Entrevista com João Amaral

20-07-1997
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EM FOCO

A crise na PSP e as grandes opções de segurança interna

Democratizar é urgente

Entrevista com João Amaral

Discute-se hoje no plenário da AR um projecto-lei do PCP sobre grandes opções em matéria de segurança interna. Agendado antes da interrupção dos trabalhos no período natalício, o projecto comunista procura responder a preocupações dos cidadãos que, não sendo apenas de hoje, ganharam nos últimos tempos maior projecção pública.

Colocámos a João Amaral, deputado comunista e membro do Comité Central do Partido, que acompanha de perto estas matérias, algumas questões acerca do actual momento que se vive no País, das alterações recentes na PSP e da segurança dos cidadãos num Estado democrático. Sublinhando a oportunidade do debate suscitado pela iniciativa do Grupo Parlamentar do PCP, João Amaral coloca o acento na necessidade de proceder urgentemente a uma profunda alteração que dê à política de segurança interna e às forças policiais as características próprias de um Estado democrático de Direito.

«Avante!»: Há motivos para ter hoje uma maior preocupação que antes quanto aos problemas da segurança interna?

João Amaral: Existe há muito um claro fosso entre os cidadãos e os corpos de polícia, que deriva das orientações de política de segurança interna e do enquadramento fortemente militarista que é dado às polícias. A militarização de um corpo policial leva a que ele seja encarado como uma unidade de combate, desligada da população. Ora a polícia não está em estado de guerra contra a sociedade e os cidadãos. A polícia está com os cidadãos a assegurar a tranquilidade, a prevenir o crime e a combatê-lo, mas não está em guerra. Uma força militar prepara-se para combater inimigos, enquanto uma força de segurança vive com os cidadãos para resolver os problemas do dia-a-dia.

A que se deve a crise vivida na Polícia?

O que se passou nestes dias é o resultado da política seguida pelo PSD, que acentuou a militarização, e do facto de, contra as expectativas e promessas, o PS não ter mudado essas orientações.

Isto que se deu agora podia ter-se dado noutra altura. É, de alguma forma, a expressão pública de uma falta de entendimento entre os cidadãos e a polícia e da falta de uma perspectiva correcta para a actuação das forças policiais.

Esta foi, de facto, a crise de um modelo de polícia. Foi posto em questão o modelo, seguido em Portugal, de enquadramento, de estatuto, de organização da principal força de segurança, a PSP, que tem a responsabilidade das zonas urbanas e um maior contacto com a população.

Toda a discussão em torno desta problemática deve ter como finalidade última garantir a segurança pública e a tranquilidade dos cidadãos e a prevenção da criminalidade — é este o primeiro valor a ter em conta. Mas um valor de igual peso é o respeito de um conjunto de regras democráticas.

A mudança de chefia na PSP é uma medida finalmente positiva do ministro Alberto Costa e do Governo nesta área?

O que tem real significado não é a mudança de nomes, é o facto de finalmente deixar de ser um militar a ter o comando superior da PSP. Esta é uma efectiva mudança e uma medida que já deveria ter sido tomada. Este atraso dificultou um conjunto de medidas necessárias para dar a desejada natureza civil à PSP — natureza civil pela qual o PCP há muito se bate.

O PS, na sua campanha, e o Governo, no seu programa, assumiram o compromisso de trabalhar para uma desmilitarização da PSP, mas a política de segurança interna do Governo PS, na prática, tem-se traduzido na continuidade da política do PSD, porque tem sido marcada por hesitações e contradições permanentes.

Por exemplo?

Um exemplo foi a aprovação de um decreto-lei, logo no começo do mandato, dizendo que a PSP pode ser dirigida por um civil, logo seguida da nomeação de um militar para comandante-geral.

Outro: o Governo mandou encerrar alguns processos disciplinares a dirigentes da ASPP (não todos, ainda há processos que não estão encerrados), mas continuam a ser aplicadas punições.

Os dirigentes socialistas falaram contra as super-esquadras e o Governo até reabriu algumas esquadras, mas no fundo não tocou nas super-esquadras que já estavam constituídas.

O Governo e o PS mantiveram e defendem o estatuto de corpo militar da GNR.

No caso de Santo Tirso, quando a polícia carregou sobre trabalhadores, o Governo acabou por não levar à prática nenhuma das recomendações do Provedor de Justiça (aliás, o general Gabriel Teixeira, agora substituído, disse então claramente que não as cumpriria).

Quando da posse deste general, os superintendentes faltaram colectivamente à cerimónia (à excepção do oficial agora nomeado para comandante-geral da PSP) e o ministro deixou esta quartelada sem resposta.

E que se pode esperar a partir de agora?

A posição do Governo e do PS só pode ser avaliada pelos actos.

Vamos ver se a nomeação de um não militar para o comando-geral da PSP corresponde ou não a uma real mudança. Nós vamos fazer tudo para isso — e essa é a utilidade deste debate no Parlamento: definir as mudanças que devem ser feitas para criar um clima de segurança, melhores condições para o exercício das funções policiais, maior capacidade e eficácia no combate ao crime e na prevenção, maior aproximação entre a polícia e os cidadãos.

O comandante anterior era um general do exército em comissão de serviço. O facto de agora estar à frente da PSP uma pessoa que não é militar só ganhará significado se for acompanhado de todas as outras medidas para acentuar uma natureza civilista da PSP.

Em que se traduz essa «civilização» da Polícia?

A PSP tem que ser profundamente transformada na sua forma de organização, tem que ser uma polícia de proximidade, tem que ser abandonada a política das super-esquadras. No que toca ao estatuto dos seus membros, é necessário reconhecer a sua plena cidadania e, portanto, o direito de sindicalização.

É isso que o PCP pretende com o seu projecto-lei?

Este projecto-lei tem um âmbito muito vasto. Visa, em primeiro lugar, alterar a Lei de Segurança Interna, atribuindo à AR competência para aprovar uma lei de Grandes Opções da Política de Segurança Interna. Em segundo lugar, apresenta, desde logo e em sequência, um conjunto de propostas do PCP sobre grandes opções em matéria de política de segurança interna.

Quanto a nós, a segurança dos cidadãos deve ser feita por uma polícia de proximidade, ligada aos cidadãos, e não por uma polícia concentrada em grandes super-esquadras e afastada dos cidadãos e com um peso fundamentalmente repressivo. A nossa ideia é justamente, pelo contrário, acentuar o carácter de polícia de prevenção.

A própria população deve participar no equacionar dos problemas de segurança, através dos conselhos municipais de segurança — órgãos que constam de uma proposta apresentada pelo PCP, aprovada na generalidade há quase um ano mas que, lamentavelmente, por falta de vontade política do PS, ainda não foi transformada em lei.

As forças de segurança, no espírito que presidiu à apresentação do projecto-lei, devem ser marcadas, na sua acção, pela proximidade dos cidadãos, pelo respeito dos princípios do Estado de Direito, das liberdades e dos direitos fundamentais, e por uma acção cívica permanente de prevenção no combate ao crime.

Faz sentido defender uma polícia com menor acento repressivo no actual contexto?

Evidentemente que esta mudança de política está atrasada e teria sido feita em muito melhores condições logo após as eleições, quando o povo português demonstrou a sua vontade de mudança. Todo este tempo que passou foi mal gasto e traz novas dificuldades ao processo, mas também o torna mais necessário.

Hoje há, por parte das populações, sentimentos muito grandes de insegurança, de incapacidade das forças de segurança, de afastamento. Corrigir isto é urgentíssimo. É difícil, seguramente, mas é preciso mudar de política, definir claramente orientações e possuindo a força e a vontade para prosseguir essas orientações.

No conceito de polícia mais próxima das populações, defendido pelo PCP, cabe algum tipo de colaboração com estruturas como as chamadas milícias populares que surgiram nalgumas localidades?

Pensamos que é importante a participação das populações na definição da política de segurança. Mas deve ser feita através dos conselhos municipais de segurança, estruturas que nós propomos e onde têm assento as autarquias, as forças policiais, os representantes das escolas, das associações sindicais e empresariais, dos movimentos de juventude, das associações culturais e recreativas... aquilo que se pode chamar as entidades actuantes num determinado município, que em conjunto analisam e dão opiniões acerca da forma de concretizar uma melhor segurança.

No regime democrático português, a política de segurança interna é uma política de natureza pública e da responsabilidade do Governo e das forças policiais. Propomos que seja a AR a definir as grandes orientações, mas é o Governo quem tem a responsabilidade superior da política de segurança interna e são as forças policiais que a executam no terreno, com responsabilidade e respondendo perante os tribunais. Nunca, portanto, as «milícias populares».

E como deve ser regulada a utilização da força pelos agentes policiais?

As forças policiais devem ter uma natureza eminentemente civilista, com regras de conduta concretamente definidas, abrangendo nomeadamente o uso da força e particularmente o uso de armas de fogo, que deve ser fortemente restringido.

O uso de armas de fogo por agentes de autoridade é hoje objecto de uma resolução das próprias Nações Unidas, que tem por título «Princípios básicos sobre a utilização da força e de armas de fogo por funcionários responsáveis pela aplicação da Lei», aprovada pelo 8º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes. No que toca à utilização das armas de fogo, esta resolução estabelece o princípio de que não deve ser feito uso da arma de fogo contra pessoas; depois, são apontadas as excepções: em caso de legítima defesa ou defesa de terceiros contra perigo iminente de morte ou lesão grave, para prevenir um crime particularmente grave que ameace vidas humanas, para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e resista à autoridade.

O uso de armas de fogo contra pessoas só é admissível se se destina a salvaguardar outras vidas. O valor da vida é inestimável. Temos uma tradição de respeito pelo direito à vida que tem sido ensombrada, precisamente, com as debilidades da política de segurança interna.

O debate suscitado na AR pelo projecto de lei do PCP poderá alterar o presente quadro?

Vem suscitar uma discussão que é muito oportuna. As questões até agora referidas inserem-se numa parte do problema, que é a organização das forças de segurança e o seu estatuto. Mas o nosso projecto põe em cima da mesa todas as rubricas fundamentais do dossier segurança interna, nomeadamente aquilo que são as suas grandes orientações. É preciso que, agora, todas estas questões sejam inseridas nos objectivos gerais da política de segurança interna.

Definindo como missão assegurar a tranquilidade e a defesa dos cidadãos, a política de segurança interna não pode ser um factor de insegurança e intranquilidade; tem que, ela própria, obedecer às mesmas regras que propugna e ser ela própria uma política de tranquilidade e segurança, e tem de ser uma política de respeito pelas regras democráticas.

Esta é a altura certa para fazer o debate sobre as grandes orientações a seguir, aquilo que melhor pode assegurar a prevenção e o combate ao crime, a tranquilidade das populações, o correcto relacionamento das forças policiais com os cidadãos e com o Estado democrático. E é altura de apurar responsabilidades, de ver que políticas e que governos conduziram à actual situação de insegurança, que é real.

Que outros aspectos do problema, para além da organização das forças de segurança, são suscitados pelo Partido?

Não se podem esquecer duas considerações centrais.

A primeira, é que não há efectiva política de segurança interna se não houver uma política de bem-estar e de qualidade de vida, se não houver emprego e melhoria das condições de vida das pessoas; não é que estes factores resolvam, por si, o problema do crime, mas o problema do crime não se pode resolver sem solucionar simultaneamente aqueles problemas e sem estimular na sociedade valores de solidariedade, compreensão e humanismo.

Em segundo lugar, há que proceder a uma reforma da Justiça que a torne célere. O grande problema na relação entre as forças de segurança e os tribunais resulta da morosidade dos processos, devida a códigos mal feitos, ausência de meios... As responsabilidades são vastas. Mas este problema tem que ser resolvido. Tem que mediar muito menos tempo entre a prática do crime e o julgamento e eventual punição.

O que distingue as posições dos demais partidos sobre a matéria? Há uma proximidade nos princípios defendidos pelo PCP e pelo PS, nomeadamente?

Há claras diferenças de modelo e objectivos da política de segurança interna. Nós colocamos a tónica na prevenção do crime, na proximidade dos cidadãos, no respeito pelos direitos, no cunho civilista das forças de segurança.

O PP, no extremo oposto, quer polícia militarizada e assume-se como o partido da repressão. O CDS/PP é o partido cuja filosofia de segurança interna se resume a «repressão, repressão, repressão».

Quanto ao PS, é bom recordar que, nos debates que houve em 1984 sobre a Lei de Segurança Interna, muitos membros do Partido Socialista defenderam uma legislação fortemente repressiva e antidemocrática — no que tiveram forte oposição, incluindo de outros socialistas.

As ideias políticas, no caso do Governo do PS, avaliam-se por aquilo que ele fizer, como já disse: se passar finalmente à prática estes princípios, teremos que reconhecer que o PS procedeu a essa mudança, como prometeu; se o não fizer, não cumpre o prometido.

Quanto ao PSD, há que ter presente que uma das políticas que mais fortemente o conduziu à derrota nas últimas legislativas foi precisamente a política de segurança interna. A escalada de insegurança, os choques entre a polícia e os cidadãos marcaram fortemente a carga de autoritarismo antidemocrático do PSD. E esta continua a ser a ideia de segurança interna do PSD.

É assim que interpretas as críticas do PSD relativamente aos acontecimentos mais recentes?

Têm muita graça as críticas que o PSD hoje faz, porque na realidade são autocríticas.

Quem deu a voz pelo PSD foi o antigo secretário de Estado do Governo de Cavaco Silva, que aplicou com o ministro Dias Loureiro a política das super-esquadras, a política das restrições orçamentais, a política da polícia repressiva, que atingiu os seus máximos nos casos da Marinha Grande, da Ponte 25 de Abril e na repressão contra as manifestações dos estudantes. Esta era a política de segurança interna do PSD: uma polícia afastada dos cidadãos, pronta para a repressão, concentrada em super-esquadras. Foi esta política que, apesar das promessas, o PS não mudou no essencial.

Mas houve alterações?

Há aspectos em que houve mudança. Por exemplo, a nomeação de um inspector-geral foi, seguramente, um factor de alteração em relação à política anterior, tal como o foram algumas declarações do ministro, que pareciam indiciar um estilo diferente.

Só que, passando das palavras aos actos, não se verificou qualquer mudança: a PSP mantinha-se militarizada, as super-esquadras mantiveram-se, o estilo repressivo manteve-se (como se viu no caso de Santo Tirso, em que a polícia, por sua iniciativa, agride logo os trabalhadores)... Aquilo que era uma promessa não se estava a cumprir. Até há escassos dias, em matéria de segurança interna, tem sido prosseguida a política do PSD. A primeira novidade é a mudança de comandante-geral. Agora, vamos ver se serão concretizadas as alterações.

"A sindicalização

é um direito fundamental"

No decurso da entrevista, o "Avante!" quis ouvir João Amaral acerca de uma questão que tem sido objecto de larga controvérsia: o reconhecimento do direito de associação sindical na PSP pode ser visto como um factor de instabilidade, depois dos protestos que se seguiram à prisão de um guarda decretada pelo tribunal de Évora?

Eis a resposta:

"Essas movimentações resultam muito mais da natureza militarizada que hoje tem a PSP do que de uma sua natureza cívica, são manifestações do chamado «espírito de corpo», que é típico de uma organização militarizada. Do que estamos a falar, quando se fala do direito de constituição de sindicatos, é do exercício consciente dos direitos fundamentais, é do exercício de um direito fundamental como é o direito à sindicalização.

Quem diz que os agentes policiais em Portugal, com um sindicato, não cumpririam a sua missão de segurança, passa-lhes um triste atestado de irresponsabilidade. A nossa convicção é que os agentes da polícia, enquadrados numa polícia de cariz civilista, são cidadãos responsáveis e completamente aptos, como todos os outros, a exercer plenamente os seus direitos.

É um completo disparate dizer-se que os polícias, com um sindicato, poderiam fazer uso do direito à greve e não cumpririam a sua missão de segurança. Em primeiro lugar, não é forçoso, nesta fase, que o direito de greve seja reconhecido, pode haver associação sindical com direito de negociação e haver uma limitação no que toca ao exercício do direito de greve. Se se admitir o direito de greve, ele terá, naturalmente, limites e nunca poderia ser exercido em prejuízo da função essencial de segurança, não poderia pôr em causa o policiamento ou o combate ao crime, teriam que ser assegurados serviços essenciais.

Há sindicatos de polícias em todos os países da União Europeia, à excepção da Grécia. Nalguns países há direito de greve, que é exercido relativamente a pagamento e passagem de multas e outras actividades que não têm a ver directamente com a segurança dos cidadãos. Há associações sindicais também na Polícia Judiciária portuguesa, com todos os direitos.

Do ponto de vista do PCP é essencial o direito de constituição do sindicato. Não fazemos questão, nesta fase, de que seja reconhecido o direito à greve. Mas, sublinho, se fosse reconhecido, não cairia o Carmo e a Trindade, não iria deixar de ser garantida a segurança dos cidadãos."

EM FOCO

A crise na PSP e as grandes opções de segurança interna

Democratizar é urgente

Entrevista com João Amaral

Discute-se hoje no plenário da AR um projecto-lei do PCP sobre grandes opções em matéria de segurança interna. Agendado antes da interrupção dos trabalhos no período natalício, o projecto comunista procura responder a preocupações dos cidadãos que, não sendo apenas de hoje, ganharam nos últimos tempos maior projecção pública.

Colocámos a João Amaral, deputado comunista e membro do Comité Central do Partido, que acompanha de perto estas matérias, algumas questões acerca do actual momento que se vive no País, das alterações recentes na PSP e da segurança dos cidadãos num Estado democrático. Sublinhando a oportunidade do debate suscitado pela iniciativa do Grupo Parlamentar do PCP, João Amaral coloca o acento na necessidade de proceder urgentemente a uma profunda alteração que dê à política de segurança interna e às forças policiais as características próprias de um Estado democrático de Direito.

«Avante!»: Há motivos para ter hoje uma maior preocupação que antes quanto aos problemas da segurança interna?

João Amaral: Existe há muito um claro fosso entre os cidadãos e os corpos de polícia, que deriva das orientações de política de segurança interna e do enquadramento fortemente militarista que é dado às polícias. A militarização de um corpo policial leva a que ele seja encarado como uma unidade de combate, desligada da população. Ora a polícia não está em estado de guerra contra a sociedade e os cidadãos. A polícia está com os cidadãos a assegurar a tranquilidade, a prevenir o crime e a combatê-lo, mas não está em guerra. Uma força militar prepara-se para combater inimigos, enquanto uma força de segurança vive com os cidadãos para resolver os problemas do dia-a-dia.

A que se deve a crise vivida na Polícia?

O que se passou nestes dias é o resultado da política seguida pelo PSD, que acentuou a militarização, e do facto de, contra as expectativas e promessas, o PS não ter mudado essas orientações.

Isto que se deu agora podia ter-se dado noutra altura. É, de alguma forma, a expressão pública de uma falta de entendimento entre os cidadãos e a polícia e da falta de uma perspectiva correcta para a actuação das forças policiais.

Esta foi, de facto, a crise de um modelo de polícia. Foi posto em questão o modelo, seguido em Portugal, de enquadramento, de estatuto, de organização da principal força de segurança, a PSP, que tem a responsabilidade das zonas urbanas e um maior contacto com a população.

Toda a discussão em torno desta problemática deve ter como finalidade última garantir a segurança pública e a tranquilidade dos cidadãos e a prevenção da criminalidade — é este o primeiro valor a ter em conta. Mas um valor de igual peso é o respeito de um conjunto de regras democráticas.

A mudança de chefia na PSP é uma medida finalmente positiva do ministro Alberto Costa e do Governo nesta área?

O que tem real significado não é a mudança de nomes, é o facto de finalmente deixar de ser um militar a ter o comando superior da PSP. Esta é uma efectiva mudança e uma medida que já deveria ter sido tomada. Este atraso dificultou um conjunto de medidas necessárias para dar a desejada natureza civil à PSP — natureza civil pela qual o PCP há muito se bate.

O PS, na sua campanha, e o Governo, no seu programa, assumiram o compromisso de trabalhar para uma desmilitarização da PSP, mas a política de segurança interna do Governo PS, na prática, tem-se traduzido na continuidade da política do PSD, porque tem sido marcada por hesitações e contradições permanentes.

Por exemplo?

Um exemplo foi a aprovação de um decreto-lei, logo no começo do mandato, dizendo que a PSP pode ser dirigida por um civil, logo seguida da nomeação de um militar para comandante-geral.

Outro: o Governo mandou encerrar alguns processos disciplinares a dirigentes da ASPP (não todos, ainda há processos que não estão encerrados), mas continuam a ser aplicadas punições.

Os dirigentes socialistas falaram contra as super-esquadras e o Governo até reabriu algumas esquadras, mas no fundo não tocou nas super-esquadras que já estavam constituídas.

O Governo e o PS mantiveram e defendem o estatuto de corpo militar da GNR.

No caso de Santo Tirso, quando a polícia carregou sobre trabalhadores, o Governo acabou por não levar à prática nenhuma das recomendações do Provedor de Justiça (aliás, o general Gabriel Teixeira, agora substituído, disse então claramente que não as cumpriria).

Quando da posse deste general, os superintendentes faltaram colectivamente à cerimónia (à excepção do oficial agora nomeado para comandante-geral da PSP) e o ministro deixou esta quartelada sem resposta.

E que se pode esperar a partir de agora?

A posição do Governo e do PS só pode ser avaliada pelos actos.

Vamos ver se a nomeação de um não militar para o comando-geral da PSP corresponde ou não a uma real mudança. Nós vamos fazer tudo para isso — e essa é a utilidade deste debate no Parlamento: definir as mudanças que devem ser feitas para criar um clima de segurança, melhores condições para o exercício das funções policiais, maior capacidade e eficácia no combate ao crime e na prevenção, maior aproximação entre a polícia e os cidadãos.

O comandante anterior era um general do exército em comissão de serviço. O facto de agora estar à frente da PSP uma pessoa que não é militar só ganhará significado se for acompanhado de todas as outras medidas para acentuar uma natureza civilista da PSP.

Em que se traduz essa «civilização» da Polícia?

A PSP tem que ser profundamente transformada na sua forma de organização, tem que ser uma polícia de proximidade, tem que ser abandonada a política das super-esquadras. No que toca ao estatuto dos seus membros, é necessário reconhecer a sua plena cidadania e, portanto, o direito de sindicalização.

É isso que o PCP pretende com o seu projecto-lei?

Este projecto-lei tem um âmbito muito vasto. Visa, em primeiro lugar, alterar a Lei de Segurança Interna, atribuindo à AR competência para aprovar uma lei de Grandes Opções da Política de Segurança Interna. Em segundo lugar, apresenta, desde logo e em sequência, um conjunto de propostas do PCP sobre grandes opções em matéria de política de segurança interna.

Quanto a nós, a segurança dos cidadãos deve ser feita por uma polícia de proximidade, ligada aos cidadãos, e não por uma polícia concentrada em grandes super-esquadras e afastada dos cidadãos e com um peso fundamentalmente repressivo. A nossa ideia é justamente, pelo contrário, acentuar o carácter de polícia de prevenção.

A própria população deve participar no equacionar dos problemas de segurança, através dos conselhos municipais de segurança — órgãos que constam de uma proposta apresentada pelo PCP, aprovada na generalidade há quase um ano mas que, lamentavelmente, por falta de vontade política do PS, ainda não foi transformada em lei.

As forças de segurança, no espírito que presidiu à apresentação do projecto-lei, devem ser marcadas, na sua acção, pela proximidade dos cidadãos, pelo respeito dos princípios do Estado de Direito, das liberdades e dos direitos fundamentais, e por uma acção cívica permanente de prevenção no combate ao crime.

Faz sentido defender uma polícia com menor acento repressivo no actual contexto?

Evidentemente que esta mudança de política está atrasada e teria sido feita em muito melhores condições logo após as eleições, quando o povo português demonstrou a sua vontade de mudança. Todo este tempo que passou foi mal gasto e traz novas dificuldades ao processo, mas também o torna mais necessário.

Hoje há, por parte das populações, sentimentos muito grandes de insegurança, de incapacidade das forças de segurança, de afastamento. Corrigir isto é urgentíssimo. É difícil, seguramente, mas é preciso mudar de política, definir claramente orientações e possuindo a força e a vontade para prosseguir essas orientações.

No conceito de polícia mais próxima das populações, defendido pelo PCP, cabe algum tipo de colaboração com estruturas como as chamadas milícias populares que surgiram nalgumas localidades?

Pensamos que é importante a participação das populações na definição da política de segurança. Mas deve ser feita através dos conselhos municipais de segurança, estruturas que nós propomos e onde têm assento as autarquias, as forças policiais, os representantes das escolas, das associações sindicais e empresariais, dos movimentos de juventude, das associações culturais e recreativas... aquilo que se pode chamar as entidades actuantes num determinado município, que em conjunto analisam e dão opiniões acerca da forma de concretizar uma melhor segurança.

No regime democrático português, a política de segurança interna é uma política de natureza pública e da responsabilidade do Governo e das forças policiais. Propomos que seja a AR a definir as grandes orientações, mas é o Governo quem tem a responsabilidade superior da política de segurança interna e são as forças policiais que a executam no terreno, com responsabilidade e respondendo perante os tribunais. Nunca, portanto, as «milícias populares».

E como deve ser regulada a utilização da força pelos agentes policiais?

As forças policiais devem ter uma natureza eminentemente civilista, com regras de conduta concretamente definidas, abrangendo nomeadamente o uso da força e particularmente o uso de armas de fogo, que deve ser fortemente restringido.

O uso de armas de fogo por agentes de autoridade é hoje objecto de uma resolução das próprias Nações Unidas, que tem por título «Princípios básicos sobre a utilização da força e de armas de fogo por funcionários responsáveis pela aplicação da Lei», aprovada pelo 8º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes. No que toca à utilização das armas de fogo, esta resolução estabelece o princípio de que não deve ser feito uso da arma de fogo contra pessoas; depois, são apontadas as excepções: em caso de legítima defesa ou defesa de terceiros contra perigo iminente de morte ou lesão grave, para prevenir um crime particularmente grave que ameace vidas humanas, para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e resista à autoridade.

O uso de armas de fogo contra pessoas só é admissível se se destina a salvaguardar outras vidas. O valor da vida é inestimável. Temos uma tradição de respeito pelo direito à vida que tem sido ensombrada, precisamente, com as debilidades da política de segurança interna.

O debate suscitado na AR pelo projecto de lei do PCP poderá alterar o presente quadro?

Vem suscitar uma discussão que é muito oportuna. As questões até agora referidas inserem-se numa parte do problema, que é a organização das forças de segurança e o seu estatuto. Mas o nosso projecto põe em cima da mesa todas as rubricas fundamentais do dossier segurança interna, nomeadamente aquilo que são as suas grandes orientações. É preciso que, agora, todas estas questões sejam inseridas nos objectivos gerais da política de segurança interna.

Definindo como missão assegurar a tranquilidade e a defesa dos cidadãos, a política de segurança interna não pode ser um factor de insegurança e intranquilidade; tem que, ela própria, obedecer às mesmas regras que propugna e ser ela própria uma política de tranquilidade e segurança, e tem de ser uma política de respeito pelas regras democráticas.

Esta é a altura certa para fazer o debate sobre as grandes orientações a seguir, aquilo que melhor pode assegurar a prevenção e o combate ao crime, a tranquilidade das populações, o correcto relacionamento das forças policiais com os cidadãos e com o Estado democrático. E é altura de apurar responsabilidades, de ver que políticas e que governos conduziram à actual situação de insegurança, que é real.

Que outros aspectos do problema, para além da organização das forças de segurança, são suscitados pelo Partido?

Não se podem esquecer duas considerações centrais.

A primeira, é que não há efectiva política de segurança interna se não houver uma política de bem-estar e de qualidade de vida, se não houver emprego e melhoria das condições de vida das pessoas; não é que estes factores resolvam, por si, o problema do crime, mas o problema do crime não se pode resolver sem solucionar simultaneamente aqueles problemas e sem estimular na sociedade valores de solidariedade, compreensão e humanismo.

Em segundo lugar, há que proceder a uma reforma da Justiça que a torne célere. O grande problema na relação entre as forças de segurança e os tribunais resulta da morosidade dos processos, devida a códigos mal feitos, ausência de meios... As responsabilidades são vastas. Mas este problema tem que ser resolvido. Tem que mediar muito menos tempo entre a prática do crime e o julgamento e eventual punição.

O que distingue as posições dos demais partidos sobre a matéria? Há uma proximidade nos princípios defendidos pelo PCP e pelo PS, nomeadamente?

Há claras diferenças de modelo e objectivos da política de segurança interna. Nós colocamos a tónica na prevenção do crime, na proximidade dos cidadãos, no respeito pelos direitos, no cunho civilista das forças de segurança.

O PP, no extremo oposto, quer polícia militarizada e assume-se como o partido da repressão. O CDS/PP é o partido cuja filosofia de segurança interna se resume a «repressão, repressão, repressão».

Quanto ao PS, é bom recordar que, nos debates que houve em 1984 sobre a Lei de Segurança Interna, muitos membros do Partido Socialista defenderam uma legislação fortemente repressiva e antidemocrática — no que tiveram forte oposição, incluindo de outros socialistas.

As ideias políticas, no caso do Governo do PS, avaliam-se por aquilo que ele fizer, como já disse: se passar finalmente à prática estes princípios, teremos que reconhecer que o PS procedeu a essa mudança, como prometeu; se o não fizer, não cumpre o prometido.

Quanto ao PSD, há que ter presente que uma das políticas que mais fortemente o conduziu à derrota nas últimas legislativas foi precisamente a política de segurança interna. A escalada de insegurança, os choques entre a polícia e os cidadãos marcaram fortemente a carga de autoritarismo antidemocrático do PSD. E esta continua a ser a ideia de segurança interna do PSD.

É assim que interpretas as críticas do PSD relativamente aos acontecimentos mais recentes?

Têm muita graça as críticas que o PSD hoje faz, porque na realidade são autocríticas.

Quem deu a voz pelo PSD foi o antigo secretário de Estado do Governo de Cavaco Silva, que aplicou com o ministro Dias Loureiro a política das super-esquadras, a política das restrições orçamentais, a política da polícia repressiva, que atingiu os seus máximos nos casos da Marinha Grande, da Ponte 25 de Abril e na repressão contra as manifestações dos estudantes. Esta era a política de segurança interna do PSD: uma polícia afastada dos cidadãos, pronta para a repressão, concentrada em super-esquadras. Foi esta política que, apesar das promessas, o PS não mudou no essencial.

Mas houve alterações?

Há aspectos em que houve mudança. Por exemplo, a nomeação de um inspector-geral foi, seguramente, um factor de alteração em relação à política anterior, tal como o foram algumas declarações do ministro, que pareciam indiciar um estilo diferente.

Só que, passando das palavras aos actos, não se verificou qualquer mudança: a PSP mantinha-se militarizada, as super-esquadras mantiveram-se, o estilo repressivo manteve-se (como se viu no caso de Santo Tirso, em que a polícia, por sua iniciativa, agride logo os trabalhadores)... Aquilo que era uma promessa não se estava a cumprir. Até há escassos dias, em matéria de segurança interna, tem sido prosseguida a política do PSD. A primeira novidade é a mudança de comandante-geral. Agora, vamos ver se serão concretizadas as alterações.

"A sindicalização

é um direito fundamental"

No decurso da entrevista, o "Avante!" quis ouvir João Amaral acerca de uma questão que tem sido objecto de larga controvérsia: o reconhecimento do direito de associação sindical na PSP pode ser visto como um factor de instabilidade, depois dos protestos que se seguiram à prisão de um guarda decretada pelo tribunal de Évora?

Eis a resposta:

"Essas movimentações resultam muito mais da natureza militarizada que hoje tem a PSP do que de uma sua natureza cívica, são manifestações do chamado «espírito de corpo», que é típico de uma organização militarizada. Do que estamos a falar, quando se fala do direito de constituição de sindicatos, é do exercício consciente dos direitos fundamentais, é do exercício de um direito fundamental como é o direito à sindicalização.

Quem diz que os agentes policiais em Portugal, com um sindicato, não cumpririam a sua missão de segurança, passa-lhes um triste atestado de irresponsabilidade. A nossa convicção é que os agentes da polícia, enquadrados numa polícia de cariz civilista, são cidadãos responsáveis e completamente aptos, como todos os outros, a exercer plenamente os seus direitos.

É um completo disparate dizer-se que os polícias, com um sindicato, poderiam fazer uso do direito à greve e não cumpririam a sua missão de segurança. Em primeiro lugar, não é forçoso, nesta fase, que o direito de greve seja reconhecido, pode haver associação sindical com direito de negociação e haver uma limitação no que toca ao exercício do direito de greve. Se se admitir o direito de greve, ele terá, naturalmente, limites e nunca poderia ser exercido em prejuízo da função essencial de segurança, não poderia pôr em causa o policiamento ou o combate ao crime, teriam que ser assegurados serviços essenciais.

Há sindicatos de polícias em todos os países da União Europeia, à excepção da Grécia. Nalguns países há direito de greve, que é exercido relativamente a pagamento e passagem de multas e outras actividades que não têm a ver directamente com a segurança dos cidadãos. Há associações sindicais também na Polícia Judiciária portuguesa, com todos os direitos.

Do ponto de vista do PCP é essencial o direito de constituição do sindicato. Não fazemos questão, nesta fase, de que seja reconhecido o direito à greve. Mas, sublinho, se fosse reconhecido, não cairia o Carmo e a Trindade, não iria deixar de ser garantida a segurança dos cidadãos."

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