A Talhe de Foice

08-10-1999
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A TALHE DE FOICE

A Demanda

de Santo Amaral

F erreira do Amaral, candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, deslocou-se há dias ao bairro do Casal Ventoso e, em 45 minutos, resolveu-lhe os problemas.

Deambulando pelo labirinto do local com uma multidão de jornalistas atrás, o candidato levou à frente tudo o que era dificuldade.

Primeiro, foi-se às pessoas, tarefa algo facilitada dado que as pessoas têm a tendência de andar por aí, nomeadamente nos bairros. Mostrando que é homem avisado, Amaral escolheu-as a dedo e demorou-se com as que lhe pareceram corresponder aos paradigmas que, na sua cabeça de candidato, lhe sugerem uma ideia do Casal Ventoso.

Daí ter falado com um toxicodependente e uma moradora, síntese do bairro aprendida nos títulos dos jornais e trabalhada por assessores de campanha.

Ao primeiro, despachou-lhe o discurso errante com trivialidades caridosas. A probabilidade de estar ali um eleitor era manifestamente remota.

À segunda - mais verosímil como eleitora -, amparou-lhe as queixas do quotidiano com a unção de quem, se pudesse, até ia morar ali ao lado para sublinhar a sua solidariedade.

Em ambos os casos deixou no ar um responsável por aquelas misérias: «o poder».

Não, obviamente, o poder que ele próprio partilhou durante uma década e até há menos de dois anos.

Esse, não vinha ao caso e nada tem a ver com a brutal degradação social e económica de centenas de milhares de portugueses que, ao longo de longos anos, foram resvalando do oásis cavaquista para os declives da miséria. Miséria que, nos Casais Ventosos, já destila morte pelas encostas.

Não. O poder responsável por tais misérias era, obviamente, espúrio à imaculada candidatura de Ferreira do Amaral à presidência da Câmara de Lisboa. Pertencia «aos outros», aos que agora governavam a Cidade sem nada fazer.

E virando-se para a Cidade, que é como quem diz para as câmaras de televisão, os microfones de rádio e os registos dos jornalistas, Ferreira do Amaral cumpriu o grande objectivo da sua primeira visita ao Casal Ventoso: falar de si próprio.

Tendo por pano de fundo a desgraça que acabara de conhecer, o candidato compôs uma expressão magoada e afirmou «não perceber», confissão aparentemente natural em alguém que vive no luxo de Cascais.

Mas o que Ferreira do Amaral não percebia era outra coisa. O seu enigma perguntava por que «não se fazia nada no Casal Ventoso» quando - garantia ele - «existiam os planos e as verbas estavam disponibilizadas».

Para quem nunca tinha posto os pés no bairro, é extraordinário este conhecimento de que «não se fazia nada no Casal Ventoso».

Tanta omnisciência esqueceu-se entretanto de dizer que, se existiam planos, não tinha sido ele a promovê-los e, se havia verbas, não foram os seus Governos a disponibilizá-las.

Mas lembrou-se mais uma vez de si próprio. «Não estou habituado a ficar a olhar para os planos, tenho por hábito executá-los», rematava Amaral, pomposo e já desligado da miséria do Casal Ventoso que há minutos tanto o condoera.

O País recorda-se dos seus hábitos de execução, perdulariamente desembaraçados a gastar os milhões de Bruxelas com auto-estradas a aluir após as inaugurações, com a construção de edifícios públicos a gemer humidades ainda antes da tinta secar, tudo pago a peso de ouro e orçamentos suplementares para estar pronto nos calendários eleitorais.

Tal como se lembra como o «buzinão da ponte», qual trombetas de Jericó, abateu em poucas horas uma ministerial imagem de «eficiência democrática» construída ao longo de dispendiosos quilómetros de obras atamancadas.

Aliás, se ocorrer ao País uma visita às realizações que Amaral capitaneou, verificar-se-á que tudo desembocou nos domínios do virtual: a sua «obra» tornou-se «ex-obra» tão rapidamente como ele se tornou ex-ministro.

Agora anda Amaral em Demanda de Lisboa, de quem não quer ser vereador, mas «apenas» presidente.

Alguma coisa há-de ser.

Nomeadamente ex-candidato, porque a capital não há-de querer transformar-se numa ex-Lisboa.

H. C.

A TALHE DE FOICE

A Demanda

de Santo Amaral

F erreira do Amaral, candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, deslocou-se há dias ao bairro do Casal Ventoso e, em 45 minutos, resolveu-lhe os problemas.

Deambulando pelo labirinto do local com uma multidão de jornalistas atrás, o candidato levou à frente tudo o que era dificuldade.

Primeiro, foi-se às pessoas, tarefa algo facilitada dado que as pessoas têm a tendência de andar por aí, nomeadamente nos bairros. Mostrando que é homem avisado, Amaral escolheu-as a dedo e demorou-se com as que lhe pareceram corresponder aos paradigmas que, na sua cabeça de candidato, lhe sugerem uma ideia do Casal Ventoso.

Daí ter falado com um toxicodependente e uma moradora, síntese do bairro aprendida nos títulos dos jornais e trabalhada por assessores de campanha.

Ao primeiro, despachou-lhe o discurso errante com trivialidades caridosas. A probabilidade de estar ali um eleitor era manifestamente remota.

À segunda - mais verosímil como eleitora -, amparou-lhe as queixas do quotidiano com a unção de quem, se pudesse, até ia morar ali ao lado para sublinhar a sua solidariedade.

Em ambos os casos deixou no ar um responsável por aquelas misérias: «o poder».

Não, obviamente, o poder que ele próprio partilhou durante uma década e até há menos de dois anos.

Esse, não vinha ao caso e nada tem a ver com a brutal degradação social e económica de centenas de milhares de portugueses que, ao longo de longos anos, foram resvalando do oásis cavaquista para os declives da miséria. Miséria que, nos Casais Ventosos, já destila morte pelas encostas.

Não. O poder responsável por tais misérias era, obviamente, espúrio à imaculada candidatura de Ferreira do Amaral à presidência da Câmara de Lisboa. Pertencia «aos outros», aos que agora governavam a Cidade sem nada fazer.

E virando-se para a Cidade, que é como quem diz para as câmaras de televisão, os microfones de rádio e os registos dos jornalistas, Ferreira do Amaral cumpriu o grande objectivo da sua primeira visita ao Casal Ventoso: falar de si próprio.

Tendo por pano de fundo a desgraça que acabara de conhecer, o candidato compôs uma expressão magoada e afirmou «não perceber», confissão aparentemente natural em alguém que vive no luxo de Cascais.

Mas o que Ferreira do Amaral não percebia era outra coisa. O seu enigma perguntava por que «não se fazia nada no Casal Ventoso» quando - garantia ele - «existiam os planos e as verbas estavam disponibilizadas».

Para quem nunca tinha posto os pés no bairro, é extraordinário este conhecimento de que «não se fazia nada no Casal Ventoso».

Tanta omnisciência esqueceu-se entretanto de dizer que, se existiam planos, não tinha sido ele a promovê-los e, se havia verbas, não foram os seus Governos a disponibilizá-las.

Mas lembrou-se mais uma vez de si próprio. «Não estou habituado a ficar a olhar para os planos, tenho por hábito executá-los», rematava Amaral, pomposo e já desligado da miséria do Casal Ventoso que há minutos tanto o condoera.

O País recorda-se dos seus hábitos de execução, perdulariamente desembaraçados a gastar os milhões de Bruxelas com auto-estradas a aluir após as inaugurações, com a construção de edifícios públicos a gemer humidades ainda antes da tinta secar, tudo pago a peso de ouro e orçamentos suplementares para estar pronto nos calendários eleitorais.

Tal como se lembra como o «buzinão da ponte», qual trombetas de Jericó, abateu em poucas horas uma ministerial imagem de «eficiência democrática» construída ao longo de dispendiosos quilómetros de obras atamancadas.

Aliás, se ocorrer ao País uma visita às realizações que Amaral capitaneou, verificar-se-á que tudo desembocou nos domínios do virtual: a sua «obra» tornou-se «ex-obra» tão rapidamente como ele se tornou ex-ministro.

Agora anda Amaral em Demanda de Lisboa, de quem não quer ser vereador, mas «apenas» presidente.

Alguma coisa há-de ser.

Nomeadamente ex-candidato, porque a capital não há-de querer transformar-se numa ex-Lisboa.

H. C.

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