O triunfo de Salazar

24-08-1999
marcar artigo

Desta vez vieram à superfície os manuais de instrução primária do regime salazarista. A diversa tribo reunida por Veiga Simão no tempo de Marcello Caetano e que desde então tem mais ou menos gerido até hoje os destinos da instrução pública deve empalidecer de inveja ao confrontar-se com a duração e o sucesso do modelo que os antecedeu. Em termos de História, é um perfeito disparate tudo o que é escrito no dito documento; em termos de ideologia, é um mimo - é, aliás, significativo que nenhum historiador se associe à carta. As cláusulas iniciais de distanciação em relação à «afirmação imperial» do Estado Novo mais não fazem que realçar quão profundamente as referências ideológicas deste penetraram no que poderíamos chamar «cultura geral»; verdade seja que em termos de utilização nacionalista da história pátria, Salazar mais não fez que alterar subtilmente a coloração do que a I República traçara.

Como é possível chamar a Filipe de Habsburgo «castelhano»? Porque era o nome dado pelos manuais aos espanhóis quando os queriam atacar sem ferir as relações com Franco. Como é possível dizer que a nobreza portuguesa só não resistiu por causa de Alcácer Quibir? Porque foi a maneira de o discurso integralista de João Ameal e quejandos ocultar a naturalíssima homenagem que essa nobreza prestou a Filipe como legítimo herdeiro da Coroa. Aparentemente, nenhum dos subscritores pensou que estava a ser enganado quando, na meninice, aprendia que o período filipino era a «decadência» e que, com D. João IV, Portugal «renascia». Chamar a 1640 a «conquista da liberdade», isto é, identificar a união ibérica com uma situação de opressão derivada de conquista, é de um anacronismo, esse sim, heróico (e, já agora, o que será a «população civil» no século XVII?). Não me parece excessivo pedir a quem pretende pronunciar-se sobre o período que procure honestamente responder a esta pergunta: quem é que se sentiu prejudicado pelas políticas do conde-duque de Olivares, em Portugal como na Catalunha ou nos outros estados hereditários dos Áustrias?

Não sei se é significativo, mas é, no mínimo, preocupante, que no seu afã nacionalista, os subscritores se preocupem que aos filhos seja ensinada a História pelo melhor manual actualmente disponível, o de Diniz, Tavares e Caldeira - em vez de o lerem para aí aprender o mínimo exigível sobre o período filipino. A mim, preocupa-me bastante mais que continuem a ser usados livros de texto como o de Figueiredo Lopes que usa epígrafes do género «Meu Portugal guerreiro e monge/ de Cruz erguida e espada na bainha», e períodos do estilo: «Portugal é uma pátria missionária». Presumo que as senhoras e os senhores subscritores, se vivessem nos anos 20 em França, embirrariam tanto com o historiador Jacques Droz, encarregado de rever os manuais franceses para acabar com os incitamentos anti-alemães de que estavam recheados, como agora embirram com o historiador António Hespanha, por ter o bom senso de achar que os Descobrimentos não foram só uma «gesta» heróica. Preferem um bom punhado de mentiras ideologicamente soantes a um inventário de modestas verdades; seria bom que percebessem que o tom ideológico escolhido os conduz, por coerência, a defender manuais que propugnem o ódio entre povos e a guerra entre nações.

RUI ROCHA

Desta vez vieram à superfície os manuais de instrução primária do regime salazarista. A diversa tribo reunida por Veiga Simão no tempo de Marcello Caetano e que desde então tem mais ou menos gerido até hoje os destinos da instrução pública deve empalidecer de inveja ao confrontar-se com a duração e o sucesso do modelo que os antecedeu. Em termos de História, é um perfeito disparate tudo o que é escrito no dito documento; em termos de ideologia, é um mimo - é, aliás, significativo que nenhum historiador se associe à carta. As cláusulas iniciais de distanciação em relação à «afirmação imperial» do Estado Novo mais não fazem que realçar quão profundamente as referências ideológicas deste penetraram no que poderíamos chamar «cultura geral»; verdade seja que em termos de utilização nacionalista da história pátria, Salazar mais não fez que alterar subtilmente a coloração do que a I República traçara.

Como é possível chamar a Filipe de Habsburgo «castelhano»? Porque era o nome dado pelos manuais aos espanhóis quando os queriam atacar sem ferir as relações com Franco. Como é possível dizer que a nobreza portuguesa só não resistiu por causa de Alcácer Quibir? Porque foi a maneira de o discurso integralista de João Ameal e quejandos ocultar a naturalíssima homenagem que essa nobreza prestou a Filipe como legítimo herdeiro da Coroa. Aparentemente, nenhum dos subscritores pensou que estava a ser enganado quando, na meninice, aprendia que o período filipino era a «decadência» e que, com D. João IV, Portugal «renascia». Chamar a 1640 a «conquista da liberdade», isto é, identificar a união ibérica com uma situação de opressão derivada de conquista, é de um anacronismo, esse sim, heróico (e, já agora, o que será a «população civil» no século XVII?). Não me parece excessivo pedir a quem pretende pronunciar-se sobre o período que procure honestamente responder a esta pergunta: quem é que se sentiu prejudicado pelas políticas do conde-duque de Olivares, em Portugal como na Catalunha ou nos outros estados hereditários dos Áustrias?

Não sei se é significativo, mas é, no mínimo, preocupante, que no seu afã nacionalista, os subscritores se preocupem que aos filhos seja ensinada a História pelo melhor manual actualmente disponível, o de Diniz, Tavares e Caldeira - em vez de o lerem para aí aprender o mínimo exigível sobre o período filipino. A mim, preocupa-me bastante mais que continuem a ser usados livros de texto como o de Figueiredo Lopes que usa epígrafes do género «Meu Portugal guerreiro e monge/ de Cruz erguida e espada na bainha», e períodos do estilo: «Portugal é uma pátria missionária». Presumo que as senhoras e os senhores subscritores, se vivessem nos anos 20 em França, embirrariam tanto com o historiador Jacques Droz, encarregado de rever os manuais franceses para acabar com os incitamentos anti-alemães de que estavam recheados, como agora embirram com o historiador António Hespanha, por ter o bom senso de achar que os Descobrimentos não foram só uma «gesta» heróica. Preferem um bom punhado de mentiras ideologicamente soantes a um inventário de modestas verdades; seria bom que percebessem que o tom ideológico escolhido os conduz, por coerência, a defender manuais que propugnem o ódio entre povos e a guerra entre nações.

RUI ROCHA

marcar artigo