JoaoLima.net: Quando a realidade supera os melhores sonhos

25-12-2019
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É duma felicidade extrema ter pessoas assim para partilhar este momento que foi vivido por todos!

Estou há cerca de 10 minutos a olhar para um ecran branco e a imaginar com que letras o vou preencher. Letras que formam palavras. Palavras que transmitem sensações mas que dificilmente serão fiéis ao que passei no domingo.

Como explicar tudo? E nesta dúvida comecei finalmente a escrever e, conhecendo como me conheço, provavelmente quem queira ler este meu texto também vá precisar de resistência de maratonista!

Tal como uma rosa tem espinhos, os sonhos podem originar pesadelos. Foi o que aconteceu na véspera, em que sofri um dia terrível a nível nervoso e de ansiedade.

Quem já tem umas boas maratonas no currículo, pode achar um exagero, mas para mim era o desconhecido completo e uma distância para a qual não tenho capacidades naturais. Só com muito trabalho, dedicação absoluta e uma vontade férrea em cumprir o sonho que me alimentou durante cinco anos e meio é que pude chegar aqui. E o sábado era o último dia antes de...

Se convinha dormir bem na noite de sexta para sábado, tudo se alterou ao acordar às 4.40 e não pregar mais olho. A isso, junte-se uma tensão alta, palpitações e tremeliques. Foi este o meu menu na véspera.

Domingo, o despertador apontava para as 6 mas às 5 já estava de olhos bem abertos. Cantarolei no duche mas para me convencer que estava mais calmo. Saída de casa às previstas 7.30, chegada ao estádio e nada como despachar o que tinha que ser feito, casa de banho para a qual já se formava uma relativa fila.

O dia nem por encomenda! Temperatura ideal, sem vento nem chuva. Até o São Pedro quis colaborar para que tudo saísse perfeito!

Pelo meio, muitos atletas e amigos desejavam-me boa sorte. O aperto vai aumentando. quero sair dali para respirar um pouco e encontro o Paulo Sousa que me cumprimenta, deseja felicidades e foi testemunha do meu ataque de pânico reprimido.

Respirei fundo. O Nuno avisou-me que antes é mesmo assim e depois de começar a correr passa. Fui então em passo de aquecimento até ao carro para deixar o fato de treino, acompanhado pela Isa e João Branco que iam participar no primeiro percurso das estafetas.

Antes da prova, o sorriso não disfarça tudo o que lá ia dentro!

Regresso e está na hora de formar para a partida. O tempo está a voar. O correr no aquecimento não deu para acalmar fosse o que fosse.

Tiro! Começou. Dei uns passos apertado na multidão que se dirigia para cruzar a linha de partida e pensei: "Acalma-te! Isto é o que sempre sonhaste, não estragues tudo!!!"

Mas uma ebulição não passa com um sopro mas sim lentamente.

O pelotão foi-se alongando e ia ouvindo gritos de incentivo por parte de quem me passava e de quem ladeava a estrada nos primeiros metros.

Faço aqui uma pequena pausa para explicar que esta minha participação tinha uma bem elaborada logística de grandes amigos que não quiseram deixar de marcar presença com o seu imprescindível apoio. De 5 em 5 kms estava sempre alguém a dar-me gel. Claro que poderia ter levado comigo, mas para mim foi muito importante dividir mentalmente a Maratona em etapas de 5 kms e saber que ia encontrar a pessoa x ao km y, o que foi uma óptima táctica.

E para sentir sempre a presença dum ombro amigo, tive atletas que se foram revezando para nunca me deixaram sós. Na partida foi o casal Sandra / Nuno, a Sandra para ir até aos 10 e o Nuno seria até à Meia. E digo seria porque já tinha manifestado intenção de poder seguir um pouco mais (e esse mais era pelo meu Adamastor recta até Algés e retorno)

Regressando à corrida, antes do primeiro quilómetro sou apanhado por outro estreante, Pedro Carvalho, a quem desejo a melhor sorte. E aí segue ele em bom estilo, enquanto nos juntámos ao José Magro e Artur Beja, com quem iríamos até ao retorno em Algés.

Já vamos no segundo quilómetro, na Gago Coutinho, quando questiono ao Nuno se era mesmo verdade com o correr os nervos passarem. Ele diz-me que vão passar mas o que é certo é que no estado que vou, as pernas mexem-se de forma rígida e não vou em boas condições. 

Jorge no abastecimento dos 5 kms. Quem sabe, nunca esquece

Entretenho-me com a subida para o Areeiro e já em plena Avenida de Roma chegam os 5 quilómetros e o primeiro abastecimento de gel, dado pelo Jorge Branco que, recordando-se do tempo que colaborou em diversas organizações, disse "a ver se me lembro como isto se faz". 

Passo a primeira vez pelo Gonçalo Seabra que irei apanhar mais vezes ao longo do percurso a tirar fotografias e a gritar-me "é hoje, João!" e de repente sinto a pressão a deixar-me, o corpo a descontrair, a passada a ficar natural e o prazer de corrida a aparecer. Estávamos nos 5, 5 kms e iria ter um período inacreditavelmente belo durante quase 25 kms. 

O alcatrão ia desaparecendo debaixo dos pés, o conta-quilómetros a aumentar sem esforço e o sonho a tomar forma.

Perto do Estádio do Sporting, passo por um atleta que tem escrito nas costas "57 anos, 244 Maratonas e agora avô". Cumprimenta-me. Era o Rui Cabral, o português com maior número de Maratonas. Meto-me com ele pelas 244 e esclarece-me que já são 251, ainda não tinha actualizado o número nas costas e que para a semana é mais uma na Holanda, onde reside. 

Se já pensava ser tão difícil fazer uma, agora que sei o que custa, mais me espanta este número!

O sorriso não engana. Tudo estava perfeito!

O cartaz amarelo "Força Pappi" 

E com os quilómetros a voarem, pouco antes dos 10 tenho a grata surpresa de ver o Rúben a filmar e a Joana a empunhar um cartaz, amarelo pois então, com "Força Pappi!". 

Cada vez mais bem disposto e a tirar um prazer enorme do momento, vou para passar o pórtico dos 10, passo pelo João Branco que já tinha feito a sua estafeta e vejo a Mafalda (que me deu o gel dos 10 kms), o Ricardo e a Isa. Pergunto-lhe pela sua estafeta e fico muito feliz quando soube que dizimou o seu record pessoal dos 10. Sempre lhe disse que vai longe! 

A Sandra ficou aí e até me esquecia de lhe agradecer quando parou!

10 kms e em grande!

Continuámos, enquanto o José Magro ia regularmente falando de comida, o que entretinha e divertia. Passo por uma estrangeira a quem dou um "thumbs up" (não se esqueçam dela). O espantoso é que nem dava pelo tempo passar. Aquela recta grande junto à linha de comboios, tanto apareceu como logo acabou e surgiu novamente o Jorge Branco a dar-me o gel dos 15, enquanto o Egas registava o momento para a posteridade. 

 E o Jorge voou dos 5 para os 15 para novo gel

Na José Malhoa novamente o Gonçalo Seabra a tirar mais fotos e novos incentivos.

Vejo a placa dos 16, passamos por uma alemã que aos 50 anos fazia a sua 50ª Maratona e aparece a placa dos 17. Comento ao Nuno " Nem dei por este quilómetro passar!". Quase de seguida, placa dos 18 e reforço "Os quilómetros estão a passar e eu nem os sinto" (não se esqueçam desta frase quando chegar aos 41...) e vamos descendo para os Restauradores.  Numa Maratona a noção de distâncias é muito diferente. Sinto-me muito bem mas tenho a preocupação de como irei reagir na recta que dá sempre cabo de mim. O Nuno irá até aos 21 e depois "pega ao serviço" a Lúcia. Mas dois são sempre melhor do que um e o Nuno já tem muita experiência de Maratona e pergunto-lhe um pouco a medo o que vai fazer. Diz-me que vai continuar até aos 35, o que é uma excelente notícia!

Quase a primeira metade concluída e o prazer e boa disposição cada vez melhores

Aos 20, e continuado a distribuir sorrisos, recebo o gel da Mafalda, a Lúcia junta-se, a Sandra exulta, e mais à frente a Isa e a Rute aplaudem (a Rute tinha terminado o 2º percurso da estafeta com um espectacular record pessoal aos 10. Outra atleta com imenso futuro!)

Os quilómetros seguintes foram de pura diversão e, pela primeira vez, nem dei conta daquela tão temida recta até Algés. Muitos e muitos atletas cruzavam e incentivavam-me, o que é uma força enorme. Alguns, nem os reconhecia! O Artur Beja comentava que tinha que passar a fazer as provas ao meu lado para ouvir aplausos! Foram momentos inesquecíveis.   

A Joana deu-me o gel dos 25 em Belém e testemunhou o quanto ia bem.

E ainda mais aos 25...

Começamos a aproximar do retorno e o gás começa a já não ter a mesma força. Vou dando uns toques no ombro do Nuno para ele não se entusiasmar com o andamento. A Lúcia vai controlando para se manter sempre ao meu lado.

Quase a darmos a volta no retorno, comento "acho que estou a entrar em crise". 

Fazemos o retorno e mais à frente, pumba! Nariz no muro!

Sempre disse que queria conhecer o que era isso do muro. Agora, já conheço mas... não é nada bom! 

Durou uns 3 quilómetros, período no qual cada levantar de pé para uma passada parece toneladas de esforço, a energia esgotada, uma sensação de fadiga extrema. Alturas houve que tive que andar. Colocava então uma meta, estilo "quando chegarmos àquele copo ali no chão, retomo". Doía ver como o copo se aproximava e tinha que retomar, mas chegado lá, ia buscar as forças ao sonho de entrar no estádio em direcção à meta, e corria. 

Uma vez cheguei mesmo a desabafar "eu não vou conseguir", ao que o Nuno e Lúcia me iam "batendo" mas logo de seguida estava a correr. Essa frase foi dita mais com a intenção de me provocar reacção. Ao ouvir essa frase que me agredia, reagi. E a Lúcia e o Nuno, ouviram dizer-me isso, vêm-me logo de seguida a correr e devem ter pensado que eu tinha pirado de vez!

Não é um sorriso. Já é um esgar de esforço em pleno muro

Entretanto, pouco depois do início do muro, já tinha passado pela Joana em Belém, gel dos 30 kms, que constatou que aquele que tinha passado aos 25, não tinha nada a ver com o dos 30...

Ao aproximar-nos dos 35, já corria o tempo quase todo, o muro tinha ficado para trás mas tinha acelerado o natural processo de fadiga. O Nuno ficou aos 35 kms, a Lúcia era para ter ficado mas estoicamente decidiu ir até ao fim, e entrou o ultra-maratonista Jorge Branco ao serviço, ele que tanto me aturou nos últimos meses, com todas as minhas dúvidas e receios.

A Mafalda transmite-me a sua força mas a cara diz tudo

Fomos uns pedaços a correr e uns bocadinhos a recuperar. Em plena Almirante Reis, a tal atleta a quem dei um "thumbs up", passou-me e retribuiu o mesmo gesto (mas a história com ela ainda não vai acabar aqui).

Comecei a sentir-me melhor e acreditei que não iria parar até ao final. Se assim fosse, algo por mim nunca imaginado iria acontecer, iria acabar com um tempo nas 4 horas, com cinquenta e tal minutos mas na casa das 4!

É então que começo a ser atacado com ameaças de cãibras, o que me obrigava a ter que andar uns metros, passar e retomar o andamento. Fui assim até aos 41.

Aí, senti ter esgotado toda e qualquer força, toda e qualquer energia. Andei um pouco mas o Gonçalo Seabra estava novamente a fotografar mais à frente e, conjuntamente com os seus acompanhantes, começaram a bater palmas ritmadas. Serviu como mola para retomar a corrida. 

Como uma simples palavra, um simples gesto, tem tanta importância aquando grandes esforços!

É então que chegámos à placa dos 41. A Lúcia aos pulos "João, 41!, João 41!, Falta um!!!" Lembram-se do que disse como os quilómetros estavam a passar que nem os notava por volta dos 16/18? Pois a minha reacção foi "Ainda um!!!" Completamente esgotado, um quilómetro não tem 1.000 metros, é quase uma Maratona em si!

Lá me fui aguentando, sabe-se lá como. Começa a cheirar a estádio! Curvamos para a Rio de Janeiro, o Pedro Carvalho, já maratonista, filma e incentiva. Começo a subir. Pessoal conhecido vem incentivar mas páro de repente, nova ameaça de cãibra! Sei lá se com os aplausos e gritos, passa logo e retomo. Curvo, entro no complexo e vejo ao fundo o portão para entrar para a pista! O Jorge a a Lúcia ficam ali mas ainda ouço o prometido grito do Jorge: "João Lima Maratonista!"

A sonhada entrada no estádio está a uma dezena de metros. Ao longe, Isa e Rute aplaudem

Todos os meus sonhos tinham a mesma imagem, entrar no estádio, dar a volta à pista e cortar a meta. Essa imagem estava à minha frente! Afinal as miragens realizam-se!

Aproximo-me do portão. Do lado direito a Isa e Rute aplaudem e gritam, no lado esquerdo o mesmo se passa com a Sandra e o Nuno. Interiormente, sorri, acenei, agradeci. Exteriormente, nada mais conseguia fazer do que canalizar as energias que já não tinha para as pernas.   

Cheguei à pista!

Estou em plena pista. Pela primeira vez após muitos últimos quilómetros, deixaram de me doer as palmas dos pés. Piso o tartan e parece que vou nas nuvens. À minha frente o Mayer Raposo e o Luís Oliveira. Na passada que levo, e que fui buscar não sei onde, não consigo reduzir e sou forçado a passá-los. Incentivam-me mas nem conseguir balbuciar o que quer que fosse. Se algum deles estiver a ler, compreende de certeza o que ali passamos.

Vou cortar a meta!

Acabei a curva, a meta está à minha frente e aproxima-se a cada passada. Ouço o Rúben, o Ricardo e mais vozes que não reconheci. A meta está ali! Eu, João Paulo Santos Lima, vou conseguir concluir uma Maratona! Eu, João Paulo Santos Lima, aguentei-me a correr durante 5 horas! Eu, dei uma lição a mim próprio! 

Levanto os braços. Meta. Vejo em frente a Mafalda e a Joana. Abraço-me a cada uma.  A Joana mostra-me outro cartaz amarelo "Dreams do come true!". Recebo os parabéns do Zé Gaspar e Carlos Viana Rodrigues da AMMA e António Campos da Xistarca.

Sou Maratonista!

Eu que sempre imaginei que não aguentasse as lágrimas na meta, estava com uma emoção tão mais forte que fiquei sem reacção. Absorvia tudo mas sem conseguir reagir.

Recebo o saco e os parabéns, e em frente está o Sequeira e a Júlia. Era uma velha promessa do Sequeira ser ele a colocar-me a medalha. Recebo-a e continuo sem conseguir reagir. 

 O casal Sequeira / Júlia colocam-me a medalha. Eu estou sem saber como

Vou para sair e aparece o casal Rui / Susana que felicitam e nos fotografam (é a última fotografia deste artigo). À frente, já lá estão a Isa e a Rute e começam a chegar os restantes.

E eu vou andando. Queria que me gravassem o nome e tempo na medalha e dirijo-me para junto do pavilhão. 

Mas antes, foto deste grupo maravilhoso. E umas inesperadas prendas. O Nuno, grande cartoonista, oferece-me uma caricatura alusiva à Maratona onde todo o apoio são gatos. Mais exactamente 8, tantos quantos os que tenho. E o Jorge Branco sai-se com um troféu com placa "João Lima Maratonista".

Esta maratona não foi só minha mas de muitos!

 O cartoon do Nuno

Até troféu do Jorge Branco tive direito!

Como agradecer tudo o que me fizeram, apoiaram e aturaram? Se não há palavras, também não há reacções possíveis, e eu continuei sem conseguir exteriorizar tudo o que me ia na alma.

Ao entrar no pavilhão para a gravação da medalha, está a sair a tal estrangeira do "thumbs up". Vem eufórica e ao ver-me dá um grito "We did it!". Respondo com "Yeah!" enquanto batemos as mãos e acrescento "It was my first", ao que ela responde aos berros "Me too!". Como é boa a sensação de superação!

A medalha e a respectiva gravação

Algumas horas depois, ao ver a classificação, apanhei um enorme susto. Não estou classificado! Quase em pânico ligo para o Sequeira que me esclarece, poucos minutos depois, que o meu registo está apanhado, para não me preocupar.

Segundo parece, nos controlos de passagem funcionou tudo perfeito mas na chegada muitos falharam. Como felizmente há o filme da chegada, estão a apanhar todos e, ao que consta, os números finais são impressionantes!

Se dúvidas houvesse, a camisola que oferecem no final bem diz "I finished Lisbon Maratahon"

Acabou! Consegui! Em imensas mensagens de felicitações, muitas falam na próxima. Não sei se haverá, nem digo que não haja.

Neste momento tenho que acabar a Maratona na minha cabeça. Foram anos a sonhar, um último ano a idealizar, e estes 3 meses focado constantemente nela. 

Cada passada minha em treino ou corrida, cada acto, cada decisão, estava sempre a Maratona por trás.

Preciso agora de descansar, regressar às minhas habituais corridas de 10 kms a Meias-maratonas. Tirar todo o prazer de correr. Sem outros objectivos. 

Sei que ainda me falta um, baixar dos 50 minutos aos 10 kms, mas só quando me sentir capaz, se é que torno a regressar a uma velocidade dessas pois os anos vão avançando.

Agora não planeio nada. Apenas as minhas corridas e disfrutar desta sensação de superação inexplicável.

Não há palavras para agradecer a todos os que me apoioram, fosse de forma mais presente, fosse com qualquer simples palavra. 

Guardo tudo no meu coração. 

(Aceder ao album com 913) Fotografias

(Mafalda Lima, Joana Lima, Ricardo Lima, Rúben Gonçalves, Sandra Martins, Nuno Espirito Santo, Egas Branco)

Uma mais que justa foto. Sem a Mafalda, nada seria, nada faria

 

É duma felicidade extrema ter pessoas assim para partilhar este momento que foi vivido por todos!

Estou há cerca de 10 minutos a olhar para um ecran branco e a imaginar com que letras o vou preencher. Letras que formam palavras. Palavras que transmitem sensações mas que dificilmente serão fiéis ao que passei no domingo.

Como explicar tudo? E nesta dúvida comecei finalmente a escrever e, conhecendo como me conheço, provavelmente quem queira ler este meu texto também vá precisar de resistência de maratonista!

Tal como uma rosa tem espinhos, os sonhos podem originar pesadelos. Foi o que aconteceu na véspera, em que sofri um dia terrível a nível nervoso e de ansiedade.

Quem já tem umas boas maratonas no currículo, pode achar um exagero, mas para mim era o desconhecido completo e uma distância para a qual não tenho capacidades naturais. Só com muito trabalho, dedicação absoluta e uma vontade férrea em cumprir o sonho que me alimentou durante cinco anos e meio é que pude chegar aqui. E o sábado era o último dia antes de...

Se convinha dormir bem na noite de sexta para sábado, tudo se alterou ao acordar às 4.40 e não pregar mais olho. A isso, junte-se uma tensão alta, palpitações e tremeliques. Foi este o meu menu na véspera.

Domingo, o despertador apontava para as 6 mas às 5 já estava de olhos bem abertos. Cantarolei no duche mas para me convencer que estava mais calmo. Saída de casa às previstas 7.30, chegada ao estádio e nada como despachar o que tinha que ser feito, casa de banho para a qual já se formava uma relativa fila.

O dia nem por encomenda! Temperatura ideal, sem vento nem chuva. Até o São Pedro quis colaborar para que tudo saísse perfeito!

Pelo meio, muitos atletas e amigos desejavam-me boa sorte. O aperto vai aumentando. quero sair dali para respirar um pouco e encontro o Paulo Sousa que me cumprimenta, deseja felicidades e foi testemunha do meu ataque de pânico reprimido.

Respirei fundo. O Nuno avisou-me que antes é mesmo assim e depois de começar a correr passa. Fui então em passo de aquecimento até ao carro para deixar o fato de treino, acompanhado pela Isa e João Branco que iam participar no primeiro percurso das estafetas.

Antes da prova, o sorriso não disfarça tudo o que lá ia dentro!

Regresso e está na hora de formar para a partida. O tempo está a voar. O correr no aquecimento não deu para acalmar fosse o que fosse.

Tiro! Começou. Dei uns passos apertado na multidão que se dirigia para cruzar a linha de partida e pensei: "Acalma-te! Isto é o que sempre sonhaste, não estragues tudo!!!"

Mas uma ebulição não passa com um sopro mas sim lentamente.

O pelotão foi-se alongando e ia ouvindo gritos de incentivo por parte de quem me passava e de quem ladeava a estrada nos primeiros metros.

Faço aqui uma pequena pausa para explicar que esta minha participação tinha uma bem elaborada logística de grandes amigos que não quiseram deixar de marcar presença com o seu imprescindível apoio. De 5 em 5 kms estava sempre alguém a dar-me gel. Claro que poderia ter levado comigo, mas para mim foi muito importante dividir mentalmente a Maratona em etapas de 5 kms e saber que ia encontrar a pessoa x ao km y, o que foi uma óptima táctica.

E para sentir sempre a presença dum ombro amigo, tive atletas que se foram revezando para nunca me deixaram sós. Na partida foi o casal Sandra / Nuno, a Sandra para ir até aos 10 e o Nuno seria até à Meia. E digo seria porque já tinha manifestado intenção de poder seguir um pouco mais (e esse mais era pelo meu Adamastor recta até Algés e retorno)

Regressando à corrida, antes do primeiro quilómetro sou apanhado por outro estreante, Pedro Carvalho, a quem desejo a melhor sorte. E aí segue ele em bom estilo, enquanto nos juntámos ao José Magro e Artur Beja, com quem iríamos até ao retorno em Algés.

Já vamos no segundo quilómetro, na Gago Coutinho, quando questiono ao Nuno se era mesmo verdade com o correr os nervos passarem. Ele diz-me que vão passar mas o que é certo é que no estado que vou, as pernas mexem-se de forma rígida e não vou em boas condições. 

Jorge no abastecimento dos 5 kms. Quem sabe, nunca esquece

Entretenho-me com a subida para o Areeiro e já em plena Avenida de Roma chegam os 5 quilómetros e o primeiro abastecimento de gel, dado pelo Jorge Branco que, recordando-se do tempo que colaborou em diversas organizações, disse "a ver se me lembro como isto se faz". 

Passo a primeira vez pelo Gonçalo Seabra que irei apanhar mais vezes ao longo do percurso a tirar fotografias e a gritar-me "é hoje, João!" e de repente sinto a pressão a deixar-me, o corpo a descontrair, a passada a ficar natural e o prazer de corrida a aparecer. Estávamos nos 5, 5 kms e iria ter um período inacreditavelmente belo durante quase 25 kms. 

O alcatrão ia desaparecendo debaixo dos pés, o conta-quilómetros a aumentar sem esforço e o sonho a tomar forma.

Perto do Estádio do Sporting, passo por um atleta que tem escrito nas costas "57 anos, 244 Maratonas e agora avô". Cumprimenta-me. Era o Rui Cabral, o português com maior número de Maratonas. Meto-me com ele pelas 244 e esclarece-me que já são 251, ainda não tinha actualizado o número nas costas e que para a semana é mais uma na Holanda, onde reside. 

Se já pensava ser tão difícil fazer uma, agora que sei o que custa, mais me espanta este número!

O sorriso não engana. Tudo estava perfeito!

O cartaz amarelo "Força Pappi" 

E com os quilómetros a voarem, pouco antes dos 10 tenho a grata surpresa de ver o Rúben a filmar e a Joana a empunhar um cartaz, amarelo pois então, com "Força Pappi!". 

Cada vez mais bem disposto e a tirar um prazer enorme do momento, vou para passar o pórtico dos 10, passo pelo João Branco que já tinha feito a sua estafeta e vejo a Mafalda (que me deu o gel dos 10 kms), o Ricardo e a Isa. Pergunto-lhe pela sua estafeta e fico muito feliz quando soube que dizimou o seu record pessoal dos 10. Sempre lhe disse que vai longe! 

A Sandra ficou aí e até me esquecia de lhe agradecer quando parou!

10 kms e em grande!

Continuámos, enquanto o José Magro ia regularmente falando de comida, o que entretinha e divertia. Passo por uma estrangeira a quem dou um "thumbs up" (não se esqueçam dela). O espantoso é que nem dava pelo tempo passar. Aquela recta grande junto à linha de comboios, tanto apareceu como logo acabou e surgiu novamente o Jorge Branco a dar-me o gel dos 15, enquanto o Egas registava o momento para a posteridade. 

 E o Jorge voou dos 5 para os 15 para novo gel

Na José Malhoa novamente o Gonçalo Seabra a tirar mais fotos e novos incentivos.

Vejo a placa dos 16, passamos por uma alemã que aos 50 anos fazia a sua 50ª Maratona e aparece a placa dos 17. Comento ao Nuno " Nem dei por este quilómetro passar!". Quase de seguida, placa dos 18 e reforço "Os quilómetros estão a passar e eu nem os sinto" (não se esqueçam desta frase quando chegar aos 41...) e vamos descendo para os Restauradores.  Numa Maratona a noção de distâncias é muito diferente. Sinto-me muito bem mas tenho a preocupação de como irei reagir na recta que dá sempre cabo de mim. O Nuno irá até aos 21 e depois "pega ao serviço" a Lúcia. Mas dois são sempre melhor do que um e o Nuno já tem muita experiência de Maratona e pergunto-lhe um pouco a medo o que vai fazer. Diz-me que vai continuar até aos 35, o que é uma excelente notícia!

Quase a primeira metade concluída e o prazer e boa disposição cada vez melhores

Aos 20, e continuado a distribuir sorrisos, recebo o gel da Mafalda, a Lúcia junta-se, a Sandra exulta, e mais à frente a Isa e a Rute aplaudem (a Rute tinha terminado o 2º percurso da estafeta com um espectacular record pessoal aos 10. Outra atleta com imenso futuro!)

Os quilómetros seguintes foram de pura diversão e, pela primeira vez, nem dei conta daquela tão temida recta até Algés. Muitos e muitos atletas cruzavam e incentivavam-me, o que é uma força enorme. Alguns, nem os reconhecia! O Artur Beja comentava que tinha que passar a fazer as provas ao meu lado para ouvir aplausos! Foram momentos inesquecíveis.   

A Joana deu-me o gel dos 25 em Belém e testemunhou o quanto ia bem.

E ainda mais aos 25...

Começamos a aproximar do retorno e o gás começa a já não ter a mesma força. Vou dando uns toques no ombro do Nuno para ele não se entusiasmar com o andamento. A Lúcia vai controlando para se manter sempre ao meu lado.

Quase a darmos a volta no retorno, comento "acho que estou a entrar em crise". 

Fazemos o retorno e mais à frente, pumba! Nariz no muro!

Sempre disse que queria conhecer o que era isso do muro. Agora, já conheço mas... não é nada bom! 

Durou uns 3 quilómetros, período no qual cada levantar de pé para uma passada parece toneladas de esforço, a energia esgotada, uma sensação de fadiga extrema. Alturas houve que tive que andar. Colocava então uma meta, estilo "quando chegarmos àquele copo ali no chão, retomo". Doía ver como o copo se aproximava e tinha que retomar, mas chegado lá, ia buscar as forças ao sonho de entrar no estádio em direcção à meta, e corria. 

Uma vez cheguei mesmo a desabafar "eu não vou conseguir", ao que o Nuno e Lúcia me iam "batendo" mas logo de seguida estava a correr. Essa frase foi dita mais com a intenção de me provocar reacção. Ao ouvir essa frase que me agredia, reagi. E a Lúcia e o Nuno, ouviram dizer-me isso, vêm-me logo de seguida a correr e devem ter pensado que eu tinha pirado de vez!

Não é um sorriso. Já é um esgar de esforço em pleno muro

Entretanto, pouco depois do início do muro, já tinha passado pela Joana em Belém, gel dos 30 kms, que constatou que aquele que tinha passado aos 25, não tinha nada a ver com o dos 30...

Ao aproximar-nos dos 35, já corria o tempo quase todo, o muro tinha ficado para trás mas tinha acelerado o natural processo de fadiga. O Nuno ficou aos 35 kms, a Lúcia era para ter ficado mas estoicamente decidiu ir até ao fim, e entrou o ultra-maratonista Jorge Branco ao serviço, ele que tanto me aturou nos últimos meses, com todas as minhas dúvidas e receios.

A Mafalda transmite-me a sua força mas a cara diz tudo

Fomos uns pedaços a correr e uns bocadinhos a recuperar. Em plena Almirante Reis, a tal atleta a quem dei um "thumbs up", passou-me e retribuiu o mesmo gesto (mas a história com ela ainda não vai acabar aqui).

Comecei a sentir-me melhor e acreditei que não iria parar até ao final. Se assim fosse, algo por mim nunca imaginado iria acontecer, iria acabar com um tempo nas 4 horas, com cinquenta e tal minutos mas na casa das 4!

É então que começo a ser atacado com ameaças de cãibras, o que me obrigava a ter que andar uns metros, passar e retomar o andamento. Fui assim até aos 41.

Aí, senti ter esgotado toda e qualquer força, toda e qualquer energia. Andei um pouco mas o Gonçalo Seabra estava novamente a fotografar mais à frente e, conjuntamente com os seus acompanhantes, começaram a bater palmas ritmadas. Serviu como mola para retomar a corrida. 

Como uma simples palavra, um simples gesto, tem tanta importância aquando grandes esforços!

É então que chegámos à placa dos 41. A Lúcia aos pulos "João, 41!, João 41!, Falta um!!!" Lembram-se do que disse como os quilómetros estavam a passar que nem os notava por volta dos 16/18? Pois a minha reacção foi "Ainda um!!!" Completamente esgotado, um quilómetro não tem 1.000 metros, é quase uma Maratona em si!

Lá me fui aguentando, sabe-se lá como. Começa a cheirar a estádio! Curvamos para a Rio de Janeiro, o Pedro Carvalho, já maratonista, filma e incentiva. Começo a subir. Pessoal conhecido vem incentivar mas páro de repente, nova ameaça de cãibra! Sei lá se com os aplausos e gritos, passa logo e retomo. Curvo, entro no complexo e vejo ao fundo o portão para entrar para a pista! O Jorge a a Lúcia ficam ali mas ainda ouço o prometido grito do Jorge: "João Lima Maratonista!"

A sonhada entrada no estádio está a uma dezena de metros. Ao longe, Isa e Rute aplaudem

Todos os meus sonhos tinham a mesma imagem, entrar no estádio, dar a volta à pista e cortar a meta. Essa imagem estava à minha frente! Afinal as miragens realizam-se!

Aproximo-me do portão. Do lado direito a Isa e Rute aplaudem e gritam, no lado esquerdo o mesmo se passa com a Sandra e o Nuno. Interiormente, sorri, acenei, agradeci. Exteriormente, nada mais conseguia fazer do que canalizar as energias que já não tinha para as pernas.   

Cheguei à pista!

Estou em plena pista. Pela primeira vez após muitos últimos quilómetros, deixaram de me doer as palmas dos pés. Piso o tartan e parece que vou nas nuvens. À minha frente o Mayer Raposo e o Luís Oliveira. Na passada que levo, e que fui buscar não sei onde, não consigo reduzir e sou forçado a passá-los. Incentivam-me mas nem conseguir balbuciar o que quer que fosse. Se algum deles estiver a ler, compreende de certeza o que ali passamos.

Vou cortar a meta!

Acabei a curva, a meta está à minha frente e aproxima-se a cada passada. Ouço o Rúben, o Ricardo e mais vozes que não reconheci. A meta está ali! Eu, João Paulo Santos Lima, vou conseguir concluir uma Maratona! Eu, João Paulo Santos Lima, aguentei-me a correr durante 5 horas! Eu, dei uma lição a mim próprio! 

Levanto os braços. Meta. Vejo em frente a Mafalda e a Joana. Abraço-me a cada uma.  A Joana mostra-me outro cartaz amarelo "Dreams do come true!". Recebo os parabéns do Zé Gaspar e Carlos Viana Rodrigues da AMMA e António Campos da Xistarca.

Sou Maratonista!

Eu que sempre imaginei que não aguentasse as lágrimas na meta, estava com uma emoção tão mais forte que fiquei sem reacção. Absorvia tudo mas sem conseguir reagir.

Recebo o saco e os parabéns, e em frente está o Sequeira e a Júlia. Era uma velha promessa do Sequeira ser ele a colocar-me a medalha. Recebo-a e continuo sem conseguir reagir. 

 O casal Sequeira / Júlia colocam-me a medalha. Eu estou sem saber como

Vou para sair e aparece o casal Rui / Susana que felicitam e nos fotografam (é a última fotografia deste artigo). À frente, já lá estão a Isa e a Rute e começam a chegar os restantes.

E eu vou andando. Queria que me gravassem o nome e tempo na medalha e dirijo-me para junto do pavilhão. 

Mas antes, foto deste grupo maravilhoso. E umas inesperadas prendas. O Nuno, grande cartoonista, oferece-me uma caricatura alusiva à Maratona onde todo o apoio são gatos. Mais exactamente 8, tantos quantos os que tenho. E o Jorge Branco sai-se com um troféu com placa "João Lima Maratonista".

Esta maratona não foi só minha mas de muitos!

 O cartoon do Nuno

Até troféu do Jorge Branco tive direito!

Como agradecer tudo o que me fizeram, apoiaram e aturaram? Se não há palavras, também não há reacções possíveis, e eu continuei sem conseguir exteriorizar tudo o que me ia na alma.

Ao entrar no pavilhão para a gravação da medalha, está a sair a tal estrangeira do "thumbs up". Vem eufórica e ao ver-me dá um grito "We did it!". Respondo com "Yeah!" enquanto batemos as mãos e acrescento "It was my first", ao que ela responde aos berros "Me too!". Como é boa a sensação de superação!

A medalha e a respectiva gravação

Algumas horas depois, ao ver a classificação, apanhei um enorme susto. Não estou classificado! Quase em pânico ligo para o Sequeira que me esclarece, poucos minutos depois, que o meu registo está apanhado, para não me preocupar.

Segundo parece, nos controlos de passagem funcionou tudo perfeito mas na chegada muitos falharam. Como felizmente há o filme da chegada, estão a apanhar todos e, ao que consta, os números finais são impressionantes!

Se dúvidas houvesse, a camisola que oferecem no final bem diz "I finished Lisbon Maratahon"

Acabou! Consegui! Em imensas mensagens de felicitações, muitas falam na próxima. Não sei se haverá, nem digo que não haja.

Neste momento tenho que acabar a Maratona na minha cabeça. Foram anos a sonhar, um último ano a idealizar, e estes 3 meses focado constantemente nela. 

Cada passada minha em treino ou corrida, cada acto, cada decisão, estava sempre a Maratona por trás.

Preciso agora de descansar, regressar às minhas habituais corridas de 10 kms a Meias-maratonas. Tirar todo o prazer de correr. Sem outros objectivos. 

Sei que ainda me falta um, baixar dos 50 minutos aos 10 kms, mas só quando me sentir capaz, se é que torno a regressar a uma velocidade dessas pois os anos vão avançando.

Agora não planeio nada. Apenas as minhas corridas e disfrutar desta sensação de superação inexplicável.

Não há palavras para agradecer a todos os que me apoioram, fosse de forma mais presente, fosse com qualquer simples palavra. 

Guardo tudo no meu coração. 

(Aceder ao album com 913) Fotografias

(Mafalda Lima, Joana Lima, Ricardo Lima, Rúben Gonçalves, Sandra Martins, Nuno Espirito Santo, Egas Branco)

Uma mais que justa foto. Sem a Mafalda, nada seria, nada faria

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