27 anos depois de Conacri

10-01-1998
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NA MADRUGADA do dia 22 de Novembro de 1970, uma força naval de 400 homens, comandada pelo jovem capitão-tenente Alpoim Calvão, invadiu o território da Guiné-Conacri e libertou das cadeias do PAIGC 25 militares portugueses e um civil. Alguns já contavam mais de dois anos e meio de cativeiro, outros tinham ultrapassado os três anos, outro ainda - o sargento piloto-aviador António Lobato - estava quase a cumprir sete anos e meio de clausura.

Após o regresso dos prisioneiros a Portugal e antes de serem devolvidos às respectivas famílias, as altas chefias das Forças Armadas e o Governo de Marcello Caetano inventam uma história de fuga colectiva e obrigam-nos a guardar segredo para sempre. António Lobato - actualmente na reforma com o posto de major - chega a ser levado à RTP para uma entrevista com o jornalista José Mensurado. Na entrevista, testemunhada pelo ministro do Ultramar, Silva Cunha, e pelo secretário de Estado da Aeronáutica, brigadeiro Pereira do Nascimento, o piloto nega qualquer envolvimento das tropas portuguesas no processo de libertação e, com uma segurança notável, chama a si e aos seus companheiros a responsabilidade pela proeza da falsa evasão.

Com este artifício, o Governo de Lisboa tenta dar resposta à onda de indignação da comunidade internacional, que, logo após o ataque militar a Conacri, viria a reagir com particular dureza contra Portugal, pela autoria e prática do crime de violação das fronteiras de um Estado soberano e independente.

Só após a consolidação do regime de liberdade, devolvido ao país pelos acontecimentos da revolução de Abril, alguns militares que intervieram na operação começam a assumir os custos do acto. O primeiro a fazê-lo é o próprio comandante da aventura.

Num livro que publica em finais de 1976, Calvão põe fim ao silêncio e revela pormenores do ataque ao país do ditador Sekou Touré. Mas os anos passaram e nunca ninguém das Forças Armadas ou dos sucessivos governos provisórios e constitucionais pareceu preocupado com o destino dos militares que, decerto, terão vivido o pior drama das suas vidas nas imundas e escalavradas prisões do PAIGC. E os antecedentes são tantos que receiam ser formalmente dados como inexistentes, mortos ou desaparecidos em combate e de, por isso, não verem contado para efeitos de reforma o tempo que estiveram presos.

Através de iniciativas individuais, dois ex-soldados do grupo - Vítor Capítulo e Manuel de Oliveira - tentaram já, sem êxito, obter informações junto de vários departamentos das Forças Armadas. Eles e os outros querem ser reconhecidos como antigos prisioneiros de guerra e, em igual proporção, beneficiarem das mesmas regalias e atenções conferidas por um decreto-lei de Dezembro de 1974 aos militares presos na Índia, em 1961, na sequência da invasão do território pelo exército indiano.

Passados 27 anos sobre a data da operação, uma percentagem significativa dos ex-combatentes libertados por Alpoim Calvão encontra-se em condições de pobreza pungente. Um já morreu, dois vivem na Madeira, três estão no estrangeiro e outros tantos em parte incerta. Com idades compreendidas entre os 50 e 53 anos, a maioria ainda se não refez física e psicologicamente do período de terror nas cadeias de Conacri. E quase todos se queixam de doenças contraídas durante o cativeiro.

Contactado pelo EXPRESSO, um oficial do Arquivo Geral do Exército (o departamento onde se encontram todos os processos dos militares que desde meados do século XIX passaram pelas fileiras do respectivo ramo, em número superior a quatro milhões) diz que é possível que estes homens não tenham batido ainda à porta certa. Apesar das circunstâncias excepcionais de secretismo que durante vários anos rodearam a libertação e a aventura dos ex-prisioneiros, o mesmo oficial está convencido de que nenhum deles está dado como morto ou desaparecido.

No último sábado - dia em que se celebrou o 27º aniversário da operação «Mar Verde» -, os 16 elementos ainda contactáveis do grupo, a que se juntaram Alpoim Calvão e o comandante da força que os libertou da cadeia de La Montainne, comandante Cunha e Silva, reuniram-se num almoço patrocinado em Lisboa pelo EXPRESSO. Foi o primeiro encontro destes homens - os mesmos que na prisão, com dignidade e honra, nunca aceitaram as propostas do PAIGC para a leitura de uma declaração contra o Exército e o Governo portugueses a troco de um passaporte e visto para a Argélia ou para os países do Norte ou do Leste europeu.

«É o dia mais feliz da minha vida, depois do dia da libertação», afirmou emocionado, no fim do convívio, o ex-soldado Manuel Augusto Leite Silva. Também José Silva Morais, ex-primeiro-cabo de Artilharia, capturado numa noite de Abril de 68 com mais 11 companheiros, sintetizou o sentimento comum a todos: «Cumpriu-se um sonho de muitos anos. Tínhamo-nos perdido, e eu já pensava que nunca mais nos voltaríamos a encontrar. A partir de agora, nada será como dantes.»

JOSÉ MANUEL SARAIVA

NA MADRUGADA do dia 22 de Novembro de 1970, uma força naval de 400 homens, comandada pelo jovem capitão-tenente Alpoim Calvão, invadiu o território da Guiné-Conacri e libertou das cadeias do PAIGC 25 militares portugueses e um civil. Alguns já contavam mais de dois anos e meio de cativeiro, outros tinham ultrapassado os três anos, outro ainda - o sargento piloto-aviador António Lobato - estava quase a cumprir sete anos e meio de clausura.

Após o regresso dos prisioneiros a Portugal e antes de serem devolvidos às respectivas famílias, as altas chefias das Forças Armadas e o Governo de Marcello Caetano inventam uma história de fuga colectiva e obrigam-nos a guardar segredo para sempre. António Lobato - actualmente na reforma com o posto de major - chega a ser levado à RTP para uma entrevista com o jornalista José Mensurado. Na entrevista, testemunhada pelo ministro do Ultramar, Silva Cunha, e pelo secretário de Estado da Aeronáutica, brigadeiro Pereira do Nascimento, o piloto nega qualquer envolvimento das tropas portuguesas no processo de libertação e, com uma segurança notável, chama a si e aos seus companheiros a responsabilidade pela proeza da falsa evasão.

Com este artifício, o Governo de Lisboa tenta dar resposta à onda de indignação da comunidade internacional, que, logo após o ataque militar a Conacri, viria a reagir com particular dureza contra Portugal, pela autoria e prática do crime de violação das fronteiras de um Estado soberano e independente.

Só após a consolidação do regime de liberdade, devolvido ao país pelos acontecimentos da revolução de Abril, alguns militares que intervieram na operação começam a assumir os custos do acto. O primeiro a fazê-lo é o próprio comandante da aventura.

Num livro que publica em finais de 1976, Calvão põe fim ao silêncio e revela pormenores do ataque ao país do ditador Sekou Touré. Mas os anos passaram e nunca ninguém das Forças Armadas ou dos sucessivos governos provisórios e constitucionais pareceu preocupado com o destino dos militares que, decerto, terão vivido o pior drama das suas vidas nas imundas e escalavradas prisões do PAIGC. E os antecedentes são tantos que receiam ser formalmente dados como inexistentes, mortos ou desaparecidos em combate e de, por isso, não verem contado para efeitos de reforma o tempo que estiveram presos.

Através de iniciativas individuais, dois ex-soldados do grupo - Vítor Capítulo e Manuel de Oliveira - tentaram já, sem êxito, obter informações junto de vários departamentos das Forças Armadas. Eles e os outros querem ser reconhecidos como antigos prisioneiros de guerra e, em igual proporção, beneficiarem das mesmas regalias e atenções conferidas por um decreto-lei de Dezembro de 1974 aos militares presos na Índia, em 1961, na sequência da invasão do território pelo exército indiano.

Passados 27 anos sobre a data da operação, uma percentagem significativa dos ex-combatentes libertados por Alpoim Calvão encontra-se em condições de pobreza pungente. Um já morreu, dois vivem na Madeira, três estão no estrangeiro e outros tantos em parte incerta. Com idades compreendidas entre os 50 e 53 anos, a maioria ainda se não refez física e psicologicamente do período de terror nas cadeias de Conacri. E quase todos se queixam de doenças contraídas durante o cativeiro.

Contactado pelo EXPRESSO, um oficial do Arquivo Geral do Exército (o departamento onde se encontram todos os processos dos militares que desde meados do século XIX passaram pelas fileiras do respectivo ramo, em número superior a quatro milhões) diz que é possível que estes homens não tenham batido ainda à porta certa. Apesar das circunstâncias excepcionais de secretismo que durante vários anos rodearam a libertação e a aventura dos ex-prisioneiros, o mesmo oficial está convencido de que nenhum deles está dado como morto ou desaparecido.

No último sábado - dia em que se celebrou o 27º aniversário da operação «Mar Verde» -, os 16 elementos ainda contactáveis do grupo, a que se juntaram Alpoim Calvão e o comandante da força que os libertou da cadeia de La Montainne, comandante Cunha e Silva, reuniram-se num almoço patrocinado em Lisboa pelo EXPRESSO. Foi o primeiro encontro destes homens - os mesmos que na prisão, com dignidade e honra, nunca aceitaram as propostas do PAIGC para a leitura de uma declaração contra o Exército e o Governo portugueses a troco de um passaporte e visto para a Argélia ou para os países do Norte ou do Leste europeu.

«É o dia mais feliz da minha vida, depois do dia da libertação», afirmou emocionado, no fim do convívio, o ex-soldado Manuel Augusto Leite Silva. Também José Silva Morais, ex-primeiro-cabo de Artilharia, capturado numa noite de Abril de 68 com mais 11 companheiros, sintetizou o sentimento comum a todos: «Cumpriu-se um sonho de muitos anos. Tínhamo-nos perdido, e eu já pensava que nunca mais nos voltaríamos a encontrar. A partir de agora, nada será como dantes.»

JOSÉ MANUEL SARAIVA

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