EXPRESSO -

13-09-1999
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«Acho que o 'novo centro' do senhor Gehrard Schroeder é pura gelatina política e que a 'terceira via' do senhor Anthony Giddens é pura brilhantina ideológica.»

A pantera cor-de-rosa

TENHO sobre o presidente russo, Boris Ieltsin, uma ligeira vantagem: se conduzir não bebo e se beber não conduzo - nem um governo, nem uma câmara municipal, nem uma junta de freguesia, nem um automóvel. Mas o presidente Ieltsin tem sobre mim uma enormíssima vantagem: quando conduz vê a triplicar e passa pela «terceira via» como cão por vinha vindimada. Melhor ainda: como o «Ulisses das três bisondas / com as faces ardendo em brasa», que «andava com o cu pelas ondas / como nós por nossa casa». Esta quadra popular, que aprendi em criança com o senhor Furtado de Aljezur, serve bem para dar a justa medida da odisseia de Boris Ieltsin aos comandos da barca russa. É um Ulisses pós-moderno, cujas rosáceas nas bochechas e na ponta do nariz lhe dão um toque de pantera cor-de-rosa. Tenho sobre o presidente norte-americano, Bill Clinton, ligeiríssimas vantagens: sou divorciado, a minha sala de estar é só semi-oval (é mesmo!), não aprecio charutos, não confraternizo com estagiárias e não costumo (nem posso!) mandar bombardear afegãos e sudaneses como forma de retaliação dos meus pecados. Mas o presidente Clinton tem sobre mim enormíssimas vantagens: governa o seu país e o mundo, tem uma grande e paciente mulher por trás de si, é amigo íntimo do senhor Tony Blair e tem uma sala oval para praticar a «terceira via». Apanhado em flagrante pelo senhor Starr, também fica, tal como Ulisses, «com as faces ardendo em brasa», o que lhe dá um inegável toque de pantera cor-de-rosa. Tenho sobre o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, algumas vantagens nada desprezíveis: sou careca e por isso não ando despenteado; uso óculos e por isso não preciso de esgazear os olhos; não sou príncipe encantado, mas acho que Branca de Neve é uma grande espertalhona e que o senhor Anthony Giddens é um dos sete anões. Mas o «honourable» Tony Blair tem sobre mim indiscutíveis vantagens: fala fluentemente inglês, não gosta de Pares do Reino, prefere princesas do povo, é amigo íntimo de Bill Clinton, acredita em tudo o que o senhor Anthony Giddens escreve e acha que, para promover a famosíssima «terceira via», um congresso do New Labour vale bem uma cadeia de supermercados. Quando se põe a falar com aquele ar muito sério e faz todos aqueles esgares perante as câmaras de televisão, fica corado como um bebé, o que lhe dá um inegável toque de pantera cor-de-rosa. Tenho sobre o presidente do Grupo Parlamentar do PS, Francisco de Assis, algumas vantagens consideráveis: já não leio comunicados oficiais, mas continuo a ler Camilo e Eça; acredito no poder regenerador das bibliotecas, mas não acredito em tudo o que está na moda e me dizem que é «politicamente correcto»; acho que o «novo centro» do senhor Gehrard Schroeder é pura gelatina política e que a «terceira via» do senhor Anthony Giddens é pura brilhantina ideológica. Mas, sinceramente, não consigo lobrigar que vantagens poderá ter sobre mim o honorável deputado Francisco de Assis: além da santidade do nome, só lobrigo um pequeno Platão pós-moderno, sem luz nem vida próprias, que se leva completamente a sério (devia reler Voltaire), que acredita em tudo o que o senhor Anthony Giddens escreve e que tem uma fé inabalável no poder regenerador das leituras que estão na moda. De resto, o ardor e a fogosidade com que percorre a «terceira via», em busca de estações de serviço que alimentem filosoficamente a carripana da «nova maioria», fazem-no corar de satisfação, o que também lhe dá (devo reconhecê-lo) um inegável toque de pantera cor-de-rosa. A «terceira via» está na moda. E, por enquanto, não há volta a dar-lhe. Como diria o «distinto sportsman» Dâmaso Salcede (cito o Eça), a «terceira via» é «'chic' a valer». Ou então, como poderia exclamar uma «menina queque» da minha geração, a «terceira via» tem «montes de piada» e «carradas de absolutamente» (depois de Camilo e Eça nunca li mais nada e daí citar uma «menina queque»). O problema é que, como todas as modas pós-modernas, efémeras e sem conteúdo, a «terceira via» corre o risco de prescrever ainda mais depressa do que as famosas fraudes do Fundo Social Europeu. E, como diziam os latinos, «hoc opus hic labor est». Ou, como preferem dizer mais prosaicamente os portugueses, «aqui é que a porca torce o rabo». Mas que digo eu? A porca não! A pantera cor-de-rosa!

«Acho que o 'novo centro' do senhor Gehrard Schroeder é pura gelatina política e que a 'terceira via' do senhor Anthony Giddens é pura brilhantina ideológica.»

A pantera cor-de-rosa

TENHO sobre o presidente russo, Boris Ieltsin, uma ligeira vantagem: se conduzir não bebo e se beber não conduzo - nem um governo, nem uma câmara municipal, nem uma junta de freguesia, nem um automóvel. Mas o presidente Ieltsin tem sobre mim uma enormíssima vantagem: quando conduz vê a triplicar e passa pela «terceira via» como cão por vinha vindimada. Melhor ainda: como o «Ulisses das três bisondas / com as faces ardendo em brasa», que «andava com o cu pelas ondas / como nós por nossa casa». Esta quadra popular, que aprendi em criança com o senhor Furtado de Aljezur, serve bem para dar a justa medida da odisseia de Boris Ieltsin aos comandos da barca russa. É um Ulisses pós-moderno, cujas rosáceas nas bochechas e na ponta do nariz lhe dão um toque de pantera cor-de-rosa. Tenho sobre o presidente norte-americano, Bill Clinton, ligeiríssimas vantagens: sou divorciado, a minha sala de estar é só semi-oval (é mesmo!), não aprecio charutos, não confraternizo com estagiárias e não costumo (nem posso!) mandar bombardear afegãos e sudaneses como forma de retaliação dos meus pecados. Mas o presidente Clinton tem sobre mim enormíssimas vantagens: governa o seu país e o mundo, tem uma grande e paciente mulher por trás de si, é amigo íntimo do senhor Tony Blair e tem uma sala oval para praticar a «terceira via». Apanhado em flagrante pelo senhor Starr, também fica, tal como Ulisses, «com as faces ardendo em brasa», o que lhe dá um inegável toque de pantera cor-de-rosa. Tenho sobre o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, algumas vantagens nada desprezíveis: sou careca e por isso não ando despenteado; uso óculos e por isso não preciso de esgazear os olhos; não sou príncipe encantado, mas acho que Branca de Neve é uma grande espertalhona e que o senhor Anthony Giddens é um dos sete anões. Mas o «honourable» Tony Blair tem sobre mim indiscutíveis vantagens: fala fluentemente inglês, não gosta de Pares do Reino, prefere princesas do povo, é amigo íntimo de Bill Clinton, acredita em tudo o que o senhor Anthony Giddens escreve e acha que, para promover a famosíssima «terceira via», um congresso do New Labour vale bem uma cadeia de supermercados. Quando se põe a falar com aquele ar muito sério e faz todos aqueles esgares perante as câmaras de televisão, fica corado como um bebé, o que lhe dá um inegável toque de pantera cor-de-rosa. Tenho sobre o presidente do Grupo Parlamentar do PS, Francisco de Assis, algumas vantagens consideráveis: já não leio comunicados oficiais, mas continuo a ler Camilo e Eça; acredito no poder regenerador das bibliotecas, mas não acredito em tudo o que está na moda e me dizem que é «politicamente correcto»; acho que o «novo centro» do senhor Gehrard Schroeder é pura gelatina política e que a «terceira via» do senhor Anthony Giddens é pura brilhantina ideológica. Mas, sinceramente, não consigo lobrigar que vantagens poderá ter sobre mim o honorável deputado Francisco de Assis: além da santidade do nome, só lobrigo um pequeno Platão pós-moderno, sem luz nem vida próprias, que se leva completamente a sério (devia reler Voltaire), que acredita em tudo o que o senhor Anthony Giddens escreve e que tem uma fé inabalável no poder regenerador das leituras que estão na moda. De resto, o ardor e a fogosidade com que percorre a «terceira via», em busca de estações de serviço que alimentem filosoficamente a carripana da «nova maioria», fazem-no corar de satisfação, o que também lhe dá (devo reconhecê-lo) um inegável toque de pantera cor-de-rosa. A «terceira via» está na moda. E, por enquanto, não há volta a dar-lhe. Como diria o «distinto sportsman» Dâmaso Salcede (cito o Eça), a «terceira via» é «'chic' a valer». Ou então, como poderia exclamar uma «menina queque» da minha geração, a «terceira via» tem «montes de piada» e «carradas de absolutamente» (depois de Camilo e Eça nunca li mais nada e daí citar uma «menina queque»). O problema é que, como todas as modas pós-modernas, efémeras e sem conteúdo, a «terceira via» corre o risco de prescrever ainda mais depressa do que as famosas fraudes do Fundo Social Europeu. E, como diziam os latinos, «hoc opus hic labor est». Ou, como preferem dizer mais prosaicamente os portugueses, «aqui é que a porca torce o rabo». Mas que digo eu? A porca não! A pantera cor-de-rosa!

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