A captura do tempo

02-09-1999
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A captura do tempo

A propósito da estreia da comédia de situação e de carácter de Shakespeare «Noite de Reis», o encenador Ricardo Pais fala do presente do T.N.S. João. Ou de como o espectáculo que abre a temporada 1998/99 procura parar o tempo

NOITE DE REIS OU COMO LHE QUEIRAM CHAMAR

de William Shakespeare Teatro Nacional S. João, estreia quinta-feira, 21h30 O TEATRO Nacional S. João abre a sua temporada 1998/99 na próxima quinta-feira com a peça de William Shakespeare Noite de Reis, Ou Como Lhe Queiram Chamar (Twelfth-Night; or What You Will, no original), encenação de Ricardo Pais a partir da nova tradução de António Feijó, com cenografia e figurinos de António Lagarto, música original de Vítor Rua, desenho de luz de José Carlos Coelho e Ricardo Pais, desenho de som de Francisco Leal, direcção de voz, canto e locução de Luís Madureira e desenho de esgrima de Eugénio Roque. Sensivelmente a meio do seu mandato como director do T.N.S.J (termina em Outubro de 1999), Ricardo Pais não consegue fazer o discurso sobre o seu trabalho enquanto encenador escapar à função simultânea de director artístico do S. João, reiterando uma posição que defende desde sempre: «Tal como consta da lei orgânica, é a marca do trabalho do encenador-residente que estabelece a identidade do projecto, e essa marca é simultaneamente resultado de um processo de produção e de criação. Um e outro cruzam-se inevitável e permanentemente». Posto isto, dentro e fora da peça existe a mesma obsessão - capturar o tempo, inventar processos para que a abertura a múltiplos projectos do teatro se concretizem numa corrida dentro dos prazos de uma encenação que implica, por si, os tempos da manipulação do sofisticado equipamento técnico que o teatro tem vindo a adquiri para possibilitar as ambições de qualidade que se concretizam naquilo que Ricardo Pais considera a maior conquista da sua dupla direcção: a escola de actores. Tudo isto acontece, diz, por via daquele que considera ser o seu maior defeito: «Não conseguir manter os meus projectos fechados, nem estabelecer um calendário de prioridades ou criar um limite para, a partir dele, entrar numa rotina; estou sempre a abrir novas prioridades e rotinas e a tentar ver até onde é que a casa resiste». Não é, portanto, indiferente a este espectáculo que a actividade do S. João ultrapasse as produções em estreia. É disso exemplo o início, em cima destas datas, do projecto Públicos Muito Especiais (PME), que implicará a deslocação e fidelização de conjuntos de espectadores escolhidos pelas câmaras municipais da área metropolitana do Porto (a começar por Espinho e Matosinhos) para acompanharem ao longo de um ano as produções do teatro, com acesso aos textos, ensaios, conversas com o encenador e actores durante o período de trabalho. Assim como o arranque de programas quinzenais de teatro na Rádio Nova cuja primeira emissão será simbolicamente realizada por Ricardo Pais. «A verdade é que», como diz, «neste momento, e com este cansaço, acredito absolutamente naquilo que estamos a fazer e as dúvidas que me surgem quanto ao procedimento da produção/criação relativamente a projectos como a Noite de Reis são, talvez, as dúvidas axiais de um artista produtor ou director. O que, se calhar, é saudável». Daqui decorre que a questão da capitalização do potencial de um teatro nacional em todas as suas expressões passe, na sua opinião por uma pergunta tão simples como «quanto tempo leva a pôr no lugar com os actores todas as fases de evolução do trabalho com eles em termos de aprendizagem exaustiva daquilo que constitui a matéria do seu trabalho? Este tempo deveria ser a mais-valia de um teatro nacional».

António Feio e João Reis em «Noite de Reis»

Ricardo Pais encena Shakespeare pela primeira vez e à escolha desta peça presidiram os seguintes critérios: conforme anunciara, «em ano da Expo-98 achei que seria melhor fazer comédias, ainda que esta seja uma comédia escura escrita no início do pessimismo shakespeariano das grandes tragédias». Por outro lado, afirma: «Não teria feito esta peça se não pudesse contar com estes actores. Era essencial ter cómicos com o tipo de experiência que estes têm». Noite de Reis, comédia caracterizada, como referiu o encenador, pela construção em forma plautiana, o regime episódico com mudanças de espaço sistemáticas e elipses de tempo variáveis sem unidades claras, a cadência funérea da música, as cenas rabelaisianas epifânicas da festividade e da permissividade sexual - «alternância que é muito difícil de gerir e que não permite facilmente encontrar um tom geral para o espectáculo» - fazia parte de um conjunto de obras que tratam «em lato senso do uso do disfarce no teatro». Outra das razões da escolha foi o facto de a peça se deter «na passagem do tempo e na efemeridade da beleza. Percebo agora que é um tema que me obceca por ser uma possibilidade de trabalhar aquela aresta vertiginosa entre a alegria e o medo da morte». O resultado da colaboração com António Lagarto foi, desta vez, «um uso plano do espaço que funciona como um dispositivo neutro. É uma das falsas naturalidades que o António cria e que tem um acabamento de uma enorme precisão técnica. No fundo é um espaço com dois bancos em meia lua que abrem e fecham formando um móvel com rodas. Aquilo que aparenta ser um esquema livre passível de servir para as inúmeras situações da peça, transforma-se numa clausura, o que acontece sempre. Qualquer cenário criado entre mim e o António se transforma numa clausura não só porque ele tem regras de funcionamento muito particulares mas também porque eu sou um exagerado na multiplicação dos sentidos das coisas e no aumento da sua capacidade de significação e de sinalização. O resultado é cada gesto criar uma responsabilidade que se vai articular cenicamente com várias outras e depois a capacidade das várias sínteses e a margem de manobra tornam-se diminutas». O elenco é constituído pela maioria dos actores que têm vindo a participar, mais ou menos regularmente, nos espectáculos do S. João e pelos outros que Ricardo Pais considerou essenciais para um texto desta natureza: João Reis, Micaela Cardoso, Jorge Vasques, Lígia Roque, Alberto Magassela, Carlos Gomes, Nuno M. Cardoso, Pedro Feijó Cunha e Adriano Luz, António Durães, António Feio, Cláudia Cádima e Miguel Guilherme. «Acho este elenco um luxo asiático e foi uma surpresa verificarmos, por confronto com estes actores que aqui chamei, haver uma metodologia de trabalho de actor aqui da casa na qual foi muito interessante integrar pessoas com experiências diferentes». CRISTINA PERES

A captura do tempo

A propósito da estreia da comédia de situação e de carácter de Shakespeare «Noite de Reis», o encenador Ricardo Pais fala do presente do T.N.S. João. Ou de como o espectáculo que abre a temporada 1998/99 procura parar o tempo

NOITE DE REIS OU COMO LHE QUEIRAM CHAMAR

de William Shakespeare Teatro Nacional S. João, estreia quinta-feira, 21h30 O TEATRO Nacional S. João abre a sua temporada 1998/99 na próxima quinta-feira com a peça de William Shakespeare Noite de Reis, Ou Como Lhe Queiram Chamar (Twelfth-Night; or What You Will, no original), encenação de Ricardo Pais a partir da nova tradução de António Feijó, com cenografia e figurinos de António Lagarto, música original de Vítor Rua, desenho de luz de José Carlos Coelho e Ricardo Pais, desenho de som de Francisco Leal, direcção de voz, canto e locução de Luís Madureira e desenho de esgrima de Eugénio Roque. Sensivelmente a meio do seu mandato como director do T.N.S.J (termina em Outubro de 1999), Ricardo Pais não consegue fazer o discurso sobre o seu trabalho enquanto encenador escapar à função simultânea de director artístico do S. João, reiterando uma posição que defende desde sempre: «Tal como consta da lei orgânica, é a marca do trabalho do encenador-residente que estabelece a identidade do projecto, e essa marca é simultaneamente resultado de um processo de produção e de criação. Um e outro cruzam-se inevitável e permanentemente». Posto isto, dentro e fora da peça existe a mesma obsessão - capturar o tempo, inventar processos para que a abertura a múltiplos projectos do teatro se concretizem numa corrida dentro dos prazos de uma encenação que implica, por si, os tempos da manipulação do sofisticado equipamento técnico que o teatro tem vindo a adquiri para possibilitar as ambições de qualidade que se concretizam naquilo que Ricardo Pais considera a maior conquista da sua dupla direcção: a escola de actores. Tudo isto acontece, diz, por via daquele que considera ser o seu maior defeito: «Não conseguir manter os meus projectos fechados, nem estabelecer um calendário de prioridades ou criar um limite para, a partir dele, entrar numa rotina; estou sempre a abrir novas prioridades e rotinas e a tentar ver até onde é que a casa resiste». Não é, portanto, indiferente a este espectáculo que a actividade do S. João ultrapasse as produções em estreia. É disso exemplo o início, em cima destas datas, do projecto Públicos Muito Especiais (PME), que implicará a deslocação e fidelização de conjuntos de espectadores escolhidos pelas câmaras municipais da área metropolitana do Porto (a começar por Espinho e Matosinhos) para acompanharem ao longo de um ano as produções do teatro, com acesso aos textos, ensaios, conversas com o encenador e actores durante o período de trabalho. Assim como o arranque de programas quinzenais de teatro na Rádio Nova cuja primeira emissão será simbolicamente realizada por Ricardo Pais. «A verdade é que», como diz, «neste momento, e com este cansaço, acredito absolutamente naquilo que estamos a fazer e as dúvidas que me surgem quanto ao procedimento da produção/criação relativamente a projectos como a Noite de Reis são, talvez, as dúvidas axiais de um artista produtor ou director. O que, se calhar, é saudável». Daqui decorre que a questão da capitalização do potencial de um teatro nacional em todas as suas expressões passe, na sua opinião por uma pergunta tão simples como «quanto tempo leva a pôr no lugar com os actores todas as fases de evolução do trabalho com eles em termos de aprendizagem exaustiva daquilo que constitui a matéria do seu trabalho? Este tempo deveria ser a mais-valia de um teatro nacional».

António Feio e João Reis em «Noite de Reis»

Ricardo Pais encena Shakespeare pela primeira vez e à escolha desta peça presidiram os seguintes critérios: conforme anunciara, «em ano da Expo-98 achei que seria melhor fazer comédias, ainda que esta seja uma comédia escura escrita no início do pessimismo shakespeariano das grandes tragédias». Por outro lado, afirma: «Não teria feito esta peça se não pudesse contar com estes actores. Era essencial ter cómicos com o tipo de experiência que estes têm». Noite de Reis, comédia caracterizada, como referiu o encenador, pela construção em forma plautiana, o regime episódico com mudanças de espaço sistemáticas e elipses de tempo variáveis sem unidades claras, a cadência funérea da música, as cenas rabelaisianas epifânicas da festividade e da permissividade sexual - «alternância que é muito difícil de gerir e que não permite facilmente encontrar um tom geral para o espectáculo» - fazia parte de um conjunto de obras que tratam «em lato senso do uso do disfarce no teatro». Outra das razões da escolha foi o facto de a peça se deter «na passagem do tempo e na efemeridade da beleza. Percebo agora que é um tema que me obceca por ser uma possibilidade de trabalhar aquela aresta vertiginosa entre a alegria e o medo da morte». O resultado da colaboração com António Lagarto foi, desta vez, «um uso plano do espaço que funciona como um dispositivo neutro. É uma das falsas naturalidades que o António cria e que tem um acabamento de uma enorme precisão técnica. No fundo é um espaço com dois bancos em meia lua que abrem e fecham formando um móvel com rodas. Aquilo que aparenta ser um esquema livre passível de servir para as inúmeras situações da peça, transforma-se numa clausura, o que acontece sempre. Qualquer cenário criado entre mim e o António se transforma numa clausura não só porque ele tem regras de funcionamento muito particulares mas também porque eu sou um exagerado na multiplicação dos sentidos das coisas e no aumento da sua capacidade de significação e de sinalização. O resultado é cada gesto criar uma responsabilidade que se vai articular cenicamente com várias outras e depois a capacidade das várias sínteses e a margem de manobra tornam-se diminutas». O elenco é constituído pela maioria dos actores que têm vindo a participar, mais ou menos regularmente, nos espectáculos do S. João e pelos outros que Ricardo Pais considerou essenciais para um texto desta natureza: João Reis, Micaela Cardoso, Jorge Vasques, Lígia Roque, Alberto Magassela, Carlos Gomes, Nuno M. Cardoso, Pedro Feijó Cunha e Adriano Luz, António Durães, António Feio, Cláudia Cádima e Miguel Guilherme. «Acho este elenco um luxo asiático e foi uma surpresa verificarmos, por confronto com estes actores que aqui chamei, haver uma metodologia de trabalho de actor aqui da casa na qual foi muito interessante integrar pessoas com experiências diferentes». CRISTINA PERES

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