Retalhos na vida de um médico

01-09-1999
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Carlos Pinto, o médico açoriano envolvido num processo de homicídio: «Isto é muito injusto. Sobretudo se se pensar no que temos feito pelas pessoas daqui»

De um dia para o outro, a vida do mais conhecido médico da ilha de Santa Maria, nos Açores, mudou radicalmente. A própria população da ilha ficou em estado de choque. E, nas habitualmente pacatas ruas de Vila do Porto, esta última semana ficou marcada pela reacção de revolta e de solidariedade para com o clínico-geral Carlos Pinto, que o povo da ilha conhece há quase 20 anos. «Ele é muito estimado por todos», confirma João Braga, o director do único jornal que se publica na ilha. «E, ainda por cima, é conhecido por aguentar as pontas», acrescenta, enquanto o talhante Eduardo Luís reforça: «Dele só temos a dizer coisas boas. Não acredito nessas histórias».

De facto, as «histórias» que levaram à abertura do processo-crime pelo Ministério Público de Santa Maria não podiam ser mais estranhas. Ao ponto de, disseram fontes ligadas ao processo, o inquérito ter sido retirado ao delegado que o promoveu e estar agora a ser orientado pelo seu superior em Ponta Delgada.

Segundo os autos que levaram à suspensão de Carlos Pinto, o médico estará envolvido em duas situações de negligência, ocorridas no serviço de urgência do Centro de Saúde de Vila do Porto, de que, aliás, é director.

Casos de urgência

Num dos casos, o juiz afirma existirem «fortes indícios» de violação da «legis artis» dos médicos, e isto porque Carlos Pinto, perante um doente vítima de acidente e com um diagnóstico neurológico grave, não determinou a sua imediata evacuação para um hospital central, o que terá implicado que o doente ficou «com sequelas graves e permanentes». Segundo o juiz da Comarca de Vila do Porto, «tratar-se-ia de um caso de emergência» em que «o arguido deveria ter actuado em conformidade com o seu próprio diagnóstico». E de nada valeu a Carlos Pinto ter alegado que só os serviços dos hospitais centrais é que têm competência para ordenar a evacuação de doentes e que o neurocirurgião de serviço em Ponta Delgada lhe pediu para «aguardar a evolução do doente», antes de pedir a evacuação.

No segundo caso, Carlos Pinto está indiciado de crime de homicídio, por causa da morte de um doente nas urgências do Centro de Saúde.

«O arguido diagnosticou-lhe logo um edema agudo do pulmão, tendo sido então conduzido ao internamento, enquanto o arguido continuou a fazer o atendimento no serviço de urgência», escreveu o juiz nos autos. O doente foi medicado ainda nas urgências, tendo-lhe sido dada nova dose pela enfermeira do internamento.

O problema é que, para o magistrado - e segundo o que Vítor Pardal descobriu após consulta feita no «site» da Internet de um médico brasileiro -, perante uma situação clínica de edema agudo, em que há risco de morte, o médico não pode abandonar nunca o doente, «sendo caso inclusive de tudo parar no centro de saúde para acudir ao caso, salvo concomitância com outro paciente com doença mais grave». O juiz escreve mesmo que «os únicos momentos de descanso do médico (à cabeceira do paciente) são durante os períodos de espera à reacção química aos medicamentos ministrados». «Indiciam os autos - acrescenta o magistrado - que o arguido não permaneceu directa e continuadamente junto do doente em situação de grave emergência médica, tendo permanecido a atender outras situações de menor urgência, apenas tendo-se deslocado, após espaço de tempo não inferior a 15 minutos, até junto do doente».

Só após a suspensão ter acontecido, e já com o processo em Ponta Delgada, é que o neurocirurgião referido nos autos e outros médicos do hospital desta cidade foram ouvidos. O caso de Pinto não revoltou apenas a população de Vila do Porto. Uma onda de solidariedade sindical, profissional e, até, política percorreu os Açores. A Ordem dos Médicos regional tomou logo posição, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) forneceu ao clínico apoio jurídico e até o secretário Regional da Saúde, segundo revelou o próprio Carlos Pinto ao EXPRESSO, se manifestou solidário.

Governo intervém

«Aqui, os médicos já são poucos e ainda nos querem tirar mais um», queixou-se ao EXPRESSO um taxista de Vila do Porto. E, de facto, a decisão do juiz deu origem a uma situação sem precedentes na história recente da saúde pública em Portugal. Na ilha de Santa Maria, onde vivem seis mil pessoas, há três médicos a trabalhar no Centro de Saúde. Um deles estava de férias, quando tudo isto aconteceu. E, logo após a suspensão de Carlos Pinto, o outro clínico meteu baixa, alegando não ter condições psicológicas para trabalhar naquelas condições. A verdade é que a decisão judicial provocou um verdadeiro rombo no sistema de saúde pública, deixando a ilha sem médico de um dia para o outro e obrigando o Governo a requisitar para lá um clínico, que agora assegura apenas as urgências no Centro de Saúde.

«Em condições normais», porém, é recorrente ficar só um médico a trabalhar no Centro. Carlos Pinto afirma que o serviço de urgência é sempre feito «a solo», funcionando até à meia-noite todos os dias da semana. E lembra que, quando um médico está doente e outro precisa de ir a um congresso, por exemplo, o terceiro terá de ficar sozinho. «Eu próprio já fiquei uma semana inteira a assegurar o trabalho todo no Centro de Saúde», garante.

É a propósito disto que faz uma das principais críticas ao processo. «Diz-se que o médico não deve abandonar o doente, a não ser que os outros casos sejam urgentes. Mas, se não está no serviço mais nenhum médico, quem é que diz se outros casos são ou não urgentes?», pergunta.

Na mesma tecla bate o sindicalista Ricardo Cabral: «Tudo isto é uma consequência do facto do médico estar sozinho e ter de fazer de tudo, acabando por ser responsabilizado por isso», disse.

SIM insiste

A verdade é que este caso serviu para o SIM e a Ordem voltarem à carga com a questão da precaridade nas condições de trabalho dos clínicos-gerais. António Bento, o dirigente do sindicato que está em pleno conflito com o Governo, não esquece a acusação da ministra da Saúde de que o SIM teria produzido um caso «falso» - que o EXPRESSO divulgou - para «criar tensões de conveniência» que favorecessem a greve. «O caso dos Açores evidencia, mais uma vez, que os clínicos gerais estão a prestar assistência aos doentes em condições precárias. E depois, se há problemas, são os médicos que são vítimas, só porque aceitaram trabalhar desse modo», declarou o dirigente do SIM ao EXPRESSO, acrescentando: «Sempre que tivermos conhecimento de casos destes, como foi a situação de Santarém e é agora a dos Açores - e eles estão a chegar em número crescente aos nossos serviços jurídicos -, seremos os primeiros a denunciá-los», disse.

Também a Ordem voltou a pronunciar-se sobre o assunto. Num comunicado divulgado na quinta-feira, o Conselho Regional do Sul declara «a maior estranheza» pelo facto de a Ordem não ter sido ouvida no caso de Carlos Pinto, apesar de ser a única entidade que, por lei, tem competência para definir a «legis artis» dos médicos. E afirma mesmo que, da análise dos factos relatados nos autos, «não resulta motivo que permita qualquer acto de suspensão de actividade» do referido médico. A Ordem conclui que, «para os factos ocorridos concorreram indiscutivelmente as condições do exercício profissional na Região dos Açores» e apela à necessidade de as consequências dessas «condições adversas» terem de ser consideradas «quando se analisam os actos dos médicos obrigados a trabalhar» nelas.

Ainda a propósito do tema, o Sindicato dos Médicos da Zona Sul emitiu um comunicado insurgindo-se contra o SIM por estar «a criar preocupantes condições para a descredibilização da actividade associativa», numa referência à divulgação daquilo que também afirma ser o «caso falso» de Santarém. No entanto, o sindicato também escreve que «o cenário (daquele caso) não é meramente teórico, dada a realidade concreta dos seus pressupostos». «Assim - acrescenta - cumpre responder juridicamente ao dilema: o médico deve acompanhar o doente ao hospital, abandonando o centro de saúde, para se resguardar de uma eventual acusação de 'homicídio involuntário' em caso da morte daquele? Mas, se assim actuar, não incorrerá no ilícito de abandono do local de trabalho?».

GRAÇA ROSENDO e OSVALDO CABRAL

Carlos Pinto, o médico açoriano envolvido num processo de homicídio: «Isto é muito injusto. Sobretudo se se pensar no que temos feito pelas pessoas daqui»

De um dia para o outro, a vida do mais conhecido médico da ilha de Santa Maria, nos Açores, mudou radicalmente. A própria população da ilha ficou em estado de choque. E, nas habitualmente pacatas ruas de Vila do Porto, esta última semana ficou marcada pela reacção de revolta e de solidariedade para com o clínico-geral Carlos Pinto, que o povo da ilha conhece há quase 20 anos. «Ele é muito estimado por todos», confirma João Braga, o director do único jornal que se publica na ilha. «E, ainda por cima, é conhecido por aguentar as pontas», acrescenta, enquanto o talhante Eduardo Luís reforça: «Dele só temos a dizer coisas boas. Não acredito nessas histórias».

De facto, as «histórias» que levaram à abertura do processo-crime pelo Ministério Público de Santa Maria não podiam ser mais estranhas. Ao ponto de, disseram fontes ligadas ao processo, o inquérito ter sido retirado ao delegado que o promoveu e estar agora a ser orientado pelo seu superior em Ponta Delgada.

Segundo os autos que levaram à suspensão de Carlos Pinto, o médico estará envolvido em duas situações de negligência, ocorridas no serviço de urgência do Centro de Saúde de Vila do Porto, de que, aliás, é director.

Casos de urgência

Num dos casos, o juiz afirma existirem «fortes indícios» de violação da «legis artis» dos médicos, e isto porque Carlos Pinto, perante um doente vítima de acidente e com um diagnóstico neurológico grave, não determinou a sua imediata evacuação para um hospital central, o que terá implicado que o doente ficou «com sequelas graves e permanentes». Segundo o juiz da Comarca de Vila do Porto, «tratar-se-ia de um caso de emergência» em que «o arguido deveria ter actuado em conformidade com o seu próprio diagnóstico». E de nada valeu a Carlos Pinto ter alegado que só os serviços dos hospitais centrais é que têm competência para ordenar a evacuação de doentes e que o neurocirurgião de serviço em Ponta Delgada lhe pediu para «aguardar a evolução do doente», antes de pedir a evacuação.

No segundo caso, Carlos Pinto está indiciado de crime de homicídio, por causa da morte de um doente nas urgências do Centro de Saúde.

«O arguido diagnosticou-lhe logo um edema agudo do pulmão, tendo sido então conduzido ao internamento, enquanto o arguido continuou a fazer o atendimento no serviço de urgência», escreveu o juiz nos autos. O doente foi medicado ainda nas urgências, tendo-lhe sido dada nova dose pela enfermeira do internamento.

O problema é que, para o magistrado - e segundo o que Vítor Pardal descobriu após consulta feita no «site» da Internet de um médico brasileiro -, perante uma situação clínica de edema agudo, em que há risco de morte, o médico não pode abandonar nunca o doente, «sendo caso inclusive de tudo parar no centro de saúde para acudir ao caso, salvo concomitância com outro paciente com doença mais grave». O juiz escreve mesmo que «os únicos momentos de descanso do médico (à cabeceira do paciente) são durante os períodos de espera à reacção química aos medicamentos ministrados». «Indiciam os autos - acrescenta o magistrado - que o arguido não permaneceu directa e continuadamente junto do doente em situação de grave emergência médica, tendo permanecido a atender outras situações de menor urgência, apenas tendo-se deslocado, após espaço de tempo não inferior a 15 minutos, até junto do doente».

Só após a suspensão ter acontecido, e já com o processo em Ponta Delgada, é que o neurocirurgião referido nos autos e outros médicos do hospital desta cidade foram ouvidos. O caso de Pinto não revoltou apenas a população de Vila do Porto. Uma onda de solidariedade sindical, profissional e, até, política percorreu os Açores. A Ordem dos Médicos regional tomou logo posição, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) forneceu ao clínico apoio jurídico e até o secretário Regional da Saúde, segundo revelou o próprio Carlos Pinto ao EXPRESSO, se manifestou solidário.

Governo intervém

«Aqui, os médicos já são poucos e ainda nos querem tirar mais um», queixou-se ao EXPRESSO um taxista de Vila do Porto. E, de facto, a decisão do juiz deu origem a uma situação sem precedentes na história recente da saúde pública em Portugal. Na ilha de Santa Maria, onde vivem seis mil pessoas, há três médicos a trabalhar no Centro de Saúde. Um deles estava de férias, quando tudo isto aconteceu. E, logo após a suspensão de Carlos Pinto, o outro clínico meteu baixa, alegando não ter condições psicológicas para trabalhar naquelas condições. A verdade é que a decisão judicial provocou um verdadeiro rombo no sistema de saúde pública, deixando a ilha sem médico de um dia para o outro e obrigando o Governo a requisitar para lá um clínico, que agora assegura apenas as urgências no Centro de Saúde.

«Em condições normais», porém, é recorrente ficar só um médico a trabalhar no Centro. Carlos Pinto afirma que o serviço de urgência é sempre feito «a solo», funcionando até à meia-noite todos os dias da semana. E lembra que, quando um médico está doente e outro precisa de ir a um congresso, por exemplo, o terceiro terá de ficar sozinho. «Eu próprio já fiquei uma semana inteira a assegurar o trabalho todo no Centro de Saúde», garante.

É a propósito disto que faz uma das principais críticas ao processo. «Diz-se que o médico não deve abandonar o doente, a não ser que os outros casos sejam urgentes. Mas, se não está no serviço mais nenhum médico, quem é que diz se outros casos são ou não urgentes?», pergunta.

Na mesma tecla bate o sindicalista Ricardo Cabral: «Tudo isto é uma consequência do facto do médico estar sozinho e ter de fazer de tudo, acabando por ser responsabilizado por isso», disse.

SIM insiste

A verdade é que este caso serviu para o SIM e a Ordem voltarem à carga com a questão da precaridade nas condições de trabalho dos clínicos-gerais. António Bento, o dirigente do sindicato que está em pleno conflito com o Governo, não esquece a acusação da ministra da Saúde de que o SIM teria produzido um caso «falso» - que o EXPRESSO divulgou - para «criar tensões de conveniência» que favorecessem a greve. «O caso dos Açores evidencia, mais uma vez, que os clínicos gerais estão a prestar assistência aos doentes em condições precárias. E depois, se há problemas, são os médicos que são vítimas, só porque aceitaram trabalhar desse modo», declarou o dirigente do SIM ao EXPRESSO, acrescentando: «Sempre que tivermos conhecimento de casos destes, como foi a situação de Santarém e é agora a dos Açores - e eles estão a chegar em número crescente aos nossos serviços jurídicos -, seremos os primeiros a denunciá-los», disse.

Também a Ordem voltou a pronunciar-se sobre o assunto. Num comunicado divulgado na quinta-feira, o Conselho Regional do Sul declara «a maior estranheza» pelo facto de a Ordem não ter sido ouvida no caso de Carlos Pinto, apesar de ser a única entidade que, por lei, tem competência para definir a «legis artis» dos médicos. E afirma mesmo que, da análise dos factos relatados nos autos, «não resulta motivo que permita qualquer acto de suspensão de actividade» do referido médico. A Ordem conclui que, «para os factos ocorridos concorreram indiscutivelmente as condições do exercício profissional na Região dos Açores» e apela à necessidade de as consequências dessas «condições adversas» terem de ser consideradas «quando se analisam os actos dos médicos obrigados a trabalhar» nelas.

Ainda a propósito do tema, o Sindicato dos Médicos da Zona Sul emitiu um comunicado insurgindo-se contra o SIM por estar «a criar preocupantes condições para a descredibilização da actividade associativa», numa referência à divulgação daquilo que também afirma ser o «caso falso» de Santarém. No entanto, o sindicato também escreve que «o cenário (daquele caso) não é meramente teórico, dada a realidade concreta dos seus pressupostos». «Assim - acrescenta - cumpre responder juridicamente ao dilema: o médico deve acompanhar o doente ao hospital, abandonando o centro de saúde, para se resguardar de uma eventual acusação de 'homicídio involuntário' em caso da morte daquele? Mas, se assim actuar, não incorrerá no ilícito de abandono do local de trabalho?».

GRAÇA ROSENDO e OSVALDO CABRAL

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