao comportamento da Assembleia da República é no mínimo curioso: a quase totalidade das forças políticas representadas, a começar pelo próprio PS - e incluindo o PCP e até mesmo os Verdes -, apoiaram a revogação do DL 9/93! O PSD, responsável em 93 por este decreto, estranhamente absteve-se. Como se absteve ainda Ferreira do Amaral - um dos subscritores deste diploma, enquanto ministro. Mas leia-se o «Diário da Assembleia da República». É esclarecedor: Começou por ser o deputado do PCP Joaquim Matias - porta-voz das autarquias abrangidas - a trazer o assunto à baila, com a história dos PDM aprovados, alegando que o referido DL 9/93 era «desnecessário e lesivo do poder local». Seguiu-se um confuso contra-ataque da deputada do PSD, Lucília Ferra - sem que, no entanto, se ficasse a perceber se era contra ou a favor da revogação. Veio então a terreiro Manuel Jorge Goes, do PS, em apoio às teses do PCP, preocupando-se mais com pormenores jurídicos do que com a matéria a acautelar. De permeio, antes da votação final, poucas mais intervenções ficaram em acta. Destacam-se, no entanto, as sete declarações «brilhantes» de Joel Hasse Ferreira, do PS: duas vezes dizendo-se «bem lembrado», outras três «muito bem», outra ainda «muito mal» e, finalmente, «claro como a água». Turva como certas águas, foi a votação final: PS, PCP e Verdes a favor da revogação, PSD absteve-se e só o PP votou contra. Lido e relido o «Diário da Assembleia da República» - um exercício que todos os cidadãos deveriam fazer de vez em quando, e basta pedi-lo pela Internet -, encontrou-se apenas um deputado a invocar valores públicos nacionais de ordenamento territorial, de planeamento estratégico do país e de sanidade governativa. Foi, surpreendentemente, diga-se, o deputado Kruz Abecasis, talvez para se penitenciar dos caminhos por onde meteu o Município de Lisboa quando dele foi presidente. A frase que utilizou é quase absurda pela evidência que proclama: «Uma ponte é uma veia por onde passa o desenvolvimento (...), o problema não é do Montijo e de Alcochete, é de uma região inteira, a norte e a sul do Tejo (...), criemos um projecto de desenvolvimento para esta grande zona de Portugal e pensemos que é a última vez que temos oportunidade de fazê-lo», acabando com um «não brinquemos com coisas sérias». Lançado aos leões

Confirma-se o que se temia de pior: que a Ponte Vasco da Gama sempre esteve pendurada num projecto de especulação urbana

Há 40 anos que toda a gente protesta contra a assimetria do ordenamento territorial português. Há quatro anos levantaram-se os maiores clamores contra a construção de uma ponte às cavalitas de uma reserva natural. Escassos meses depois de se ter dito que as decisões governativas deste país pareciam estar a reboque das imobiliárias, confirma-se o que se temia de pior. A saber: que a Ponte Vasco da Gama sempre esteve pendurada num projecto de especulação urbana, tal como foi dito e redito milhares de vezes por críticos de todos os quadrantes políticos e científicos. Só para citar alguns nomes: desde Carlos Pimenta a Oliveira Martins, passando por Fonseca Ferreira, Jorge Gaspar, Ribeiro Telles, Valente de Oliveira, Fernando Nunes da Silva. Fernando Catarino. Cite-se, por exemplo, Carlos Pimenta, em 1995: «Uma das razões principais para a opção da ponte do Montijo são os negócios: porque aqueles terrenos são 'lombo' para a especulação imobiliária». Ou Oliveira Martins, ex-ministro das Obras Públicas do 1º Governo de Cavaco Silva: «Com esta ponte, não há nem ordenamento do território nem eficiência do sistema de transportes que resistam! (...) e vai agravar-se o efeito de dormitório de novos aglomerados à volta de Lisboa». Ou Nunes da Silva: «Vai assistir-se a uma nova Odivelas ou Reboleira, ainda por cima numa das zonas mais preservadas do estuário do Tejo» Era óbvio que uma das principais razões que levaram Ferreira do Amaral a preferir a ponte no Montijo à ponte no Barreiro era a diferença que existe entre terrenos livres para prédios e zonas já urbanizadas. Tudo isto era tão óbvio que o Governo de então achou recomendável, por uma questão de decoro, jurar, beijando os dedos em cruz, que toda a área circundante dos acessos à nova ponte seria acautelada por regras draconianas. Não havia uma única experiência anterior que nos levasse a ter confiança em tais juras. Pior ainda, foi-se tornando mais evidente que o celebrado Planeamento e Ordenamento do Território não passa de uma espécie de «gorila de discoteca»: um bruto interposto entre uma desordem lá dentro e uma desordem cá fora. A construção civil é o grande negócio do país. Já se sabe. Desde as grandes empresas de obras públicas ao recurso de sobrevivência que é a serventia do pedreiro. Mas há mais. Este lançamento da região-mártir aos leões do circo imobiliário pode ter ainda outra razão. Com o inacreditável acordo assinado entre Ferreira do Amaral e a Lusoponte, para o Estado não ter de vir a pagar indemnizações ao concessionário pela falta de tráfego na Ponte Vasco da Gama, pode haver a necessidade de se promover a urbanização da margem sul para garantir as portagens. Uma ponte para o imobiliário Entre a aprovação da Ponte Vasco da Gama, em Julho de 1992, e a revogação, no mês passado, do decreto que limitava a urbanização desenfreada em seu redor, decorreram apenas 67 meses. Porquê este número e não outro? Porque não 24 horas ou 1001 noites, quando já era óbvio que a travessia do Montijo não passava de uma «ponte» para grandes projectos imobiliários? A razão da conta certa é simples: a ponte está para ser inaugurada em breve e os PDM estão aprovados. O poder, com aquele seu hábito incorrigível de tomar os cidadãos por impreparados, concluiu agora a manobra que lhe faltava para fazer o que estava à vista de toda a gente: abrir à construção civil um vastíssimo escoador de actividades onde todos os princípios de ordenamento do território e protecção ambiental recomendavam cautelas redobradas. Um inquérito recente feito a uma amostra representativa de portugueses mostrava dois factos interessantes: os residentes da Grande Lisboa e Península de Setúbal são os que mais se queixam da desqualificação ambiental em que vivem e são os que mais sentem que tudo piorou nos últimos 10 a 15 anos. Por outro lado, a esmagadora maioria dos portugueses (mais de 90 por cento) acham que onde se vive melhor é no campo, no interior do país, e/ou em vilas ou cidades pequenas - exactamente em oposição aos movimentos migratórios - revelando um grande cansaço face ao modelo suburbano. Que estranha e temível força anda aqui a baralhar os desejos explícitos pela população e a atitude dos seus representantes políticos? Apesar dos erros cometidos, ainda não está tudo perdido. A decisão da revogação do DL 9/93 vai baixar à Comissão do Poder Local da Assembleia da República e esta poderá até suspendê-la. Se o fizer, deverá consagrar as responsabilidades do princípio da subsidiariedade: os concelhos limítrofes da ponte devem ser beneficiados pela não construção suburbana e nunca penalizados. Esse será o lado vantajoso da decisão: o da revelação do interesse nacional. É por isto que se aguarda qualquer comentário do ministro João Cravinho, da ministra Elisa Ferreira e, sobretudo, do primeiro-ministro, António Guterres, que há cerca de um ano declarava ao EXPRESSO com desalento: «Os subúrbios de Lisboa são deprimentes.» Quer repetir os erros? Texto de LUÍSA SCHMIDT com PEDRO VIEIRA

A Assembleia da República, ao revogar um decreto-lei que travava o crescimento suburbano na área de influência da nova ponte sobre o Tejo, acaba de abrir caminho a novos dormitórios na Margem Sul.

NO MÊS passado, a Assembleia da República - que desde Maio de 97 está para discutir e aprovar a Lei de Bases do Ordenamento do Território - aprovou discretamente uma proposta de lei de duas páginas. Tratou-se da revogação de um decreto de 1993, que controlava a construção na área de influência da nova ponte do Montijo. Exibindo a habilidade retórica do costume, os deputados conseguiram a proeza de, invocando uma incoerência jurídica que só agora parece terem descoberto, exigir a sua correcção imediata, não fosse o país sofrer mais 24 horas desse pequeno defeito jurídico. E em que é que consistiu essa correcção que tanto preocupava os representantes da Nação? Na simples eliminação de um Decreto-Lei 9/93, que ajudava a controlar a possibilidade de, em redor da Ponte Vasco da Gama, vir a gerar-se um novo mega-subúrbio, levando ao paroxismo a velha doença da macrocefalia territorial portuguesa. E alegando o quê? Os, aliás saudáveis, princípios de autonomia autárquica. E resultando tudo isto em quê? Na imediata possibilidade de, só pelo cômputo dos recém-nascidos PDM, criarem habitação para mais 100 mil portugueses nos concelhos de Benavente, Alcochete, Montijo e Palmela. Os deputados terão até razão quando alegam que as autarquias com PDM aprovados devem ter competências directas sobre os seus territórios. Mas o que está em causa é o futuro da Área Metropolitana de Lisboa e com ela do país em geral. Mais 100 mil pessoas na zona significará, dentro de alguns anos, a garantia dos mesmos problemas que estão hoje criados na velha ponte sobre o Tejo. Pode assim estar a preparar-se a reedição do fenómeno de Almada, que passou de 70 mil habitantes em 1960 - antes da construção da Ponte 25 de Abril - para os 151 mil em 1991, e que, apesar disto, prevê uma nova duplicação para o ano 2010. Perdido por cem, perdido por mais 100 mil; o mal é (deixar) começar, tal como a droga. Veja-se o caso de Alcochete - o último concelho rural da Área Metropolitana de Lisboa - que delimitou já áreas urbanas que permitirão triplicar a população nos próximos anos. Palmela, por seu lado, delimitou mais 2252 hectares de área urbana para mais 60 mil habitantes, ou seja, mais do dobro da população existente em 91. Até agora, por força do DL 9/93, era obrigatório um parecer prévio vinculativo da Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, tutelada pelo Ministério do Planeamento. Mas, para grandes males, grandes remédios! E se este remédio não é autarquicamente perfeito, permitiu mesmo assim recusar 528 processos dos 3800 analisados. Por que vem então a AR invocar, não sem perversidade, os valores democráticos do poder local para servir de «mula de carga» a manobras imobiliárias duvidosas em termos das mais elementares regras de ordenamento do território? É nisto que ainda estamos e estaremos, enquanto as Lei de Bases do Ordenamento do Território e a das Finanças Locais continuarem a não ter prioridade sobre estas resoluções expeditivas. Será assim enquanto o fulgor autárquico depender das sisas que cobra, enquanto os financiamentos dos partidos permanecerem numa sombra obscura; enquanto o formalismo jurídico algemar com os seus célebres «direitos adquiridos» toda e qualquer intenção governativa que vise corrigir esse que é o mais perene e fatal erro nacional: o desordenamento do território.

Os acessos à Ponte Vasco da Gama não constituem apenas um problema autárquico. O país está crivado de casos que, embora localizados, nada têm a ver com as autarquias. Em todos os concelhos com zonas portuárias, as administrações portuárias é que tomam as decisões com plena à-vontade. Não quer dizer que estes casos sejam todos positivos. Mas mostram bem que a invocação da autonomia do poder autárquico tem limites. E uma ponte é uma obra suficientemente estruturante do ordenamento territorial para que as suas consequências urbanísticas não sejam entregues à decisão local. Ter posto a ponte ali e suspender agora o débil decreto 9/93, é o mesmo que deixar um bolo ao sol sobre a relva: não tarda, estará negro de formigas. Sobretudo quando o instrumento regulador e de planeamento da AML - o PROTAML - continua «engavetado» e o plano nacional de ordenamento do território é apenas uma miragem legislativa. Ao contrário do que alegam os deputados, é nesta fase - com a ponte já construída e sem plano regional aprovado - que todos os cuidados são poucos. O que se esperaria do Parlamento era que reforçasse as medidas de controlo urbanístico, de modo a tornar, como diz a actual presidente da Câmara, «o Montijo na Cascais do século XXI». Por este caminho, talvez se transforme, de facto, em Cascais, mas o das traseiras; o Cascais do Bairro do Fim do Mundo, do Pai do Vento, etc. Esta é uma matéria da exclusiva competência e responsabilidade do Governo. Como compreender então o silêncio do ministro da tutela, João Cravinho, e o da ministra do Ambiente, Elisa Ferreira? Turvas decisões Quanto ao comportamento da Assembleia da República é no mínimo curioso: a quase totalidade das forças políticas representadas, a começar pelo próprio PS - e incluindo o PCP e até mesmo os Verdes -, apoiaram a revogação do DL 9/93! O PSD, responsável em 93 por este decreto, estranhamente absteve-se. Como se absteve ainda Ferreira do Amaral - um dos subscritores deste diploma, enquanto ministro. Mas leia-se o «Diário da Assembleia da República». É esclarecedor: Começou por ser o deputado do PCP Joaquim Matias - porta-voz das autarquias abrangidas - a trazer o assunto à baila, com a história dos PDM aprovados, alegando que o referido DL 9/93 era «desnecessário e lesivo do poder local». Seguiu-se um confuso contra-ataque da deputada do PSD, Lucília Ferra - sem que, no entanto, se ficasse a perceber se era contra ou a favor da revogação. Veio então a terreiro Manuel Jorge Goes, do PS, em apoio às teses do PCP, preocupando-se mais com pormenores jurídicos do que com a matéria a acautelar. De permeio, antes da votação final, poucas mais intervenções ficaram em acta. Destacam-se, no entanto, as sete declarações «brilhantes» de Joel Hasse Ferreira, do PS: duas vezes dizendo-se «bem lembrado», outras três «muito bem», outra ainda «muito mal» e, finalmente, «claro como a água». Turva como certas águas, foi a votação final: PS, PCP e Verdes a favor da revogação, PSD absteve-se e só o PP votou contra. Lido e relido o «Diário da Assembleia da República» - um exercício que todos os cidadãos deveriam fazer de vez em quando, e basta pedi-lo pela Internet -, encontrou-se apenas um deputado a invocar valores públicos nacionais de ordenamento territorial, de planeamento estratégico do país e de sanidade governativa. Foi, surpreendentemente, diga-se, o deputado Kruz Abecasis, talvez para se penitenciar dos caminhos por onde meteu o Município de Lisboa quando dele foi presidente. A frase que utilizou é quase absurda pela evidência que proclama: «Uma ponte é uma veia por onde passa o desenvolvimento (...), o problema não é do Montijo e de Alcochete, é de uma região inteira, a norte e a sul do Tejo (...), criemos um projecto de desenvolvimento para esta grande zona de Portugal e pensemos que é a última vez que temos oportunidade de fazê-lo», acabando com um «não brinquemos com coisas sérias». Lançado aos leões

Confirma-se o que se temia de pior: que a Ponte Vasco da Gama sempre esteve pendurada num projecto de especulação urbana

Há 40 anos que toda a gente protesta contra a assimetria do ordenamento territorial português. Há quatro anos levantaram-se os maiores clamores contra a construção de uma ponte às cavalitas de uma reserva natural. Escassos meses depois de se ter dito que as decisões governativas deste país pareciam estar a reboque das imobiliárias, confirma-se o que se temia de pior. A saber: que a Ponte Vasco da Gama sempre esteve pendurada num projecto de especulação urbana, tal como foi dito e redito milhares de vezes por críticos de todos os quadrantes políticos e científicos. Só para citar alguns nomes: desde Carlos Pimenta a Oliveira Martins, passando por Fonseca Ferreira, Jorge Gaspar, Ribeiro Telles, Valente de Oliveira, Fernando Nunes da Silva. Fernando Catarino. Cite-se, por exemplo, Carlos Pimenta, em 1995: «Uma das razões principais para a opção da ponte do Montijo são os negócios: porque aqueles terrenos são 'lombo' para a especulação imobiliária». Ou Oliveira Martins, ex-ministro das Obras Públicas do 1º Governo de Cavaco Silva: «Com esta ponte, não há nem ordenamento do território nem eficiência do sistema de transportes que resistam! (...) e vai agravar-se o efeito de dormitório de novos aglomerados à volta de Lisboa». Ou Nunes da Silva: «Vai assistir-se a uma nova Odivelas ou Reboleira, ainda por cima numa das zonas mais preservadas do estuário do Tejo» Era óbvio que uma das principais razões que levaram Ferreira do Amaral a preferir a ponte no Montijo à ponte no Barreiro era a diferença que existe entre terrenos livres para prédios e zonas já urbanizadas. Tudo isto era tão óbvio que o Governo de então achou recomendável, por uma questão de decoro, jurar, beijando os dedos em cruz, que toda a área circundante dos acessos à nova ponte seria acautelada por regras draconianas. Não havia uma única experiência anterior que nos levasse a ter confiança em tais juras. Pior ainda, foi-se tornando mais evidente que o celebrado Planeamento e Ordenamento do Território não passa de uma espécie de «gorila de discoteca»: um bruto interposto entre uma desordem lá dentro e uma desordem cá fora. A construção civil é o grande negócio do país. Já se sabe. Desde as grandes empresas de obras públicas ao recurso de sobrevivência que é a serventia do pedreiro. Mas há mais. Este lançamento da região-mártir aos leões do circo imobiliário pode ter ainda outra razão. Com o inacreditável acordo assinado entre Ferreira do Amaral e a Lusoponte, para o Estado não ter de vir a pagar indemnizações ao concessionário pela falta de tráfego na Ponte Vasco da Gama, pode haver a necessidade de se promover a urbanização da margem sul para garantir as portagens. Uma ponte para o imobiliário Entre a aprovação da Ponte Vasco da Gama, em Julho de 1992, e a revogação, no mês passado, do decreto que limitava a urbanização desenfreada em seu redor, decorreram apenas 67 meses. Porquê este número e não outro? Porque não 24 horas ou 1001 noites, quando já era óbvio que a travessia do Montijo não passava de uma «ponte» para grandes projectos imobiliários? A razão da conta certa é simples: a ponte está para ser inaugurada em breve e os PDM estão aprovados. O poder, com aquele seu hábito incorrigível de tomar os cidadãos por impreparados, concluiu agora a manobra que lhe faltava para fazer o que estava à vista de toda a gente: abrir à construção civil um vastíssimo escoador de actividades onde todos os princípios de ordenamento do território e protecção ambiental recomendavam cautelas redobradas. Um inquérito recente feito a uma amostra representativa de portugueses mostrava dois factos interessantes: os residentes da Grande Lisboa e Península de Setúbal são os que mais se queixam da desqualificação ambiental em que vivem e são os que mais sentem que tudo piorou nos últimos 10 a 15 anos. Por outro lado, a esmagadora maioria dos portugueses (mais de 90 por cento) acham que onde se vive melhor é no campo, no interior do país, e/ou em vilas ou cidades pequenas - exactamente em oposição aos movimentos migratórios - revelando um grande cansaço face ao modelo suburbano. Que estranha e temível força anda aqui a baralhar os desejos explícitos pela população e a atitude dos seus representantes políticos? Apesar dos erros cometidos, ainda não está tudo perdido. A decisão da revogação do DL 9/93 vai baixar à Comissão do Poder Local da Assembleia da República e esta poderá até suspendê-la. Se o fizer, deverá consagrar as responsabilidades do princípio da subsidiariedade: os concelhos limítrofes da ponte devem ser beneficiados pela não construção suburbana e nunca penalizados. Esse será o lado vantajoso da decisão: o da revelação do interesse nacional. É por isto que se aguarda qualquer comentário do ministro João Cravinho, da ministra Elisa Ferreira e, sobretudo, do primeiro-ministro, António Guterres, que há cerca de um ano declarava ao EXPRESSO com desalento: «Os subúrbios de Lisboa são deprimentes.» Quer repetir os erros? Texto de LUÍSA SCHMIDT com PEDRO VIEIRA

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