José Roquette

10-10-1999
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ENTRA na sala de rompante. No rosto crispado traz ainda as marcas da derrota que, na véspera, o Sporting sofreu contra o Mónaco. Mas a nossa longa conversa irá muito além de Alvalade - clube de que é presidente - ou de saber quem é o novo treinador. A história de José Roquette, 61 anos, é maior e mais interessante do que isso. Cresceu no Porto, formou-se em Economia, iniciou em 59 a sua actividade profissional no Banco Espírito Santo. Frequentou os meios da oposição moderada, festejou o 25 de Abril, foi duas vezes preso em 11 de Março de 75, saiu de Portugal, recomeçou a vida e refez, pelo mundo, o grupo Espírito Santo, que se despedaçara contra a revolução de 74.

Após o regresso a Portugal, no final dos anos 80, decide voar sozinho. Ganha a privatização do Totta, derrapa com o Banesto, funda a «holding» Plêiade, desenvolve no Alentejo a herdade (exemplar) do Esporão, ganha a presidência do Sporting. Como ganhou, com fibra singular, quase tudo - ou tudo? - até hoje.

Tem seis filhos, é um cidadão «preocupado» com o futuro da Europa e «descrente» da moeda única. Jogador irascível de golfe, músico e praticante de astronomia, José Roquette é bem capaz de ser aquilo afinal a que vulgarmente se chama um sobredotado.

EXPRESSO - Qual é a sua mais longínqua recordação de infância?

JOSÉ ROQUETE - São duas, e muito distanciadas no tempo: uma paralisia infantil, talvez a recordação mais nítida, e o grande ciclone de 41/42! Lembro-me de ter ido com o meu pai ver as árvores a cair e os telhados a voar Com aquela inconsciência das crianças, não tomei o ciclone a sério!

A paralisia ocorreu quando eu tinha quatro anos. Não guardei sequelas, mas a doença teve uma grande influência: ajudou-me, pela vida fora, a vencer um certo tipo de coisas. E a fazer-lhes face. Ganhei, além disso, uma certa capacidade de suportar a dor física. O meu dentista até brinca comigo por causa disso

EXP. - Cresceu numa família de muitos irmãos, e julgo que terá recebido uma educação conservadora. Em que medida é que esse ambiente tradicionalista e esses valores conservadores lhe determinaram ou moldaram o carácter?

J.R. - Influenciou-me bastante. Somos uma família de 11 irmãos, fui o único que nasci em Lisboa. Cresci no Porto - para onde o meu pai se mudou depois de casado -, numa casa muito grande, fui lá educado e lá iniciei a minha vida profissional. Mas lá em casa viveu-se sempre algum clima de desinstalação. E foi talvez isso mesmo que mais me marcou e o que melhor explica a forma como hoje, com um pouco mais de 60 anos, encaro a vida: de uma forma «desinstalada». O meu pai recomeçou a sua vida profissional umas quatro, cinco vezes, o que foi um exemplo para mim. Mais tarde vim a fazê-lo, sem qualquer espécie de trauma, como uma coisa natural. No da 11 de Março de 75, estava a trabalhar no Banco Espírito Santo e fui dormir à prisão de Caxias. Não me traumatizei nem fiz disso um drama particular. São factos a que a vida deve habituar as pessoas. Toda a gente beneficia se se desinstalar Repare que um dos mais graves problemas da Europa é precisamente o da «instalação»

EXP. - Já lá vamos. Onde estudou?

J.R. - No Colégio Brotero, na Foz do Douro, desde a 1ª classe até ao final do liceu. Entrei com 16 anos na universidade, para o primeiro curso de Economia da Universidade do Porto, que então se inaugurava. Nunca liguei às notas, ia fazendo o meu curso. Como era amigo de um filho do eng. Daniel Barbosa, este dizia-me muitas vezes que quando me formasse me queria a trabalhar com ele no grupo CUF. Quando vim a Lisboa falar com o eng. Barbosa, na véspera dessa conversa jantei com uma prima minha de quem gosto muito - a mulher do comandante Ricciardi. Ao ouvir-me mencionar o encontro com Daniel Barbosa, convenceu-me a trocar a CUF pelo Banco Espírito Santo. Este destino tem o seu quê de aleatório, não é? Provavelmente, se não tem ocorrido esse jantar, a minha trajectória teria sido outra!

EXP. - Rezam as crónicas que muito cedo começou a modernizar o sector de contabilidade do Banco Espírito Santo, fazendo-o passar de uma organização quase artesanal para uma estrutura profissional e competitiva. O que o fez agir assim e ser um pouco um precursor nos caminhos de modernização da banca portuguesa?

J.R. - Iniciei a vida profissional no Porto em 59. No início de 60 mandaram-me para Lisboa substituir o adjunto do velho chefe da contabilidade do banco, o homem que criara as suas estruturas, o senhor Jean Lestang - naquela altura a grande escola da banca era o Crédit Lyonnais. Substitui então o seu adjunto, Antunes da Silva. Ora, nesse ano de 1960 foram publicados e entraram em vigor os decretos 41403 e 42641, que iriam reestruturar o sistema bancário em Portugal. Grande parte desses articulados sobreviveram até há relativamente pouco tempo. Tudo isto implicou uma alteração profundíssima na vida do banco, de modo que Jean Lestang, na altura já com uma idade avançada, me entregou nas mãos toda a papelada, dizendo-me que ele já não tinha paciência

EXP. - Foi o princípio?

J.R. - Foi um desafio: tinha de fazer tudo de novo, do princípio ao fim. Desimcubi-me o melhor que soube e criei a estrutura que hoje permanece. Como isso implicou alterar uma quantidade de serviços, ganhei grande facilidade para depois poder racionalizar e modernizar as estruturas, que estavam muito desactualizadas. Daí até introduzir em Portugal o primeiro computador Não foi bem assim, mas quase! Lembro-me que o Banco Pinto de Magalhães tinha um, nada comparável ao que conhecemos hoje, era um computador razoavelmente primitivo, com suporte de cartão perfurado Mas a partir daí foi o arranque na direcção da via informática - algo que me fascina e continuo cultivar, porque é outro modo de desinstalação: nunca deixo passar uma versão de um «software» com que trabalho sem me actualizar. Senão, perde-se o contacto com tudo!

EXP. - Na informática, uma área que o fascina, foi indiscutivelmente um precursor.

J.R. - Entendi cedo o que a informática significaria como aceleração tremenda de todos os processos tecnológicos. Para mim, é antes de mais a eficácia organizada e a velocidade de troca de informação, cujos limites possíveis, há pouco anos inconcebíveis, são hoje sucessivamente ultrapassados!

EXP. - Nesse percurso, nessa soma de desafios, houve alguém, mestres, leituras, que o tivessem influenciado?

J.R. - Na universidade houve dois professores: José António Sarmento, um dos grandes estruturantes da Faculdade de Economia. Infelizmente, morreu pouco depois. Marcou-me muito com os seus ensinamentos, não tanto pelo lado da contabilidade, mas pelo da economia de empresa e de outras áreas, as quais ensinava com grande talento, demonstrando a utilidade mais ou menos imediata que poderiam ter. E houve outro professor que me abriu os horizontes do que era o mundo - sobretudo tendo em conta que estamos a falar do Porto, uma cidade com tendência para se fechar sobre si própria - chamado Raymond Barre

EXP. - Raymond Barre a dar aulas no Porto na década de 50?

J.R. - Ele mesmo! Era professor convidado da Faculdade de Economia. Como se tratava do primeiro curso de Economia, a Universidade possuía uma dotação orçamental bastante razoável. Raymond Barre ensinava duas cadeiras semestrais, ficando no Porto por períodos de 15 dias, após o que voltava para Lyon. Tinha, já nessa altura, nos seus cursos, a grande preocupação de nos falar da Europa e de ultrapassar nas aulas os horizontes da estrita matéria académica. São coisas que hoje não são tão frequentas - ou nada frequentes! - e que tanta falta fazem à formação académica Barre guardou, devido a esses tempos, um grande carinho por Portugal, que ainda hoje mantém.

EXP. - Voltando ao banco: a sua actuação na estruturação do Espírito Santo levou-o, muito depressa, a ser um dos braços-direitos de Manuel Espírito Santo Silva, «patrão» dessa instituição?

J.R. - Foi assim porque, ao mesmo tempo, foi-se criando uma relação de grande amizade e respeito. Era uma pessoa de quem eu gostava muito, com quem mantinha um excelente entendimento. O que permitiu, com alguma rapidez, que chegasse a níveis de responsabilidade muito altos na instituição. Após o seu desaparecimento, mantive o mesmo tipo de relação com o seu filho Manuel Ricardo, infelizmente também hoje já desaparecido.EXP. - Como é que, tão novo, ia convivendo com o facto de ser um «indispensável», uma pessoa de confiança e o braço-direito do presidente do banco? Com orgulho, vaidade? Com vontade de fazer mais coisas?

J.R. - Basicamente isso, mais vontade de trabalhar. Sempre foi determinante fazer coisas com alguma dimensão e, sobretudo, com uma perspectiva de qualidade. Mas não esqueçamos que uma instituição como o Espírito Santo dava também todas as possibilidades de que fosse assim.E não esqueçamos ainda que essa época coincidiu com uma mudança de gerações. A geração anterior - que fizera do banco a maior instituição de crédito do País - consistia basicamente nos dois irmãos Silva, dois homens que, embora com vocações diferentes, foram o suporte do banco desde o início. Além, evidentemente, dos três irmãos Espírito Santo - José, Ricardo e Manuel -, cada um deles actuando no seu momento, mas todos com uma contribuição notável. Há, porém, um momento em que as gerações mais velhas dão lugar aos novos, a vida é assim Ora, a concorrência no sector bancário em Portugal sempre foi uma constante muito marcante. Era um dos sectores - e continua a sê-lo - mais concorrenciais da economia portuguesa. De forma que veio um tempo em que o Espírito Santo deixou de ser o número 1, passando ao terceiro lugar, ultrapassado pelo Português do Atlântico e, depois, pelo Pinto e Sotto Mayor - que consolidava, nas contas em Lisboa, os balcões que tinha em África. Como sempre tive um certo inconformismo e detesto perder, esta ocorrência, aliada à passagem de testemunho das gerações mais velhas, gerou um contexto e uma dinâmica muito particulares. Foi isso que permitiu essa minha aceleração dentro do Espírito Santo.

EXP. - Estamos a falar de que anos?

J.R. - Do final da década de 60 E há uma coisa engraçada: quando olho para trás não sou capaz de vislumbrar quando descobri a minha vocação de empresário: no fundo, essa vocação para correr os riscos últimos, ou para considerar que as minhas decisões não tinham já necessidade de ser referendadas a outros níveis Ou seja: o gosto pelo risco da decisão! Aliás, julgo ser esta a característica mais importante no perfil de um empresário

EXP. - e aquela que melhor o define a si?

J.R. - Ah, sobre isso não tenho a menor dúvida! O gosto pelo risco da decisão, pelo risco último, de alguma forma, pela responsabilidade última!

EXP. - O processo de decisão é sempre solitário. Pesa-lhe por vezes essa solidão?

J.R. - A decisão é sempre um acto solitário. E pesado. Se não se aprende e se não se ganha algum ritmo a lidar com essa responsabilidade, pode ser demasiado pesado Mas ainda não descobri quando surgiu essa minha vocação

EXP. - De novo a vontade ou o imperativo da «desinstalação»?

J.R. - Mas ligado outra vez a um conjunto de circunstâncias que me fez de repente descobrir que não tinha muito mais rede por baixo Aconteceu depois do 11 de Março Entre o 25 de Abril de 74 e o 11 de Março de 75, vivi um período de grandes realizações profissionais a vários títulos: o Espírito Santo recuperou o primeiro lugar, e eu, para além do que fizera em termos informáticos, introduzi alguns novos meios de gestão, relacionados fundamentalmente com a descentralização das decisões. A estrutura estava demasiado centralizada, dado o tipo de gestão usado nos anos 50 e 60. Foi por isso relativamente simples que o banco voltasse ao primeiro lugar: descentralizaram-se as decisões

EXP. - Já mencionou duas vezes o dia 11 de Março de 1975. Para falar dele temos de voltar atrás. Nesse final da década de 60, Salazar saíra de cena, Marcello Caetano governava. Qual era a sua relação com tudo isso? A política interessava-lhe? Tinha, teve, alguma espécie de militância?

J.R. - Não. Mas como fui sempre um bocado avesso ao conservadorismo, lembro-me de que em termos políticos aceitava mal o contexto da ditadura. E o professor Raymond Barre também terá ajudado a abrir certos horizontes

EXP. - Formou-se em 1958, o ano das eleições de Humberto Delgado...

J.R. - Nos professores havia uma tendência para o Estado Novo, porque a sua formação em termos históricos era mesmo essa. De certa forma, compreende-se: quer queiramos quer não, a primeira fase do Estado Novo teve importância para Portugal. Poderia ter sido continuada de outra forma que não aquela a que assistimos, após a morte do dr. Salazar, no consulado do professor Marcello Caetano e no que ocorreu depois. Mas vivi com entusiasmo esse ano do general Delgado. Aquando do comício do Porto, o general ficou no hotel Infante de Sagres. Apesar de ainda não ser moda, houve manifestações académicas, e lembro-me da minha mãe e dos meios conservadores do Porto escandalizados por Delgado dizer que demitiria Salazar se ganhasse as eleições! Uma vez mais, atraiu-me o que de contra-corrente significava aquela corrida, independentemente do que pudesse valer o general. Até a sua coragem física me atraiu! Esse momento marcou possivelmente o meu divórcio do sistema. Quando, em 69, surgiu a CDE, ou quando, já em Lisboa, fiz amizade com pessoas que tinham um percurso político totalmente diverso da estrutura conservadora do Porto, isso surgiu já em terreno suficientemente adubado

EXP. - Quem eram essas amizades?

J.R. - José Manuel Galvão Teles, Vítor Wengorovious, Luís Brás Teixeira Nessa altura - e por razões ditadas por alguma afinidade intelectual - fazíamos parte do grupo dos Casais de Nossa Senhora, que, de resto, a dado momento, passou a ter que ver muito mais com questões de outra ordem e menos com aspectos da nossa vida familiar! O nosso assistente era o padre Alexandre Nascimento, hoje cardeal de Luanda, por quem tenho grande ternura e que encontro com frequência quando vem a Portugal. Nessa altura, o padre Nascimento disse-nos que aquelas reuniões estavam longe dos propósitos iniciais e acabou com elas!

EXP. - A sua formação católica, o despertar da consciência crítica, um certo inconformismo, explicam o ter assinado, em 1965, o manifesto católico dos 101?

J.R. - Exactamente. Uma certa preocupação de consciência Fui desafiado pelas pessoas com quem naturalmente me dava nesses tempos.

EXP. - Teve problemas profissionais por causa desse manifesto?

J.R. - Não. Disse no banco que o assinara por convicção íntima.EXP. - A quem?

J.R. - Disse directamente ao dr. Manuel Espírito Santo. Respondeu-me que, se eu agira determinado pela consciência, não havia problema. A instituição a que presidia não tinha vocação política.

EXP. - Esse manifesto era obviamente contra o regime e punha já frontalmente o problema das colónias...

J.R. - Punha já o problema de África e claramente o da autodeterminação ou de uma estratégia alternativa para a África. Numa altura em que se tornava razoavelmente claro - pelo menos de um ponto de vista histórico - que ia ser muito difícil sustentar a linha política então seguida pelo regime.

EXP. - A África preocupava-o?

J.R. - Muito. Sobretudo pelo que poderia significar em termos de futuro do nosso país. A África estava dependente de determinada estratégia que eu sentia que poderia criar, a prazo, dificuldades graves. Essa componente veio também a pesar, aliás, na constituição da SEDES, um pouco mais tarde e num âmbito mais alargado, porque apareceu muito mais gente.

EXP. - Francisco Sá Carneiro era seu amigo de infância. Continuou a sê-lo pela vida fora. Falavam de política certamente

J.R. - Fomos companheiros desde os quatro, cinco anos. As nossas mães eram muito amigas, havia uma amizade e uma ligação entre as duas famílias que naturalmente prolongámos os dois. Nunca mais deixámos de falar pela vida fora. Mas não dialogava só com ele. Nesses anos do marcelismo conheci João Salgueiro, Victor Constâncio, António Guterres Era um tempo em que constantemente nos interrogávamos sobre o que se deveria fazer - e como - para responder às questões que nos afligiam: o regime, a África, as liberdades

EXP. - O marcelismo foi uma desilusão para todos?

J.R. - Foi. Após uma fase de arranque, em que - sobretudo as elites - se acreditou numa mudança, ela não ocorreu. Atribuo isso à característica muito académica do professor Marcello Caetano, um homem com uma inteligência fora de série e uma das cabeças mais bem organizadas que conheci. Vim, curiosamente, a conhecê-lo melhor no Brasil - onde ambos estávamos após o 11 de Março -, quando ia às vezes jantar a nossa casa Mas faltou-lhe algum enquadramento histórico e, sobretudo, esteve sempre muito dependente do formalismo que o levara a ser «presidente do Conselho de Ministros» O mesmo que o levou sempre a considerar que havia uma dependência em relação ao Presidente Américo Thomaz. Esse entendimento e esse enquadramento marcaram - frustraram - o marcelismo.

EXP. - Porque não chegou a integrar a Ala Liberal? Seria natural que o tivesse feito

J.R. - O Francisco, eu e o José Pedro Pinto Leite, de quem também gostava muito, falámos muito nisso. O banco, nessa época, ocupava-me 110 por cento do meu tempo, não me teria sido possível fazer as duas coisas. Mas nunca perdemos o contacto, e obviamente aplaudi o nascimento da Ala Liberal e até em termos de apoio específico fiz alguma coisa. Mais tarde, em Maio de 74, deveria ter sido um dos fundadores do PPD. Entendeu-se, porém, que aquilo que estava pela frente iria ser suficientemente complicado Não me cheguei sequer a filiar no partido. Precisamente para manter alguma distância, julgada mais útil nessa altura

Naquela fase de 74/75 era necessário assegurar a capacidade financeira do PPD, que não tinha nenhuma sobretudo para resistir ao crescendo do PC. No banco sentíamos isso diariamente, as estruturas sindicais - maioritariamente comunistas - tinham vindo todas à superfície, embora ainda não tão claramente como ocorreu após o 11 de Março. Até o rapaz que guiava o carro que eu utilizava mais frequentemente era do PC! Assisti claramente à sua tomada de poder nas instituições de crédito, com o objectivo - claríssimo! - de culminar nas nacionalizações.

EXP. - Transmitia essas preocupações a militares ou a civis?

J.R. - Na Junta de Salvação Nacional o meu diálogo mais fácil era com o general Galvão de Melo. Que me repetia: «Lá está você com os seus anticomunismos primários!» Eu que até nem sou nada primário

EXP. - Por que não alertou outros?

J.R. - Porque, numa fase subsequente, já não foi preciso alertar: a estrutura do PC tinha vindo à tona, funcionava, e fazia-o com eficácia!

EXP. - Mas, meses antes, festejara o 25 de Abril?

J.R. - Vivera essa data com um sentido de festa, por ela corresponder a algo por que eu intimamente ansiava. Aliás, não constituiu surpresa. Na SEDES havia um grande conhecimento do que se preparava: vinham mensagens para que nos preparássemos para passar a partido político, chegavam interrogações no sentido de saber se estávamos preparados para acompanhar, civilmente, o que se preparava militarmente. Tudo curiosamente feito com um certo à-vontade, apesar da PIDE. Tenho um velho amigo, o João Caetano, filho de Marcello Caetano - razão pela qual o Marcello ia por vezes jantar connosco no Brasil -, que me dizia que o pai sabia o que se passava. E aí, lá voltavam de novo os aspectos formais! E aquela limitação que basicamente, dentro da sua estrutura académica, o impedia de perceber que, historicamente, tinha nas mãos a oportunidade de liderar a mudança. Porque o MFA, como movimento, teve muito de corporativo, o que é compreensível: os militares não eram bem pagos, e duas comissões em África pesavam Independentemente do que estivesse a ocorrer no teatro de guerra, que, como se sabe, não era uniforme. Foi esta base corporativa que foi espantosamente bem aproveitada pelos comunistas no sentido de uma mudança radical. Ao contrário de outros, historicamente não considero que tenha sido o PC a iniciar o Movimento das Forças Armadas.

EXP. - Vamos falar do «seu» 11 de Março?

J.R. - Era director-geral do banco. Nesse período aconteceu-nos muitas vezes ficarmos fechados nas instalações da rua do Comércio. Ao fim do dia juntavam-se ali funcionários, empregados, mulheres de limpeza, e então seguiam-se momentos homéricos: nós ali trancados, ouvindo as reivindicações demenciais que lhes eram diariamente ditadas pelo PC. Eram reuniões agitadíssimas, até às tantas da manhã, onde aliás demos sempre excelente batalha. Tenho, de resto, muito orgulho nisso.

EXP. - No banco, o inimigo número 1 era você?

J.R. - Parece-me que sim. No final do ano de 74 os delegados sindicais «proibiram» as habituais gratificações de Natal - consideradas por eles uma «prática fascista» -, avisando que as impediriam na tesouraria. Chamei o responsável pelo sector e disse-lhe que preparasse as gratificações do costume. O homem ficou lívido e confessou-se aterrado com a reacção dos comunistas. Então atravessei a rua, entrei no Pinto e Sotto Mayor - onde estava um amigo meu que ainda está na banca, o Luís Lorena - e pedi livros de cheques da conta do Espírito Santo. Com isso foi relativamente fácil dar a volta aos fundos necessários. Mas fiz questão de ser eu a assinar os cheques todos. E quando, no início de Janeiro, esses cheques apareceram na câmara de compensação, alguns dos sindicalistas terão então descoberto que sabiam muito pouco de como as coisas se passavam na banca. E talvez fosse por me considerarem «o inimigo» que na noite do 11 de Março me enviaram para Caxias no Citroen boca-de-sapo do primeiro-ministro Vasco Gonçalves!

EXP. - Foi preso por quem?

J.R. - Apareceu-me um tipo de metralhadora, fardado de fuzileiro, chamado Rosário Dias. Em Caxias fomos todos despidos, e eu, naquela vexatória filazinha de homens nus, lembrei-me da Alemanha, há uns anos - a fila humilhante tinha tudo para me deixar algumas marcas, e deixou-as, aliás. No dia 14 ou 15, soltaram o Manuel Ricardo Espírito Santo, o Carlos de Melo e eu próprio, permanecendo os outros na prisão. Sem acusação nenhuma, não compreendemos este absurdo critério. Dias depois fui preso de novo, desta feita com um mandado de captura assinado em branco pelo Otelo. Era já suspeito de pertencer a uma «associação de malfeitores»! Acordaram-me de madrugada, batendo à porta à coronhada e perguntando pelas armas. A minha mulher fez uma malinha e parti outra vez para Caxias.

EXP. - Não lhe ocorreu sair de Portugal no intervalo das duas detenções?

J.R. - Por mais disparatado que possa parecer, nunca pensei nisso. Não tinha nenhuma razão óbvia para sair, e o facto de a banca estar já nacionalizada mostrava que os objectivos do PC tinham sido alcançados. Enganei-me: para consolidar essa vitória era fundamental permanecermos presos. Fiquei detido de Março a Julho. Esse período permitiu-me olhar para dentro, pensar o que queria fazer da vida Escrevi muita coisa que guardo. Na cela ao lado estavam os militares, Almeida Bruno, Soares Carneiro Como o cilindro de água quente não dava para os banhos das duas celas, lá organizámos um «modus vivendi»: uns tomavam de manhã, outros à noite. Nas eleições de Abril de 75, fizemos um requerimento ao comandante Xavier: queríamos votar e queríamos advogados. Nem uma coisa nem outra! Mas, inesperadamente, tivemos missa no domingo de Páscoa, celebrada pelo cónego Botelho, o que permitiu que nos víssemos todos. Lembro-me do Manuel Múrias - que ignorávamos que lá estivesse - a contar-nos que pedira para ser transferido de Peniche para Caxias, porque em Peniche cada preso sintonizava o rádio na sua estação, o que lhe tornara a vida impossível!

EXP. - Quando foi libertado?

J.R. - Antes da transferência para Monsanto passámos pela Judiciária, onde ficámos na «vala comum» dos marginais e dos drogados, o que foi complicado Iniciou-se então o processo jurídico formal, com acusações espantosas e absurdas, como a de abrir contas a emigrantes, o que consistia numa vulgar instrução do Banco de Portugal! O juiz, Jaime Rosas Dias Bravo, tinha óbvia falta de coragem, para além de uma claríssima ligação partidária Enfim. Só mais tarde, em Julho, surgiu outro juiz que, embora muito pressionado, concluiu não haver nenhuma acusação verosímil. Negociámos a caução, que foi concretizada graças a uma conta que eu tinha no Fonsecas e Burnay que ninguém se lembrara de bloquear! O meu sogro disponibilizou também alguma quantia, eram precisos 500 contos para cada um, o que na altura significava dinheiro. Duas horas depois estava em Espanha, tinha as coisas preparadas para isso. Os outros fizeram uma trajectória mais complicada, saíram pelo Norte, com a ajuda de uns ciganos... Saí pelo Caia, com um passaporte de um sujeito dez anos mais velho e com bigode! O que se procurava era sobretudo contrabando, ligava-se menos às pessoas. Recordo que se faziam na altura muitos piqueniques com louças da China e da Índia. É que, ao contrário do que se pensa, ninguém tinha dinheiro lá fora Organizavam-se então muitos desses piqueniques, cujo contrabando era o recipiente e não o conteúdo!

EXP. - Que se seguiu? Onde estavam a sua mulher e os seis filhos?

J.R. - Tinham estado na Beira, em casa da família da minha mulher. Quando fui libertado seguiram para Cádis. No dia seguinte juntei-me a eles.

EXP. - E você, como se «libertou» de tudo isso? Que queria?

J.R. - Queria um futuro diferente. Queria arquivar aquela fase da minha da vida, tinha tido tempo suficiente para pensar. Era a desinstalação outra vez

EXP. - Queria arquivar a fase da banca, essencialmente, ou era algo de mais profundo?

J.R. - Arquivar aquela trajectória, que também me impedira, de alguma forma, de participar mais activamente - em termos políticos - no que entretanto ocorrera em Portugal. Houve nitidamente ali uma nostalgia Queria de forma institucionalizada lutar contra aquilo que me levara a Caxias, e não propriamente uma carreira política. Queria regressar e, sobretudo, recuperar as ligações históricas com o PPD.

EXP. - Não foi nada disso que se seguiu!

J.R. - Às vezes as razões do coração sobrepõem-se aos nossos projectos de vida, por amadurecidos que tenham sido Quando em Cádis, recebi um telefonema do Manuel Ricardo Espírito Santo - vindo de Toledo, onde se encontrava - pedindo-me para conversarmos. Senti que poderia ser importante que eu arrancasse com eles

EXP. - Essa reunião de Toledo marcou o início da arrancada?

J.R. - Decidimos seguir uma estratégia de recuperação do grupo fora de Portugal. Havia a perspectiva de que o regresso nunca se desse Sei que, 23 anos depois, isto pode parecer estranho. Na altura não o seria tanto: Portugal não tinha conserto em termos da chamada economia livre e, sobretudo, daquilo que nós sabíamos fazer. O banco tinha um sócio em África, o City Bank, que nos disponibilizou as suas instalações de Londres, com o que isso pressupunha de apoios para relançar o grupo ES fora de Portugal. Fui para Londres - onde a minha mulher e os meus filhos se me juntaram - com o Franco Nogueira, o comandante Ricciardi e o Manuel Ricardo. E para Lausana partiram o Ricardo Salgado e o Mário Amaral. Entretanto, dentro das estratégias possíveis, o Brasil colocava-se como a melhor opção. Começámos a estudar as hipóteses de obter autorização para arrancar com uma instituição bancária, o que aconteceu meses depois. Foi o Banco Inter Atlântico, de que fui o primeiro director-presidente, numas instalações muito pequeninas . A minha mulher dizia-me, preocupadíssima: «Mas quem é que vai a esse banco?!» «Logo se verá», respondia eu Tudo isto teve o encanto e a emoção de recomeçar qualquer coisa absolutamente do zero EXP. - Como é que o Brasil reagiu a tudo isso?

J.R. - Nunca poderemos esquecer a forma como acolheu a emigração portuguesa do 25 de Abril e do 11 de Março! Perceberam que assumia uma natureza diferente da emigração tradicional e prepararam, a nível da legislação e da documentação, as estruturas necessárias. Conservo um grande reconhecimento pelo Brasil. Quando lá vou ainda hoje me vêm as lágrimas aos olhos Foi um período de trabalho intensíssimo, concretizado com a noção clara de que só muito dificilmente teríamos dimensão a curto prazo Mas também com a ideia de que, se as condições se alterassem, Portugal seria sempre o destino de retorno ou, pelo menos, a linha estratégica de uma base. Aliás, quando tudo começou efectivamente a mudar, tornou-se-me claro que a recuperação do grupo se daria em Portugal. Entretanto, foi surgindo a seguradora InterAtlântica, no Brasil; o Biscayne Bank, em Miami; a Compagnie Financière, na Suíça. Tudo isto devido ao grande activo de que se dispunha, que era o nome Espírito Santo. O símbolo de um imenso crédito internacional e duma confiança generalizada no mundo da finança.

EXP. - Foi o determinante?

J.R. - Foi importantíssimo. Mas se não tivéssemos sido suficientemente hábeis e empenhados, ou se a estratégia não fosse a correcta E, sobretudo, houve o facto de termos 40 anos nesse tempo e de ter já ocorrido a tal mudança de geração nos comandos do grupo.

O contributo que dei não foi tanto na gestão do InterAtlântico, que obviamente me ocupava, mas na criação da estrutura do grupo e naquilo que começou por ser uma gigantesca omeleta feita com pouquíssimos ovos As pessoas pensavam que havia mundos e fundos fora de Portugal e não havia rigorosamente nada!

E aqui quero lembrar um nome que não pode ser esquecido: alguns desses ovos foram disponibilizados pelo Manuel Queiroz Pereira, num sinal de total apoio e confiança. Não se pode perder esta perspectiva. Nem o seu nome. É um homem de quem tenho francamente saudade. Possibilitou a criação de uma estrutura - que ainda hoje vigora -, e foi para essa engenharia financeira que essencialmente dei o meu contributo.

EXP. - O que sentia nesses tempo de luta e recomeço?

J.R. - Percebia que estava a fazer um percurso histórico no qual nunca pensara - nem amadurecera! - quando estive preso. Mas para além do nome Espírito Santo e da ajuda de Queiroz Pereira, sem essa grande afirmação geracional de vitalidade e de capacidade de resistência as coisas simplesmente teriam desaparecido!

EXP. - Gosta de ser protagonista?

J.R. - Nunca tive necessidade de grandes protagonismos. Realizava-me no que era indispensável fazer, o que explicava, aliás, o entendimento que sempre houve entre os elementos do grupo, a ausência de tensões Mas quanto a mim, prefiro fazer as coisas bem feitas e não pôr-me em bicos dos pés Claro que a seguir à privatização do Totta tive de aceitar - por razões profissionais - um mínimo de protagonismo. Mas, por natureza, cultivo o «low profile». E tento, às vezes sem sucesso, defender a minha vida privada!

EXP. - Voltou a Portugal nos finais de 80. A esse regresso não são alheios os consulados de Mário Soares

J.R. - Mário Soares nunca se limitou a fazer apelos teóricos ao regresso da emigração portuguesa. Pelo contrário: esses apelos foram seguidos da acção do então ministro das Finanças do Bloco Central, Ernani Lopes. Foi isso que possibilitou o nosso retorno a Portugal. Um retorno concretizado com a instalação do Banco Internacional de Crédito, graças às licenças concedidas pelo Governo para que se criassem instituições privadas num sector totalmente nacionalizado! A partir das mensagens claras de Soares e da acção de Ernani Lopes, percebi que as coisas tinham virado e regressei, contra o parecer dos meus sócios, que entendiam que Portugal se matinha ainda «irrecuperável».

EXP. - Andou sempre à frente dos outros?

J.R. - Talvez tenha alguma capacidade, não digo de vidência, mas de aposta. E de gosto pelo risco. Como sou optimista, corro esses riscos numa perspectiva optimista. Voltei praticamente sozinho - embora com apoio de Lausana - e instalei-me na rua de S. Bernardo, que nessa fase funcionou sobretudo como uma plataforma de observação. Ao mesmo tempo que nascia o Banco Internacional de Crédito - e para aproveitar a fase deprimida do sector imobiliário -, iam-se fazendo alguns negócios nesse sector, como, por exemplo, a compra do Parque dos Príncipes.

EXP. - Saltando para a frente: há um momento em que decide voar sozinho e

J.R. - ... foi outra vez aquela mania da desinstalação! Foi o culto dessa ideia, dessa vontade, se quiser. Mas só o pude fazer porque havia na minha consciência o sentido de missão cumprida. Podia já partir para outra. Foi o que fiz.

EXP. - E estabeleceu-se por sua conta e risco. Beneficiando do processo de privatizações levado a cabo pelo Governo de Cavaco Silva, concorreu à privatização do Totta e Açores. Ganhou a corrida e ganhou o Totta a Belmiro de Azevedo.

J.R. - Foi um momento alto, é verdade. Mas o desfecho não foi o que eu queria Terá sido, por isso, um dos meus projectos menos conseguidos

EXP. - Por causa da história do Banesto? Julgo que a sua ideia era constituir, com o Totta e o Banesto do espanhol Mário Conde, um grande banco ibérico. Não parece que isto tenha sido nem bem compreendido nem bem aceite. O então ministro Braga de Macedo reagiu mal

J.R. - O grupo português que assegurou, pela via de Valores Ibéricos, o controlo do Totta apercebeu-se muito cedo que não havia boa-fé simétrica por parte do Banesto e rapidamente detectou o que de facto estava a acontecer. A questão foi então frontalmente posta ao Governo, que, a meu ver, não apoiou os accionistas portugueses como deveria ter feito. O chamado Projecto Morgan foi na verdade a única reformulação possível. Poderia ter funcionado se os parceiros fossem outros. E se o Banesto não tivesse sido intervencionado pelo Banco de Espanha. Mas quando tal aconteceu eu já me tinha afastado.

EXP. - Essa história marcou uma distância em relação ao Governo e ao PSD. Até lá era tido como um apoiante do então primeiro-ministro Cavaco Silva

J.R. - Guardo algum sabor amargo de tudo isso. E guardo sobretudo uma distância. E ficamos por aqui, sim?

EXP. - Vamos até Alvalade: pesou na decisão de presidir ao clube o facto de o seu avô ser o proprietário dos terrenos onde hoje mora o Sporting?

J.R. - O Sporting é muito grande para nele caber algo de «dinástico»! Foi uma coincidência histórica («Os homens e as suas circunstancias»?) o actual presidente ser neto do fundador A quem por sua vez, o avô - meu trisavó - doou os terrenos, que tanta importância estratégica têm hoje na recuperação do Sporting. E no reencontro do clube com a sua história e os seus valores tradicionais.

EXP. - O Sporting tem, na sua vida profissional e privada, a parte de leão?

J.R. - É mais uma vez uma «missão» talvez a mais difícil a que até hoje meti ombros. Como sempre, acredito que com a colaboração da minha equipa e os apoios que foi possível reunir o sucesso é possível. Falta, porém, muito caminho ainda. Mas ninguém me disse a mim - nem aos meus companheiros de jornada - que ia ser fácil. Falou-me da vida privada: o Sporting, nesta fase de profundas alterações, é totalmente absorvente. Por isso mexe por vezes com prioridades que não devem ser postas em causa. Espero, porém, que após esta fase de arranque, seja possível reencontrar um equilíbrio mais saudável.

EXP. - Em que consistem essas profundas alterações? São as sociedades desportivas, imobiliária e de serviços? Que pressupõem e a que conceitos obedecem?

J.R. - Embora o Sporting seja muito mais do que futebol profissional, depende estruturalmente deste, que é, ou deve ser, um sector da economia nacional. Como, de resto, ocorre em outros países. Em Portugal é tratado sem qualquer rigor profissional e sem racionalidade, pois tem sido quase sempre comandado por paixões às vezes no mau sentido da palavra!

As sociedades desportivas que se venham a cotar na bolsa de valores, e de que o Sporting tem sido pioneiro, são, na minha perspectiva, a única forma de introduzir rigor e gestão profissional num sector que parece querer afastar-se do sucesso. Para lhe responder melhor: no caso do Sporting, a SAD é parte de uma estrutura empresarial - já criada - que se orienta para a optimização do futebol profissional

EXP. - Sem treinador?

J.R. - Nesta altura, felizmente, já não há pessoas imprescindíveis, seja a que nível for, porque a estrutura, julgo, está suficientemente alicerçada...

EXP. - não respondeu

J.R. - É que, se envolve nessa perspectiva a questão do treinador... Teria sido fácil encontrar uma solução qualquer, mas seria irresponsável. O perfil do técnico principal tem absolutamente de se enquadrar no projecto em curso. Ao assumir, com ambição, a candidatura ao título nacional, o Sporting fê-lo consciente de que muito do que está - ainda! - à volta do futebol profissional em Portugal não assegura que o melhor ganhe!

É na busca de soluções para estas graves questões de fundo que o clube se tem empenhado há já algum tempo. Guardo a convicção de que as indispensáveis mudanças se orientarão para os valores que historicamente sempre fizeram parte da tradição e do património do Sporting.

EXP. - Ainda antes do 25 de Abril comprou - com um sócio - a herdade do Esporão, no Alentejo. Hoje, com os seus 400 hectares de vinha e as suas exemplares adegas, ela é um «ex-libris» em Portugal.

J.R. - E outra paixão! Respeitando a verdade, o Esporão, na sua origem, foi uma ideia e um projecto do Joaquim Bandeira. A ele deve a Finagra o seu arranque e eu ter-me encontrado com o Alentejo.

Mais que uma empresa, o Esporão é uma paixão pelo Portugal profundo, sofredor e ignorado; pelas terras do Alentejo e pela sua gente, a quem, ao fim de gerações e gerações, de súbito se pediu que alterasse o seu modo de vida e os seus conceitos e depois se abandonou à sua sorte Digo para mim que bancos há muitos, mas Alentejo e Esporão há só um.

EXP. - Além do Sporting, é hoje presidente da Plêiade, a «holding» que detém as suas participações em diversos sectores e investimentos. Investe em Marrocos e em Moçambique, por exemplo. O que é que falta? Amanhã como será?

J.R. - Não sei o que falta. Mas sei que neste final de século os desafios não faltam com certeza. Nunca me deixei conduzir pelo dinheiro mas pela realização de projectos que valham a pena, com os quais, sobretudo, valha a pena sonhar. Em termos empresariais tenho sobretudo uma vocação de médio e longo prazo, quase sempre em terreno difícil...

Para quem, como eu, sente a atracção africana e tem a paixão de África, há todo um mundo novo pela frente... Acredito que a África pode ser, se os homens quiserem e tiverem juízo, a grande surpresa do século XXI!

EXP. - Para terminar: no início desta conversa disse que a Europa estava demasiado «instalada». Está preocupado com a saúde da Europa?

J.R. - Preocupa-me sobretudo o seu futuro como economia competitiva num contexto de globalização. Presentemente, ela é somente um mercado onde as economias mais competitivas têm um sucesso que a Europa não consegue no conjunto. E o desemprego crescente não é senão a consequência mais imediata dessa pouca competitividade. Foi criada uma ideia mediática de que o euro iria resolver tudo O que não é senão uma total ilusão

EXP. - Drescê das virtualidades - e do sucesso - da moeda única?

J.R. - Quando muito, poderá ser uma das condições necessárias, mas está muito longe ainda de ser a suficiente. Os Estados Unidos são hoje uma história de sucesso não só porque o dólar existe mas por muitas outras razões. Entra elas, uma mobilidade geográfica de mercados que a Europa desconhece. Se houver, por exemplo, um crescimento no sector imobiliário na Costa Oeste dos EUA, é bem provável que para lá se desloquem carpinteiros ou torneiros da Costa Leste. Não estou a ver carpinteiros noruegueses a transferirem-se com essa facilidade para a Itália O desemprego crescente na Europa e decrescente na América - a ponto de já causar preocupações pela pressão sobre os salários! - não parece, infelizmente, fazer soar suficientes campainhas de alarme na Europa, onde, pasme-se, ainda se tenta abordar este problema com base em redução de horários de trabalho ou subsidiação!

EXP. - Então, como fazer?

J.R. - Julgo que a única forma de atacar consistentemente o desemprego é criando empresas e ambientes competitivos que promovam, em termos tecnológicos, o chamado emprego qualificado. Visto que o menos qualificado, irremediavelmente, emigrará para países onde o custo da mão-de-obra será, ainda durante bastantes anos, uma fracção do custo europeu.

Tudo isto recomenda que um país tão periférico como Portugal não seja apanhado sem alternativas válidas. E daí a paixão africana de que lhe falava

EXP. - Afinal, falta ainda a outra paixão: a astronomia. As estrelas não têm segredos para si...

J.R. - Ah, é outra enorme atracção. Mas é preciso tempo As estrelas mostram-nos de forma perfeita e visível a obra da Criação. Para quem, como eu, acredita numa origem e no fim da mesma...

Fotografias de ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

ENTRA na sala de rompante. No rosto crispado traz ainda as marcas da derrota que, na véspera, o Sporting sofreu contra o Mónaco. Mas a nossa longa conversa irá muito além de Alvalade - clube de que é presidente - ou de saber quem é o novo treinador. A história de José Roquette, 61 anos, é maior e mais interessante do que isso. Cresceu no Porto, formou-se em Economia, iniciou em 59 a sua actividade profissional no Banco Espírito Santo. Frequentou os meios da oposição moderada, festejou o 25 de Abril, foi duas vezes preso em 11 de Março de 75, saiu de Portugal, recomeçou a vida e refez, pelo mundo, o grupo Espírito Santo, que se despedaçara contra a revolução de 74.

Após o regresso a Portugal, no final dos anos 80, decide voar sozinho. Ganha a privatização do Totta, derrapa com o Banesto, funda a «holding» Plêiade, desenvolve no Alentejo a herdade (exemplar) do Esporão, ganha a presidência do Sporting. Como ganhou, com fibra singular, quase tudo - ou tudo? - até hoje.

Tem seis filhos, é um cidadão «preocupado» com o futuro da Europa e «descrente» da moeda única. Jogador irascível de golfe, músico e praticante de astronomia, José Roquette é bem capaz de ser aquilo afinal a que vulgarmente se chama um sobredotado.

EXPRESSO - Qual é a sua mais longínqua recordação de infância?

JOSÉ ROQUETE - São duas, e muito distanciadas no tempo: uma paralisia infantil, talvez a recordação mais nítida, e o grande ciclone de 41/42! Lembro-me de ter ido com o meu pai ver as árvores a cair e os telhados a voar Com aquela inconsciência das crianças, não tomei o ciclone a sério!

A paralisia ocorreu quando eu tinha quatro anos. Não guardei sequelas, mas a doença teve uma grande influência: ajudou-me, pela vida fora, a vencer um certo tipo de coisas. E a fazer-lhes face. Ganhei, além disso, uma certa capacidade de suportar a dor física. O meu dentista até brinca comigo por causa disso

EXP. - Cresceu numa família de muitos irmãos, e julgo que terá recebido uma educação conservadora. Em que medida é que esse ambiente tradicionalista e esses valores conservadores lhe determinaram ou moldaram o carácter?

J.R. - Influenciou-me bastante. Somos uma família de 11 irmãos, fui o único que nasci em Lisboa. Cresci no Porto - para onde o meu pai se mudou depois de casado -, numa casa muito grande, fui lá educado e lá iniciei a minha vida profissional. Mas lá em casa viveu-se sempre algum clima de desinstalação. E foi talvez isso mesmo que mais me marcou e o que melhor explica a forma como hoje, com um pouco mais de 60 anos, encaro a vida: de uma forma «desinstalada». O meu pai recomeçou a sua vida profissional umas quatro, cinco vezes, o que foi um exemplo para mim. Mais tarde vim a fazê-lo, sem qualquer espécie de trauma, como uma coisa natural. No da 11 de Março de 75, estava a trabalhar no Banco Espírito Santo e fui dormir à prisão de Caxias. Não me traumatizei nem fiz disso um drama particular. São factos a que a vida deve habituar as pessoas. Toda a gente beneficia se se desinstalar Repare que um dos mais graves problemas da Europa é precisamente o da «instalação»

EXP. - Já lá vamos. Onde estudou?

J.R. - No Colégio Brotero, na Foz do Douro, desde a 1ª classe até ao final do liceu. Entrei com 16 anos na universidade, para o primeiro curso de Economia da Universidade do Porto, que então se inaugurava. Nunca liguei às notas, ia fazendo o meu curso. Como era amigo de um filho do eng. Daniel Barbosa, este dizia-me muitas vezes que quando me formasse me queria a trabalhar com ele no grupo CUF. Quando vim a Lisboa falar com o eng. Barbosa, na véspera dessa conversa jantei com uma prima minha de quem gosto muito - a mulher do comandante Ricciardi. Ao ouvir-me mencionar o encontro com Daniel Barbosa, convenceu-me a trocar a CUF pelo Banco Espírito Santo. Este destino tem o seu quê de aleatório, não é? Provavelmente, se não tem ocorrido esse jantar, a minha trajectória teria sido outra!

EXP. - Rezam as crónicas que muito cedo começou a modernizar o sector de contabilidade do Banco Espírito Santo, fazendo-o passar de uma organização quase artesanal para uma estrutura profissional e competitiva. O que o fez agir assim e ser um pouco um precursor nos caminhos de modernização da banca portuguesa?

J.R. - Iniciei a vida profissional no Porto em 59. No início de 60 mandaram-me para Lisboa substituir o adjunto do velho chefe da contabilidade do banco, o homem que criara as suas estruturas, o senhor Jean Lestang - naquela altura a grande escola da banca era o Crédit Lyonnais. Substitui então o seu adjunto, Antunes da Silva. Ora, nesse ano de 1960 foram publicados e entraram em vigor os decretos 41403 e 42641, que iriam reestruturar o sistema bancário em Portugal. Grande parte desses articulados sobreviveram até há relativamente pouco tempo. Tudo isto implicou uma alteração profundíssima na vida do banco, de modo que Jean Lestang, na altura já com uma idade avançada, me entregou nas mãos toda a papelada, dizendo-me que ele já não tinha paciência

EXP. - Foi o princípio?

J.R. - Foi um desafio: tinha de fazer tudo de novo, do princípio ao fim. Desimcubi-me o melhor que soube e criei a estrutura que hoje permanece. Como isso implicou alterar uma quantidade de serviços, ganhei grande facilidade para depois poder racionalizar e modernizar as estruturas, que estavam muito desactualizadas. Daí até introduzir em Portugal o primeiro computador Não foi bem assim, mas quase! Lembro-me que o Banco Pinto de Magalhães tinha um, nada comparável ao que conhecemos hoje, era um computador razoavelmente primitivo, com suporte de cartão perfurado Mas a partir daí foi o arranque na direcção da via informática - algo que me fascina e continuo cultivar, porque é outro modo de desinstalação: nunca deixo passar uma versão de um «software» com que trabalho sem me actualizar. Senão, perde-se o contacto com tudo!

EXP. - Na informática, uma área que o fascina, foi indiscutivelmente um precursor.

J.R. - Entendi cedo o que a informática significaria como aceleração tremenda de todos os processos tecnológicos. Para mim, é antes de mais a eficácia organizada e a velocidade de troca de informação, cujos limites possíveis, há pouco anos inconcebíveis, são hoje sucessivamente ultrapassados!

EXP. - Nesse percurso, nessa soma de desafios, houve alguém, mestres, leituras, que o tivessem influenciado?

J.R. - Na universidade houve dois professores: José António Sarmento, um dos grandes estruturantes da Faculdade de Economia. Infelizmente, morreu pouco depois. Marcou-me muito com os seus ensinamentos, não tanto pelo lado da contabilidade, mas pelo da economia de empresa e de outras áreas, as quais ensinava com grande talento, demonstrando a utilidade mais ou menos imediata que poderiam ter. E houve outro professor que me abriu os horizontes do que era o mundo - sobretudo tendo em conta que estamos a falar do Porto, uma cidade com tendência para se fechar sobre si própria - chamado Raymond Barre

EXP. - Raymond Barre a dar aulas no Porto na década de 50?

J.R. - Ele mesmo! Era professor convidado da Faculdade de Economia. Como se tratava do primeiro curso de Economia, a Universidade possuía uma dotação orçamental bastante razoável. Raymond Barre ensinava duas cadeiras semestrais, ficando no Porto por períodos de 15 dias, após o que voltava para Lyon. Tinha, já nessa altura, nos seus cursos, a grande preocupação de nos falar da Europa e de ultrapassar nas aulas os horizontes da estrita matéria académica. São coisas que hoje não são tão frequentas - ou nada frequentes! - e que tanta falta fazem à formação académica Barre guardou, devido a esses tempos, um grande carinho por Portugal, que ainda hoje mantém.

EXP. - Voltando ao banco: a sua actuação na estruturação do Espírito Santo levou-o, muito depressa, a ser um dos braços-direitos de Manuel Espírito Santo Silva, «patrão» dessa instituição?

J.R. - Foi assim porque, ao mesmo tempo, foi-se criando uma relação de grande amizade e respeito. Era uma pessoa de quem eu gostava muito, com quem mantinha um excelente entendimento. O que permitiu, com alguma rapidez, que chegasse a níveis de responsabilidade muito altos na instituição. Após o seu desaparecimento, mantive o mesmo tipo de relação com o seu filho Manuel Ricardo, infelizmente também hoje já desaparecido.EXP. - Como é que, tão novo, ia convivendo com o facto de ser um «indispensável», uma pessoa de confiança e o braço-direito do presidente do banco? Com orgulho, vaidade? Com vontade de fazer mais coisas?

J.R. - Basicamente isso, mais vontade de trabalhar. Sempre foi determinante fazer coisas com alguma dimensão e, sobretudo, com uma perspectiva de qualidade. Mas não esqueçamos que uma instituição como o Espírito Santo dava também todas as possibilidades de que fosse assim.E não esqueçamos ainda que essa época coincidiu com uma mudança de gerações. A geração anterior - que fizera do banco a maior instituição de crédito do País - consistia basicamente nos dois irmãos Silva, dois homens que, embora com vocações diferentes, foram o suporte do banco desde o início. Além, evidentemente, dos três irmãos Espírito Santo - José, Ricardo e Manuel -, cada um deles actuando no seu momento, mas todos com uma contribuição notável. Há, porém, um momento em que as gerações mais velhas dão lugar aos novos, a vida é assim Ora, a concorrência no sector bancário em Portugal sempre foi uma constante muito marcante. Era um dos sectores - e continua a sê-lo - mais concorrenciais da economia portuguesa. De forma que veio um tempo em que o Espírito Santo deixou de ser o número 1, passando ao terceiro lugar, ultrapassado pelo Português do Atlântico e, depois, pelo Pinto e Sotto Mayor - que consolidava, nas contas em Lisboa, os balcões que tinha em África. Como sempre tive um certo inconformismo e detesto perder, esta ocorrência, aliada à passagem de testemunho das gerações mais velhas, gerou um contexto e uma dinâmica muito particulares. Foi isso que permitiu essa minha aceleração dentro do Espírito Santo.

EXP. - Estamos a falar de que anos?

J.R. - Do final da década de 60 E há uma coisa engraçada: quando olho para trás não sou capaz de vislumbrar quando descobri a minha vocação de empresário: no fundo, essa vocação para correr os riscos últimos, ou para considerar que as minhas decisões não tinham já necessidade de ser referendadas a outros níveis Ou seja: o gosto pelo risco da decisão! Aliás, julgo ser esta a característica mais importante no perfil de um empresário

EXP. - e aquela que melhor o define a si?

J.R. - Ah, sobre isso não tenho a menor dúvida! O gosto pelo risco da decisão, pelo risco último, de alguma forma, pela responsabilidade última!

EXP. - O processo de decisão é sempre solitário. Pesa-lhe por vezes essa solidão?

J.R. - A decisão é sempre um acto solitário. E pesado. Se não se aprende e se não se ganha algum ritmo a lidar com essa responsabilidade, pode ser demasiado pesado Mas ainda não descobri quando surgiu essa minha vocação

EXP. - De novo a vontade ou o imperativo da «desinstalação»?

J.R. - Mas ligado outra vez a um conjunto de circunstâncias que me fez de repente descobrir que não tinha muito mais rede por baixo Aconteceu depois do 11 de Março Entre o 25 de Abril de 74 e o 11 de Março de 75, vivi um período de grandes realizações profissionais a vários títulos: o Espírito Santo recuperou o primeiro lugar, e eu, para além do que fizera em termos informáticos, introduzi alguns novos meios de gestão, relacionados fundamentalmente com a descentralização das decisões. A estrutura estava demasiado centralizada, dado o tipo de gestão usado nos anos 50 e 60. Foi por isso relativamente simples que o banco voltasse ao primeiro lugar: descentralizaram-se as decisões

EXP. - Já mencionou duas vezes o dia 11 de Março de 1975. Para falar dele temos de voltar atrás. Nesse final da década de 60, Salazar saíra de cena, Marcello Caetano governava. Qual era a sua relação com tudo isso? A política interessava-lhe? Tinha, teve, alguma espécie de militância?

J.R. - Não. Mas como fui sempre um bocado avesso ao conservadorismo, lembro-me de que em termos políticos aceitava mal o contexto da ditadura. E o professor Raymond Barre também terá ajudado a abrir certos horizontes

EXP. - Formou-se em 1958, o ano das eleições de Humberto Delgado...

J.R. - Nos professores havia uma tendência para o Estado Novo, porque a sua formação em termos históricos era mesmo essa. De certa forma, compreende-se: quer queiramos quer não, a primeira fase do Estado Novo teve importância para Portugal. Poderia ter sido continuada de outra forma que não aquela a que assistimos, após a morte do dr. Salazar, no consulado do professor Marcello Caetano e no que ocorreu depois. Mas vivi com entusiasmo esse ano do general Delgado. Aquando do comício do Porto, o general ficou no hotel Infante de Sagres. Apesar de ainda não ser moda, houve manifestações académicas, e lembro-me da minha mãe e dos meios conservadores do Porto escandalizados por Delgado dizer que demitiria Salazar se ganhasse as eleições! Uma vez mais, atraiu-me o que de contra-corrente significava aquela corrida, independentemente do que pudesse valer o general. Até a sua coragem física me atraiu! Esse momento marcou possivelmente o meu divórcio do sistema. Quando, em 69, surgiu a CDE, ou quando, já em Lisboa, fiz amizade com pessoas que tinham um percurso político totalmente diverso da estrutura conservadora do Porto, isso surgiu já em terreno suficientemente adubado

EXP. - Quem eram essas amizades?

J.R. - José Manuel Galvão Teles, Vítor Wengorovious, Luís Brás Teixeira Nessa altura - e por razões ditadas por alguma afinidade intelectual - fazíamos parte do grupo dos Casais de Nossa Senhora, que, de resto, a dado momento, passou a ter que ver muito mais com questões de outra ordem e menos com aspectos da nossa vida familiar! O nosso assistente era o padre Alexandre Nascimento, hoje cardeal de Luanda, por quem tenho grande ternura e que encontro com frequência quando vem a Portugal. Nessa altura, o padre Nascimento disse-nos que aquelas reuniões estavam longe dos propósitos iniciais e acabou com elas!

EXP. - A sua formação católica, o despertar da consciência crítica, um certo inconformismo, explicam o ter assinado, em 1965, o manifesto católico dos 101?

J.R. - Exactamente. Uma certa preocupação de consciência Fui desafiado pelas pessoas com quem naturalmente me dava nesses tempos.

EXP. - Teve problemas profissionais por causa desse manifesto?

J.R. - Não. Disse no banco que o assinara por convicção íntima.EXP. - A quem?

J.R. - Disse directamente ao dr. Manuel Espírito Santo. Respondeu-me que, se eu agira determinado pela consciência, não havia problema. A instituição a que presidia não tinha vocação política.

EXP. - Esse manifesto era obviamente contra o regime e punha já frontalmente o problema das colónias...

J.R. - Punha já o problema de África e claramente o da autodeterminação ou de uma estratégia alternativa para a África. Numa altura em que se tornava razoavelmente claro - pelo menos de um ponto de vista histórico - que ia ser muito difícil sustentar a linha política então seguida pelo regime.

EXP. - A África preocupava-o?

J.R. - Muito. Sobretudo pelo que poderia significar em termos de futuro do nosso país. A África estava dependente de determinada estratégia que eu sentia que poderia criar, a prazo, dificuldades graves. Essa componente veio também a pesar, aliás, na constituição da SEDES, um pouco mais tarde e num âmbito mais alargado, porque apareceu muito mais gente.

EXP. - Francisco Sá Carneiro era seu amigo de infância. Continuou a sê-lo pela vida fora. Falavam de política certamente

J.R. - Fomos companheiros desde os quatro, cinco anos. As nossas mães eram muito amigas, havia uma amizade e uma ligação entre as duas famílias que naturalmente prolongámos os dois. Nunca mais deixámos de falar pela vida fora. Mas não dialogava só com ele. Nesses anos do marcelismo conheci João Salgueiro, Victor Constâncio, António Guterres Era um tempo em que constantemente nos interrogávamos sobre o que se deveria fazer - e como - para responder às questões que nos afligiam: o regime, a África, as liberdades

EXP. - O marcelismo foi uma desilusão para todos?

J.R. - Foi. Após uma fase de arranque, em que - sobretudo as elites - se acreditou numa mudança, ela não ocorreu. Atribuo isso à característica muito académica do professor Marcello Caetano, um homem com uma inteligência fora de série e uma das cabeças mais bem organizadas que conheci. Vim, curiosamente, a conhecê-lo melhor no Brasil - onde ambos estávamos após o 11 de Março -, quando ia às vezes jantar a nossa casa Mas faltou-lhe algum enquadramento histórico e, sobretudo, esteve sempre muito dependente do formalismo que o levara a ser «presidente do Conselho de Ministros» O mesmo que o levou sempre a considerar que havia uma dependência em relação ao Presidente Américo Thomaz. Esse entendimento e esse enquadramento marcaram - frustraram - o marcelismo.

EXP. - Porque não chegou a integrar a Ala Liberal? Seria natural que o tivesse feito

J.R. - O Francisco, eu e o José Pedro Pinto Leite, de quem também gostava muito, falámos muito nisso. O banco, nessa época, ocupava-me 110 por cento do meu tempo, não me teria sido possível fazer as duas coisas. Mas nunca perdemos o contacto, e obviamente aplaudi o nascimento da Ala Liberal e até em termos de apoio específico fiz alguma coisa. Mais tarde, em Maio de 74, deveria ter sido um dos fundadores do PPD. Entendeu-se, porém, que aquilo que estava pela frente iria ser suficientemente complicado Não me cheguei sequer a filiar no partido. Precisamente para manter alguma distância, julgada mais útil nessa altura

Naquela fase de 74/75 era necessário assegurar a capacidade financeira do PPD, que não tinha nenhuma sobretudo para resistir ao crescendo do PC. No banco sentíamos isso diariamente, as estruturas sindicais - maioritariamente comunistas - tinham vindo todas à superfície, embora ainda não tão claramente como ocorreu após o 11 de Março. Até o rapaz que guiava o carro que eu utilizava mais frequentemente era do PC! Assisti claramente à sua tomada de poder nas instituições de crédito, com o objectivo - claríssimo! - de culminar nas nacionalizações.

EXP. - Transmitia essas preocupações a militares ou a civis?

J.R. - Na Junta de Salvação Nacional o meu diálogo mais fácil era com o general Galvão de Melo. Que me repetia: «Lá está você com os seus anticomunismos primários!» Eu que até nem sou nada primário

EXP. - Por que não alertou outros?

J.R. - Porque, numa fase subsequente, já não foi preciso alertar: a estrutura do PC tinha vindo à tona, funcionava, e fazia-o com eficácia!

EXP. - Mas, meses antes, festejara o 25 de Abril?

J.R. - Vivera essa data com um sentido de festa, por ela corresponder a algo por que eu intimamente ansiava. Aliás, não constituiu surpresa. Na SEDES havia um grande conhecimento do que se preparava: vinham mensagens para que nos preparássemos para passar a partido político, chegavam interrogações no sentido de saber se estávamos preparados para acompanhar, civilmente, o que se preparava militarmente. Tudo curiosamente feito com um certo à-vontade, apesar da PIDE. Tenho um velho amigo, o João Caetano, filho de Marcello Caetano - razão pela qual o Marcello ia por vezes jantar connosco no Brasil -, que me dizia que o pai sabia o que se passava. E aí, lá voltavam de novo os aspectos formais! E aquela limitação que basicamente, dentro da sua estrutura académica, o impedia de perceber que, historicamente, tinha nas mãos a oportunidade de liderar a mudança. Porque o MFA, como movimento, teve muito de corporativo, o que é compreensível: os militares não eram bem pagos, e duas comissões em África pesavam Independentemente do que estivesse a ocorrer no teatro de guerra, que, como se sabe, não era uniforme. Foi esta base corporativa que foi espantosamente bem aproveitada pelos comunistas no sentido de uma mudança radical. Ao contrário de outros, historicamente não considero que tenha sido o PC a iniciar o Movimento das Forças Armadas.

EXP. - Vamos falar do «seu» 11 de Março?

J.R. - Era director-geral do banco. Nesse período aconteceu-nos muitas vezes ficarmos fechados nas instalações da rua do Comércio. Ao fim do dia juntavam-se ali funcionários, empregados, mulheres de limpeza, e então seguiam-se momentos homéricos: nós ali trancados, ouvindo as reivindicações demenciais que lhes eram diariamente ditadas pelo PC. Eram reuniões agitadíssimas, até às tantas da manhã, onde aliás demos sempre excelente batalha. Tenho, de resto, muito orgulho nisso.

EXP. - No banco, o inimigo número 1 era você?

J.R. - Parece-me que sim. No final do ano de 74 os delegados sindicais «proibiram» as habituais gratificações de Natal - consideradas por eles uma «prática fascista» -, avisando que as impediriam na tesouraria. Chamei o responsável pelo sector e disse-lhe que preparasse as gratificações do costume. O homem ficou lívido e confessou-se aterrado com a reacção dos comunistas. Então atravessei a rua, entrei no Pinto e Sotto Mayor - onde estava um amigo meu que ainda está na banca, o Luís Lorena - e pedi livros de cheques da conta do Espírito Santo. Com isso foi relativamente fácil dar a volta aos fundos necessários. Mas fiz questão de ser eu a assinar os cheques todos. E quando, no início de Janeiro, esses cheques apareceram na câmara de compensação, alguns dos sindicalistas terão então descoberto que sabiam muito pouco de como as coisas se passavam na banca. E talvez fosse por me considerarem «o inimigo» que na noite do 11 de Março me enviaram para Caxias no Citroen boca-de-sapo do primeiro-ministro Vasco Gonçalves!

EXP. - Foi preso por quem?

J.R. - Apareceu-me um tipo de metralhadora, fardado de fuzileiro, chamado Rosário Dias. Em Caxias fomos todos despidos, e eu, naquela vexatória filazinha de homens nus, lembrei-me da Alemanha, há uns anos - a fila humilhante tinha tudo para me deixar algumas marcas, e deixou-as, aliás. No dia 14 ou 15, soltaram o Manuel Ricardo Espírito Santo, o Carlos de Melo e eu próprio, permanecendo os outros na prisão. Sem acusação nenhuma, não compreendemos este absurdo critério. Dias depois fui preso de novo, desta feita com um mandado de captura assinado em branco pelo Otelo. Era já suspeito de pertencer a uma «associação de malfeitores»! Acordaram-me de madrugada, batendo à porta à coronhada e perguntando pelas armas. A minha mulher fez uma malinha e parti outra vez para Caxias.

EXP. - Não lhe ocorreu sair de Portugal no intervalo das duas detenções?

J.R. - Por mais disparatado que possa parecer, nunca pensei nisso. Não tinha nenhuma razão óbvia para sair, e o facto de a banca estar já nacionalizada mostrava que os objectivos do PC tinham sido alcançados. Enganei-me: para consolidar essa vitória era fundamental permanecermos presos. Fiquei detido de Março a Julho. Esse período permitiu-me olhar para dentro, pensar o que queria fazer da vida Escrevi muita coisa que guardo. Na cela ao lado estavam os militares, Almeida Bruno, Soares Carneiro Como o cilindro de água quente não dava para os banhos das duas celas, lá organizámos um «modus vivendi»: uns tomavam de manhã, outros à noite. Nas eleições de Abril de 75, fizemos um requerimento ao comandante Xavier: queríamos votar e queríamos advogados. Nem uma coisa nem outra! Mas, inesperadamente, tivemos missa no domingo de Páscoa, celebrada pelo cónego Botelho, o que permitiu que nos víssemos todos. Lembro-me do Manuel Múrias - que ignorávamos que lá estivesse - a contar-nos que pedira para ser transferido de Peniche para Caxias, porque em Peniche cada preso sintonizava o rádio na sua estação, o que lhe tornara a vida impossível!

EXP. - Quando foi libertado?

J.R. - Antes da transferência para Monsanto passámos pela Judiciária, onde ficámos na «vala comum» dos marginais e dos drogados, o que foi complicado Iniciou-se então o processo jurídico formal, com acusações espantosas e absurdas, como a de abrir contas a emigrantes, o que consistia numa vulgar instrução do Banco de Portugal! O juiz, Jaime Rosas Dias Bravo, tinha óbvia falta de coragem, para além de uma claríssima ligação partidária Enfim. Só mais tarde, em Julho, surgiu outro juiz que, embora muito pressionado, concluiu não haver nenhuma acusação verosímil. Negociámos a caução, que foi concretizada graças a uma conta que eu tinha no Fonsecas e Burnay que ninguém se lembrara de bloquear! O meu sogro disponibilizou também alguma quantia, eram precisos 500 contos para cada um, o que na altura significava dinheiro. Duas horas depois estava em Espanha, tinha as coisas preparadas para isso. Os outros fizeram uma trajectória mais complicada, saíram pelo Norte, com a ajuda de uns ciganos... Saí pelo Caia, com um passaporte de um sujeito dez anos mais velho e com bigode! O que se procurava era sobretudo contrabando, ligava-se menos às pessoas. Recordo que se faziam na altura muitos piqueniques com louças da China e da Índia. É que, ao contrário do que se pensa, ninguém tinha dinheiro lá fora Organizavam-se então muitos desses piqueniques, cujo contrabando era o recipiente e não o conteúdo!

EXP. - Que se seguiu? Onde estavam a sua mulher e os seis filhos?

J.R. - Tinham estado na Beira, em casa da família da minha mulher. Quando fui libertado seguiram para Cádis. No dia seguinte juntei-me a eles.

EXP. - E você, como se «libertou» de tudo isso? Que queria?

J.R. - Queria um futuro diferente. Queria arquivar aquela fase da minha da vida, tinha tido tempo suficiente para pensar. Era a desinstalação outra vez

EXP. - Queria arquivar a fase da banca, essencialmente, ou era algo de mais profundo?

J.R. - Arquivar aquela trajectória, que também me impedira, de alguma forma, de participar mais activamente - em termos políticos - no que entretanto ocorrera em Portugal. Houve nitidamente ali uma nostalgia Queria de forma institucionalizada lutar contra aquilo que me levara a Caxias, e não propriamente uma carreira política. Queria regressar e, sobretudo, recuperar as ligações históricas com o PPD.

EXP. - Não foi nada disso que se seguiu!

J.R. - Às vezes as razões do coração sobrepõem-se aos nossos projectos de vida, por amadurecidos que tenham sido Quando em Cádis, recebi um telefonema do Manuel Ricardo Espírito Santo - vindo de Toledo, onde se encontrava - pedindo-me para conversarmos. Senti que poderia ser importante que eu arrancasse com eles

EXP. - Essa reunião de Toledo marcou o início da arrancada?

J.R. - Decidimos seguir uma estratégia de recuperação do grupo fora de Portugal. Havia a perspectiva de que o regresso nunca se desse Sei que, 23 anos depois, isto pode parecer estranho. Na altura não o seria tanto: Portugal não tinha conserto em termos da chamada economia livre e, sobretudo, daquilo que nós sabíamos fazer. O banco tinha um sócio em África, o City Bank, que nos disponibilizou as suas instalações de Londres, com o que isso pressupunha de apoios para relançar o grupo ES fora de Portugal. Fui para Londres - onde a minha mulher e os meus filhos se me juntaram - com o Franco Nogueira, o comandante Ricciardi e o Manuel Ricardo. E para Lausana partiram o Ricardo Salgado e o Mário Amaral. Entretanto, dentro das estratégias possíveis, o Brasil colocava-se como a melhor opção. Começámos a estudar as hipóteses de obter autorização para arrancar com uma instituição bancária, o que aconteceu meses depois. Foi o Banco Inter Atlântico, de que fui o primeiro director-presidente, numas instalações muito pequeninas . A minha mulher dizia-me, preocupadíssima: «Mas quem é que vai a esse banco?!» «Logo se verá», respondia eu Tudo isto teve o encanto e a emoção de recomeçar qualquer coisa absolutamente do zero EXP. - Como é que o Brasil reagiu a tudo isso?

J.R. - Nunca poderemos esquecer a forma como acolheu a emigração portuguesa do 25 de Abril e do 11 de Março! Perceberam que assumia uma natureza diferente da emigração tradicional e prepararam, a nível da legislação e da documentação, as estruturas necessárias. Conservo um grande reconhecimento pelo Brasil. Quando lá vou ainda hoje me vêm as lágrimas aos olhos Foi um período de trabalho intensíssimo, concretizado com a noção clara de que só muito dificilmente teríamos dimensão a curto prazo Mas também com a ideia de que, se as condições se alterassem, Portugal seria sempre o destino de retorno ou, pelo menos, a linha estratégica de uma base. Aliás, quando tudo começou efectivamente a mudar, tornou-se-me claro que a recuperação do grupo se daria em Portugal. Entretanto, foi surgindo a seguradora InterAtlântica, no Brasil; o Biscayne Bank, em Miami; a Compagnie Financière, na Suíça. Tudo isto devido ao grande activo de que se dispunha, que era o nome Espírito Santo. O símbolo de um imenso crédito internacional e duma confiança generalizada no mundo da finança.

EXP. - Foi o determinante?

J.R. - Foi importantíssimo. Mas se não tivéssemos sido suficientemente hábeis e empenhados, ou se a estratégia não fosse a correcta E, sobretudo, houve o facto de termos 40 anos nesse tempo e de ter já ocorrido a tal mudança de geração nos comandos do grupo.

O contributo que dei não foi tanto na gestão do InterAtlântico, que obviamente me ocupava, mas na criação da estrutura do grupo e naquilo que começou por ser uma gigantesca omeleta feita com pouquíssimos ovos As pessoas pensavam que havia mundos e fundos fora de Portugal e não havia rigorosamente nada!

E aqui quero lembrar um nome que não pode ser esquecido: alguns desses ovos foram disponibilizados pelo Manuel Queiroz Pereira, num sinal de total apoio e confiança. Não se pode perder esta perspectiva. Nem o seu nome. É um homem de quem tenho francamente saudade. Possibilitou a criação de uma estrutura - que ainda hoje vigora -, e foi para essa engenharia financeira que essencialmente dei o meu contributo.

EXP. - O que sentia nesses tempo de luta e recomeço?

J.R. - Percebia que estava a fazer um percurso histórico no qual nunca pensara - nem amadurecera! - quando estive preso. Mas para além do nome Espírito Santo e da ajuda de Queiroz Pereira, sem essa grande afirmação geracional de vitalidade e de capacidade de resistência as coisas simplesmente teriam desaparecido!

EXP. - Gosta de ser protagonista?

J.R. - Nunca tive necessidade de grandes protagonismos. Realizava-me no que era indispensável fazer, o que explicava, aliás, o entendimento que sempre houve entre os elementos do grupo, a ausência de tensões Mas quanto a mim, prefiro fazer as coisas bem feitas e não pôr-me em bicos dos pés Claro que a seguir à privatização do Totta tive de aceitar - por razões profissionais - um mínimo de protagonismo. Mas, por natureza, cultivo o «low profile». E tento, às vezes sem sucesso, defender a minha vida privada!

EXP. - Voltou a Portugal nos finais de 80. A esse regresso não são alheios os consulados de Mário Soares

J.R. - Mário Soares nunca se limitou a fazer apelos teóricos ao regresso da emigração portuguesa. Pelo contrário: esses apelos foram seguidos da acção do então ministro das Finanças do Bloco Central, Ernani Lopes. Foi isso que possibilitou o nosso retorno a Portugal. Um retorno concretizado com a instalação do Banco Internacional de Crédito, graças às licenças concedidas pelo Governo para que se criassem instituições privadas num sector totalmente nacionalizado! A partir das mensagens claras de Soares e da acção de Ernani Lopes, percebi que as coisas tinham virado e regressei, contra o parecer dos meus sócios, que entendiam que Portugal se matinha ainda «irrecuperável».

EXP. - Andou sempre à frente dos outros?

J.R. - Talvez tenha alguma capacidade, não digo de vidência, mas de aposta. E de gosto pelo risco. Como sou optimista, corro esses riscos numa perspectiva optimista. Voltei praticamente sozinho - embora com apoio de Lausana - e instalei-me na rua de S. Bernardo, que nessa fase funcionou sobretudo como uma plataforma de observação. Ao mesmo tempo que nascia o Banco Internacional de Crédito - e para aproveitar a fase deprimida do sector imobiliário -, iam-se fazendo alguns negócios nesse sector, como, por exemplo, a compra do Parque dos Príncipes.

EXP. - Saltando para a frente: há um momento em que decide voar sozinho e

J.R. - ... foi outra vez aquela mania da desinstalação! Foi o culto dessa ideia, dessa vontade, se quiser. Mas só o pude fazer porque havia na minha consciência o sentido de missão cumprida. Podia já partir para outra. Foi o que fiz.

EXP. - E estabeleceu-se por sua conta e risco. Beneficiando do processo de privatizações levado a cabo pelo Governo de Cavaco Silva, concorreu à privatização do Totta e Açores. Ganhou a corrida e ganhou o Totta a Belmiro de Azevedo.

J.R. - Foi um momento alto, é verdade. Mas o desfecho não foi o que eu queria Terá sido, por isso, um dos meus projectos menos conseguidos

EXP. - Por causa da história do Banesto? Julgo que a sua ideia era constituir, com o Totta e o Banesto do espanhol Mário Conde, um grande banco ibérico. Não parece que isto tenha sido nem bem compreendido nem bem aceite. O então ministro Braga de Macedo reagiu mal

J.R. - O grupo português que assegurou, pela via de Valores Ibéricos, o controlo do Totta apercebeu-se muito cedo que não havia boa-fé simétrica por parte do Banesto e rapidamente detectou o que de facto estava a acontecer. A questão foi então frontalmente posta ao Governo, que, a meu ver, não apoiou os accionistas portugueses como deveria ter feito. O chamado Projecto Morgan foi na verdade a única reformulação possível. Poderia ter funcionado se os parceiros fossem outros. E se o Banesto não tivesse sido intervencionado pelo Banco de Espanha. Mas quando tal aconteceu eu já me tinha afastado.

EXP. - Essa história marcou uma distância em relação ao Governo e ao PSD. Até lá era tido como um apoiante do então primeiro-ministro Cavaco Silva

J.R. - Guardo algum sabor amargo de tudo isso. E guardo sobretudo uma distância. E ficamos por aqui, sim?

EXP. - Vamos até Alvalade: pesou na decisão de presidir ao clube o facto de o seu avô ser o proprietário dos terrenos onde hoje mora o Sporting?

J.R. - O Sporting é muito grande para nele caber algo de «dinástico»! Foi uma coincidência histórica («Os homens e as suas circunstancias»?) o actual presidente ser neto do fundador A quem por sua vez, o avô - meu trisavó - doou os terrenos, que tanta importância estratégica têm hoje na recuperação do Sporting. E no reencontro do clube com a sua história e os seus valores tradicionais.

EXP. - O Sporting tem, na sua vida profissional e privada, a parte de leão?

J.R. - É mais uma vez uma «missão» talvez a mais difícil a que até hoje meti ombros. Como sempre, acredito que com a colaboração da minha equipa e os apoios que foi possível reunir o sucesso é possível. Falta, porém, muito caminho ainda. Mas ninguém me disse a mim - nem aos meus companheiros de jornada - que ia ser fácil. Falou-me da vida privada: o Sporting, nesta fase de profundas alterações, é totalmente absorvente. Por isso mexe por vezes com prioridades que não devem ser postas em causa. Espero, porém, que após esta fase de arranque, seja possível reencontrar um equilíbrio mais saudável.

EXP. - Em que consistem essas profundas alterações? São as sociedades desportivas, imobiliária e de serviços? Que pressupõem e a que conceitos obedecem?

J.R. - Embora o Sporting seja muito mais do que futebol profissional, depende estruturalmente deste, que é, ou deve ser, um sector da economia nacional. Como, de resto, ocorre em outros países. Em Portugal é tratado sem qualquer rigor profissional e sem racionalidade, pois tem sido quase sempre comandado por paixões às vezes no mau sentido da palavra!

As sociedades desportivas que se venham a cotar na bolsa de valores, e de que o Sporting tem sido pioneiro, são, na minha perspectiva, a única forma de introduzir rigor e gestão profissional num sector que parece querer afastar-se do sucesso. Para lhe responder melhor: no caso do Sporting, a SAD é parte de uma estrutura empresarial - já criada - que se orienta para a optimização do futebol profissional

EXP. - Sem treinador?

J.R. - Nesta altura, felizmente, já não há pessoas imprescindíveis, seja a que nível for, porque a estrutura, julgo, está suficientemente alicerçada...

EXP. - não respondeu

J.R. - É que, se envolve nessa perspectiva a questão do treinador... Teria sido fácil encontrar uma solução qualquer, mas seria irresponsável. O perfil do técnico principal tem absolutamente de se enquadrar no projecto em curso. Ao assumir, com ambição, a candidatura ao título nacional, o Sporting fê-lo consciente de que muito do que está - ainda! - à volta do futebol profissional em Portugal não assegura que o melhor ganhe!

É na busca de soluções para estas graves questões de fundo que o clube se tem empenhado há já algum tempo. Guardo a convicção de que as indispensáveis mudanças se orientarão para os valores que historicamente sempre fizeram parte da tradição e do património do Sporting.

EXP. - Ainda antes do 25 de Abril comprou - com um sócio - a herdade do Esporão, no Alentejo. Hoje, com os seus 400 hectares de vinha e as suas exemplares adegas, ela é um «ex-libris» em Portugal.

J.R. - E outra paixão! Respeitando a verdade, o Esporão, na sua origem, foi uma ideia e um projecto do Joaquim Bandeira. A ele deve a Finagra o seu arranque e eu ter-me encontrado com o Alentejo.

Mais que uma empresa, o Esporão é uma paixão pelo Portugal profundo, sofredor e ignorado; pelas terras do Alentejo e pela sua gente, a quem, ao fim de gerações e gerações, de súbito se pediu que alterasse o seu modo de vida e os seus conceitos e depois se abandonou à sua sorte Digo para mim que bancos há muitos, mas Alentejo e Esporão há só um.

EXP. - Além do Sporting, é hoje presidente da Plêiade, a «holding» que detém as suas participações em diversos sectores e investimentos. Investe em Marrocos e em Moçambique, por exemplo. O que é que falta? Amanhã como será?

J.R. - Não sei o que falta. Mas sei que neste final de século os desafios não faltam com certeza. Nunca me deixei conduzir pelo dinheiro mas pela realização de projectos que valham a pena, com os quais, sobretudo, valha a pena sonhar. Em termos empresariais tenho sobretudo uma vocação de médio e longo prazo, quase sempre em terreno difícil...

Para quem, como eu, sente a atracção africana e tem a paixão de África, há todo um mundo novo pela frente... Acredito que a África pode ser, se os homens quiserem e tiverem juízo, a grande surpresa do século XXI!

EXP. - Para terminar: no início desta conversa disse que a Europa estava demasiado «instalada». Está preocupado com a saúde da Europa?

J.R. - Preocupa-me sobretudo o seu futuro como economia competitiva num contexto de globalização. Presentemente, ela é somente um mercado onde as economias mais competitivas têm um sucesso que a Europa não consegue no conjunto. E o desemprego crescente não é senão a consequência mais imediata dessa pouca competitividade. Foi criada uma ideia mediática de que o euro iria resolver tudo O que não é senão uma total ilusão

EXP. - Drescê das virtualidades - e do sucesso - da moeda única?

J.R. - Quando muito, poderá ser uma das condições necessárias, mas está muito longe ainda de ser a suficiente. Os Estados Unidos são hoje uma história de sucesso não só porque o dólar existe mas por muitas outras razões. Entra elas, uma mobilidade geográfica de mercados que a Europa desconhece. Se houver, por exemplo, um crescimento no sector imobiliário na Costa Oeste dos EUA, é bem provável que para lá se desloquem carpinteiros ou torneiros da Costa Leste. Não estou a ver carpinteiros noruegueses a transferirem-se com essa facilidade para a Itália O desemprego crescente na Europa e decrescente na América - a ponto de já causar preocupações pela pressão sobre os salários! - não parece, infelizmente, fazer soar suficientes campainhas de alarme na Europa, onde, pasme-se, ainda se tenta abordar este problema com base em redução de horários de trabalho ou subsidiação!

EXP. - Então, como fazer?

J.R. - Julgo que a única forma de atacar consistentemente o desemprego é criando empresas e ambientes competitivos que promovam, em termos tecnológicos, o chamado emprego qualificado. Visto que o menos qualificado, irremediavelmente, emigrará para países onde o custo da mão-de-obra será, ainda durante bastantes anos, uma fracção do custo europeu.

Tudo isto recomenda que um país tão periférico como Portugal não seja apanhado sem alternativas válidas. E daí a paixão africana de que lhe falava

EXP. - Afinal, falta ainda a outra paixão: a astronomia. As estrelas não têm segredos para si...

J.R. - Ah, é outra enorme atracção. Mas é preciso tempo As estrelas mostram-nos de forma perfeita e visível a obra da Criação. Para quem, como eu, acredita numa origem e no fim da mesma...

Fotografias de ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

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