Pretextos para pintar

22-10-1999
marcar artigo

HENRIQUE POUSÃO

António Rodrigues Inapa, 1998, 104 págs., 6090$00

António Rodrigues tinha pela frente uma tarefa particularmente difícil, um autor de obra curta e vida curtíssima (1858-1884), bem conhecido, bem e mal lido, objecto de uma excelente exposição, com não menos excelente catálogo de José Teixeira, realizada por altura do centenário da morte do pintor.

A situação «protomoderna» de Pousão, aliada à morte precoce, foram agentes de uma mitificação que vem pelo menos desde o «impressionismo» inventado por Abel Salazar e transformou o malogrado pintor num objecto de estudo que esconde algumas armadilhas e a sua obra num terreno minado.

O espaço relativamente curto dos livros desta colecção - biografia ou fotobiografia, seguida de uma série de comentários obra a obra organizados em capítulos temáticos - podia prestar-se a um simples exercício de divulgação. Tal nunca aconteceu e tal não acontece no caso presente. Houve não só a oportunidade de apresentar um conjunto de trabalhos inéditos mas também a preocupação de reler a obra, reinterpretando-a.

Para além da biografia, este trabalho tem mais duas partes, que tratam de dois temas que não o são, a Figura e a Paisagem. Afinal, todo o livro mais não é que a introdução a uma pintura em que o tema abandona o assunto para continuamente se transformar em pretexto. Pretexto para quê? Para pintar, evidentemente!

Na biografia, para além do alinhamento dos factos, António Rodrigues vai introduzindo comentários pertinentes, como o que reconstitui, a partir de uma obra desaparecida, que apenas se conhece pela sua reprodução na revista «Ocidente» (1-9-1880) uma «primeira tentativa de marcação tectónica do espaço, na acentuação da volumetria e no seu desdobramento no espelho do rio». A biografia também é aproveitada para traçar um breve apontamento sobre a recepção póstuma de Pousão desde a primeira exposição, organizada no ano em que morreu (a qual, significativamente, não mostrava nenhum dos seus excepcionais estudos de pequeno formato), até à exposição comemorativa do centenário da sua morte.

O comentário às «Figuras» mostra como estas funcionam como lugar de encontro entre uma omnipresente tradição académica, sempre visível e sempre assumida, em particular em obras tão felizes e tão bem recebidas no seu tempo como Esperando o Sucesso e Cecília, e um muito particular «requinte do inacabado» na imposição dos corpos no espaço. Mesmo numa obra plenamente escolar, como é o caso do Nu Feminino realizado ainda enquanto aluno da Academia do Porto, António Rodrigues detecta o tratamento objectual de cada componente, com especial relevo para o tratamento do pano de fundo. Obra a obra, vemos Henrique Pousão experimentar entre o pitoresco convencional da cena de género e a necessidade de construir corpos no espaço. O último comentário da série, referente a Cansada (Capri, 1882), mostra bem as raízes de uma involução possível, também patente na obra do pintor.

Henrique Pousão, «Paris à Noite sob a Neve»; em baixo, «Janela de Persianas Azuis»

A França, onde pinta um Paris à Noite sob a Neve, agora revelado, e sobretudo a Itália serão os lugares onde Henrique Pousão vai «reorganizar uma ordem espacial a partir do caos do motivo» ou da sua «insignificância» - assim se esboçava um programa que Cézanne lapidarmente definiu como «refaire Poussin d'après nature».

Este livrinho, pelo seu saber ver e dar a ver, funda o nosso olhar frente a um pintor tão raro quanto essencial pela sua situação de incerta fronteira na pintura europeia do seu tempo.

JOSÉ LUÍS PORFÍRIO

HENRIQUE POUSÃO

António Rodrigues Inapa, 1998, 104 págs., 6090$00

António Rodrigues tinha pela frente uma tarefa particularmente difícil, um autor de obra curta e vida curtíssima (1858-1884), bem conhecido, bem e mal lido, objecto de uma excelente exposição, com não menos excelente catálogo de José Teixeira, realizada por altura do centenário da morte do pintor.

A situação «protomoderna» de Pousão, aliada à morte precoce, foram agentes de uma mitificação que vem pelo menos desde o «impressionismo» inventado por Abel Salazar e transformou o malogrado pintor num objecto de estudo que esconde algumas armadilhas e a sua obra num terreno minado.

O espaço relativamente curto dos livros desta colecção - biografia ou fotobiografia, seguida de uma série de comentários obra a obra organizados em capítulos temáticos - podia prestar-se a um simples exercício de divulgação. Tal nunca aconteceu e tal não acontece no caso presente. Houve não só a oportunidade de apresentar um conjunto de trabalhos inéditos mas também a preocupação de reler a obra, reinterpretando-a.

Para além da biografia, este trabalho tem mais duas partes, que tratam de dois temas que não o são, a Figura e a Paisagem. Afinal, todo o livro mais não é que a introdução a uma pintura em que o tema abandona o assunto para continuamente se transformar em pretexto. Pretexto para quê? Para pintar, evidentemente!

Na biografia, para além do alinhamento dos factos, António Rodrigues vai introduzindo comentários pertinentes, como o que reconstitui, a partir de uma obra desaparecida, que apenas se conhece pela sua reprodução na revista «Ocidente» (1-9-1880) uma «primeira tentativa de marcação tectónica do espaço, na acentuação da volumetria e no seu desdobramento no espelho do rio». A biografia também é aproveitada para traçar um breve apontamento sobre a recepção póstuma de Pousão desde a primeira exposição, organizada no ano em que morreu (a qual, significativamente, não mostrava nenhum dos seus excepcionais estudos de pequeno formato), até à exposição comemorativa do centenário da sua morte.

O comentário às «Figuras» mostra como estas funcionam como lugar de encontro entre uma omnipresente tradição académica, sempre visível e sempre assumida, em particular em obras tão felizes e tão bem recebidas no seu tempo como Esperando o Sucesso e Cecília, e um muito particular «requinte do inacabado» na imposição dos corpos no espaço. Mesmo numa obra plenamente escolar, como é o caso do Nu Feminino realizado ainda enquanto aluno da Academia do Porto, António Rodrigues detecta o tratamento objectual de cada componente, com especial relevo para o tratamento do pano de fundo. Obra a obra, vemos Henrique Pousão experimentar entre o pitoresco convencional da cena de género e a necessidade de construir corpos no espaço. O último comentário da série, referente a Cansada (Capri, 1882), mostra bem as raízes de uma involução possível, também patente na obra do pintor.

Henrique Pousão, «Paris à Noite sob a Neve»; em baixo, «Janela de Persianas Azuis»

A França, onde pinta um Paris à Noite sob a Neve, agora revelado, e sobretudo a Itália serão os lugares onde Henrique Pousão vai «reorganizar uma ordem espacial a partir do caos do motivo» ou da sua «insignificância» - assim se esboçava um programa que Cézanne lapidarmente definiu como «refaire Poussin d'après nature».

Este livrinho, pelo seu saber ver e dar a ver, funda o nosso olhar frente a um pintor tão raro quanto essencial pela sua situação de incerta fronteira na pintura europeia do seu tempo.

JOSÉ LUÍS PORFÍRIO

marcar artigo