«Avante!» Nº 1295

22-04-1999
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EDITORIAL

Searas de vento

Q uatro declarações de outros tantos governantes comentando os acontecimentos de Ourique exemplificam luminarmente o conceito de exercício de poder do actual executivo.

Ouçamo-los:

«Não negoceio sob pressão» – proclamou António Guterres, acrescentando: «Os agricultores portugueses são centenas de milhares e eu só vi umas centenas em Ourique.»

Fazendo questão de sublinhar o seu «acordo com a actuação das forças policiais», António José Seguro declarou: «Não podemos dar o impossível e os agricultores, que legitimamente têm o direito de se manifestar, estão a pedir o impossível.»

Por seu lado, o ministro Gomes da Silva, comentando o facto de a carga da GNR ter desabado sobre agricultores que «iam para casa e não iam cortar a estrada», filosofou deste jeito: «Então deviam ter ido para casa mais cedo» (...) «A meia-noite é sempre uma hora complicada. É chamada a hora dos lobisomens.»

Finalmente, o ministro Jorge Coelho – em plena digestão do banquete que há-de ter sido, para ele, ordenar a carga policial – invadiu a Assembleia da República e, em histriónica postura, disparatou o que lhe veio à cabeça, chantageou, e rematou com esta corajosa tirada: «Assumo aqui toda a responsabilidade do que foi feito. Tem de haver ordem!»

E stamos, assim, perante uma situação em que figuras destacadas e responsáveis de um governo que se diz de «diálogo», que se diz de «esquerda», que chega até, por vezes, com um copo a mais de euforia, a auto-intitular-se «socialista»... justificam a repressão e a violência repetindo, mais palavra menos palavra, o que múltiplas vezes foi dito pelo anterior governo da direita assumida – o qual, por sua vez, repetia, mais palavra menos palavra, o discurso utilizado pelo governo do antigamente...

Durante os primeiros tempos de governação PS, houve quem garantisse ver e persistisse em assinalar «significativas diferenças» entre o governo de Guterres e o de Cavaco. Com o tempo – à medida que as «diferenças» em relação à política praticada deixaram de ser visíveis mesmo para os que, afanosamente, as procuravam de lupa em riste – a ênfase foi dada à «diferença nos métodos utilizados»... Agora, restam ao governo do engenheiro Guterres as «diferenças» detectadas pelos eternos ingénuos de profissão, pelos eternos democratas distraídos por conveniência.

0 governo do PS enviou para Ourique – onde poucas centenas de agricultores exerciam aquilo a que A. J. Seguro chamou «o legítimo direito de se manifestar» – cerca de meio milhar de elementos da GNR (dos quais, uns cem vestidos de negro e munidos de viseira e bastão...), helicópteros, carros blindados, cavalos, cães, agentes dos SIS. Para que nada faltasse, consta que havia, também, telefones sob escuta e que um deles seria o do próprio presidente da Câmara.

Tratou-se, de facto, de um invulgar aparato policial cujo objectivo era atemorizar os agricultores e silenciar os seus protestos e reivindicações. E quando alguém entendeu que a intimidação não intimidava que bastasse, surgiu a ordem da praxe – «Tem de haver ordem!», não é verdade? – à qual se sucederam as violentas cargas policiais. Era meia-noite, «hora de lobisomens», ou seja, hora que sempre foi do agrado dos que ordenam a repressão.

Entretanto, o ministro da Agricultura, cego e surdo à realidade, iria à televisão monologar tanto quanto julgou ser suficiente para esconder a real situação da agricultura e dos agricultores portugueses. Fingindo desconhecer que o governo de que faz parte é co-responsável dessa dramática situação, decorrente de um processo de integração europeia no qual a preocupação maior dos governantes portugueses tem sido a de exibirem a sua condição de bons alunos, espezinhando e desprezando os interesses do povo e do País, vendendo em leilão pedaços da própria soberania nacional.

«P edir o impossível» foi, assim, o pecado maior dos agricultores de Ourique e é, igualmente, pecado sem absolvição da enorme maioria de portugueses e portuguesas que trabalham e vivem do seu trabalho.

Aumentos de salários justos, emprego e segurança de emprego, respeito pelos direitos dos trabalhadores, pensões e reformas dignas para todos os pensionistas e reformados, o ensino e a saúde a que, pelo simples facto de existirmos, temos direito: eis algumas das expressões concretas desse «pedir o impossível» que tanto incomoda e irrita o governo do engenheiro Guterres. Incómodo e irritação compreensíveis, lógicos, se se tiver em conta o objectivo primeiro (e quase único) deste governo. Na verdade, sendo «impossível» dar resposta aos anseios mais do que legítimos dos que trabalham nada é «impossível» no que toca à satisfação plena dos mais do que ilegítimos interesses dos que exploram; antes pelo contrário: tudo é possível quando se trata de acatar e cumprir as imperativas exigências dos Belmiros, Champallimauds & Cia.

É claro que a «lógica» do Governo não resistirá à luta organizada das vítimas do «impossível» desde que estas saibam utilizar adequadamente a força de que dispõem. De facto, é na luta, na sua intensificação e expansão, que está o caminho para a conquista dos «impossíveis» decretados pela política de direita. Ou seja e, de certa maneira, como dizia o Che há quase quatro décadas: «Sejamos realistas: exijamos o impossível.»

H á umas semanas, a propósito do conteúdo de classe antilaboral da política praticada pelo Governo, lembrámos aqui que quem semeia ventos com o afã com que o faz o engenheiro Guterres virá, mais cedo ou mais tarde, a colher as inevitáveis tempestades.

Observando as práticas e as falas diárias do elenco governamental – desde o Primeiro ao último ministro –, temos visto que semear ventos passou a ser a grande especialidade do Governo. O Governo vive de olhos e ouvidos fechados aos anseios e aos direitos da esmagadora maioria dos portugueses, às promessas de «diálogo» nunca cumpridas sucedem-se, cumpridas, as práticas arrogantes e repressivas. Por outro lado, ouvir os elogios dos chefes dos grandes grupos económicos e financeiros constitui o seu objectivo essencial, quase exclusivo. Assim sendo, é óbvio que as sementes de vento lançadas sobre as terras de Ourique se repetirão em todo o lado onde houver gente a bater-se pelos seus legítimos interesses e direitos. E as searas de vento crescerão. E, com elas, as tempestades.

«Avante!» Nº 1295 - 24.Setembro.1998

EDITORIAL

Searas de vento

Q uatro declarações de outros tantos governantes comentando os acontecimentos de Ourique exemplificam luminarmente o conceito de exercício de poder do actual executivo.

Ouçamo-los:

«Não negoceio sob pressão» – proclamou António Guterres, acrescentando: «Os agricultores portugueses são centenas de milhares e eu só vi umas centenas em Ourique.»

Fazendo questão de sublinhar o seu «acordo com a actuação das forças policiais», António José Seguro declarou: «Não podemos dar o impossível e os agricultores, que legitimamente têm o direito de se manifestar, estão a pedir o impossível.»

Por seu lado, o ministro Gomes da Silva, comentando o facto de a carga da GNR ter desabado sobre agricultores que «iam para casa e não iam cortar a estrada», filosofou deste jeito: «Então deviam ter ido para casa mais cedo» (...) «A meia-noite é sempre uma hora complicada. É chamada a hora dos lobisomens.»

Finalmente, o ministro Jorge Coelho – em plena digestão do banquete que há-de ter sido, para ele, ordenar a carga policial – invadiu a Assembleia da República e, em histriónica postura, disparatou o que lhe veio à cabeça, chantageou, e rematou com esta corajosa tirada: «Assumo aqui toda a responsabilidade do que foi feito. Tem de haver ordem!»

E stamos, assim, perante uma situação em que figuras destacadas e responsáveis de um governo que se diz de «diálogo», que se diz de «esquerda», que chega até, por vezes, com um copo a mais de euforia, a auto-intitular-se «socialista»... justificam a repressão e a violência repetindo, mais palavra menos palavra, o que múltiplas vezes foi dito pelo anterior governo da direita assumida – o qual, por sua vez, repetia, mais palavra menos palavra, o discurso utilizado pelo governo do antigamente...

Durante os primeiros tempos de governação PS, houve quem garantisse ver e persistisse em assinalar «significativas diferenças» entre o governo de Guterres e o de Cavaco. Com o tempo – à medida que as «diferenças» em relação à política praticada deixaram de ser visíveis mesmo para os que, afanosamente, as procuravam de lupa em riste – a ênfase foi dada à «diferença nos métodos utilizados»... Agora, restam ao governo do engenheiro Guterres as «diferenças» detectadas pelos eternos ingénuos de profissão, pelos eternos democratas distraídos por conveniência.

0 governo do PS enviou para Ourique – onde poucas centenas de agricultores exerciam aquilo a que A. J. Seguro chamou «o legítimo direito de se manifestar» – cerca de meio milhar de elementos da GNR (dos quais, uns cem vestidos de negro e munidos de viseira e bastão...), helicópteros, carros blindados, cavalos, cães, agentes dos SIS. Para que nada faltasse, consta que havia, também, telefones sob escuta e que um deles seria o do próprio presidente da Câmara.

Tratou-se, de facto, de um invulgar aparato policial cujo objectivo era atemorizar os agricultores e silenciar os seus protestos e reivindicações. E quando alguém entendeu que a intimidação não intimidava que bastasse, surgiu a ordem da praxe – «Tem de haver ordem!», não é verdade? – à qual se sucederam as violentas cargas policiais. Era meia-noite, «hora de lobisomens», ou seja, hora que sempre foi do agrado dos que ordenam a repressão.

Entretanto, o ministro da Agricultura, cego e surdo à realidade, iria à televisão monologar tanto quanto julgou ser suficiente para esconder a real situação da agricultura e dos agricultores portugueses. Fingindo desconhecer que o governo de que faz parte é co-responsável dessa dramática situação, decorrente de um processo de integração europeia no qual a preocupação maior dos governantes portugueses tem sido a de exibirem a sua condição de bons alunos, espezinhando e desprezando os interesses do povo e do País, vendendo em leilão pedaços da própria soberania nacional.

«P edir o impossível» foi, assim, o pecado maior dos agricultores de Ourique e é, igualmente, pecado sem absolvição da enorme maioria de portugueses e portuguesas que trabalham e vivem do seu trabalho.

Aumentos de salários justos, emprego e segurança de emprego, respeito pelos direitos dos trabalhadores, pensões e reformas dignas para todos os pensionistas e reformados, o ensino e a saúde a que, pelo simples facto de existirmos, temos direito: eis algumas das expressões concretas desse «pedir o impossível» que tanto incomoda e irrita o governo do engenheiro Guterres. Incómodo e irritação compreensíveis, lógicos, se se tiver em conta o objectivo primeiro (e quase único) deste governo. Na verdade, sendo «impossível» dar resposta aos anseios mais do que legítimos dos que trabalham nada é «impossível» no que toca à satisfação plena dos mais do que ilegítimos interesses dos que exploram; antes pelo contrário: tudo é possível quando se trata de acatar e cumprir as imperativas exigências dos Belmiros, Champallimauds & Cia.

É claro que a «lógica» do Governo não resistirá à luta organizada das vítimas do «impossível» desde que estas saibam utilizar adequadamente a força de que dispõem. De facto, é na luta, na sua intensificação e expansão, que está o caminho para a conquista dos «impossíveis» decretados pela política de direita. Ou seja e, de certa maneira, como dizia o Che há quase quatro décadas: «Sejamos realistas: exijamos o impossível.»

H á umas semanas, a propósito do conteúdo de classe antilaboral da política praticada pelo Governo, lembrámos aqui que quem semeia ventos com o afã com que o faz o engenheiro Guterres virá, mais cedo ou mais tarde, a colher as inevitáveis tempestades.

Observando as práticas e as falas diárias do elenco governamental – desde o Primeiro ao último ministro –, temos visto que semear ventos passou a ser a grande especialidade do Governo. O Governo vive de olhos e ouvidos fechados aos anseios e aos direitos da esmagadora maioria dos portugueses, às promessas de «diálogo» nunca cumpridas sucedem-se, cumpridas, as práticas arrogantes e repressivas. Por outro lado, ouvir os elogios dos chefes dos grandes grupos económicos e financeiros constitui o seu objectivo essencial, quase exclusivo. Assim sendo, é óbvio que as sementes de vento lançadas sobre as terras de Ourique se repetirão em todo o lado onde houver gente a bater-se pelos seus legítimos interesses e direitos. E as searas de vento crescerão. E, com elas, as tempestades.

«Avante!» Nº 1295 - 24.Setembro.1998

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