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02-10-1999
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Xanana ao PÚBLICO

³Guerrilha, organização clandestina e igreja controlarão Timor independente²

Adelino Gomes

Situações como as que mergulharam Angola e Moçambique na guerra não acontecerão num Timor-Leste independente, afiança Xanana Gusmão. Três anos depois da sua detenção, o antigo comandante guerrilheiro diz que continua a dirigir a luta e acha que é ³absolutamente legítima e lógica² a sua participação nas conversações entre os chefes das diplomacias da Indonésia e de Portugal, que dentro de semanas voltarão a encontrar-se sob os auspícios da ONU. Do Governo português, a resistência aguarda formas de apoio à guerrilha, necessitada de medicamentos e roupas, diz Xanana, nesta entrevista cujas respostas nos enviou da prisão de Cipinang, Jacarta, no dia 12 de Novembro, a data em que, em 1992, ocorreu aquele que considera ³o mais importante acontecimento² desde o dia da invasão indonésia, que amanhã se assinala. Neste destacável, pela primeira vez, o rosto e as impressões de portugueses ³metropolitanos², que se mantiveram em Timor, apesar da guerra civil, da invasão e do inenarrável cortejo de dramas dos últimos 20 anos timorenses.

PÚBLICO ‹ Fez em 28 de Novembro 20 anos, a Fretilin proclamou unilateralmente a independência de Timor. Lembra-se desse momento? O que sentiu?

XANANA GUSMÃO ‹ Sim, quase que o tenho diante dos meus olhos. Uma cerimónia simples à frente do palácio, um acto quase feito em segredo. Um ajuntamento inseguro da população, convocada à última hora. A causa não era fora da lógica. Às três horas da tarde, ainda se via uma velha fragata indonésia, deitando muito fumo, à frente da capital, tomando a direcção do Oeste.

Alguns membros do CCF [Comité Central da Fretilin] vestidos com farda da Frelimo [de Moçambique]. O arrear da bandeira portuguesa provocava uma nostalgia impensada, que marcava o corte de qualquer coisa que desejavámos, mas não esperávamos fosse de uma forma tão triste. Nalguns rostos havia serenidade, nuns poucos certa dureza, em todos os outros algo que se assemelhava a apreensão e perplexidade.

O içar da bandeira nacional veio recompor os espíritos, assinalando uma realidade que nos esmagava. As palavras de ordem soaram numa mistura de determinação e angústia, que vibravam em cada veia, na compreensão de que a luta teria de continuar, porque já estavámos em guerra.

Quando voltei a casa, a noite tinha as mesmas sombras de ameaça, mas a Pátria tinha sido erguida.

P. ‹ Concordou com a iniciativa? Porquê? Acha que ela pode ter contribuído de algum modo para a invasão, oito dias depois?

R. ‹ Fortuitamente, participei, uns dias antes, numa reunião restrita do CCF onde se discutira o problema. As razões eram justas. Estávamos a perder terreno perante o avanço inimigo pela fronteira. A nossa total impreparação militar era notória. Havia já rumores sobre uma invasão mais aberta. Se nos fosse reconhecida a RDTL [República Democrática de Timor-Leste], a guerra que já se instalara no solo pátrio teria uma dimensão maior perante a comunidade internacional, a invasão a um Estado soberano.

A invasão já tinha começado desde Setembro e, em 28 de Novembro, as vilas de Maliana, Balibó, Atabae, tinham já sido tomadas. Embora formalmente nós tenhamos de tomar o 7 de Dezembro como referência, todos os dados indicam que Jacarta já tinha os planos para continuar a guerra pelo controle de Timor-Leste, apoiada pela UDT.

P. ‹ Houve figuras da Igreja que viram a invasão como uma forma de libertar a população do jugo de um partido marxista, como se considerava então a Fretilin. A partir de quando e como é que as autoridades eclesiásticas se ³reconciliaram² com a resistência?

R. ‹ Nos primeiros anos, podia-se dizer que, embora houvesse individualmente uma ou outra atitude de repúdio à carnificina que as forças invasoras praticavam, o comum era a submissão, tendo havido até várias homilias de apoio às forças invasoras.

Eu creio que a Igreja fez o exame de consciência, depois da vaga de massacres que sucederam à destruição das bases populares nas montanhas. As primeiras aproximações que tentámos foram em 1979 e, em 1980, começámos a receber manifestações de apoio, tendo culminado com o meu encontro pessoal com o saudoso e mui querido D. Martinho Lopes, na segunda metade de 1982.

Liberdade não se troca por desenvolvimento

P. ‹ Desde as últimas semanas do ano passado, têm vindo a eclodir em Timor confrontos de carácter religioso, ao mesmo tempo que foram crescendo críticas dos meios muçulmanos contra o bispo Ximenes Belo. Os confrontos coincidiram com a aproximação da atribuição do Prémio Nobel da Paz, a que monsenhor Belo era um dos candidatos mais fortes. Mas há quem veja neles uma tentativa para empolar um conflito religioso (até então) inexistente. Quer comentar?

R. ‹ Existem muitos objectivos por detrás do empolamento (inusual), de carácter religioso, da situação no território.

Um objectivo pode ser precisamente esse, de sujar a imagem de D. Ximenes Belo. Outro, dado que o caso de Timor-Leste tem sido muito referido nos últimos dois anos, e embora a imprensa indonésia tenha sempre dado o ponto de vista do regime, a sociedade indonésia começa a ter muitas dúvidas, pela razão de que também sente a repressão política e psicológica, a falta de liberdade de opinião, etc., e era necessário utilizar armas que convençam. Na sociedade indonésia, o fantasma do comunismo foi o ³slogan² e tem sido o único que permite unir todas as diferentes sensibilidades. Enquanto isso, as figuras de destaque do regime (Suharto, Sutrisno, Feiçal Tanjung e outros generais) têm usado os ³ulamas², os ³pesantren² como suporte da superestrutura ideológica. Repara-se que, para a guerra da Bósnia no ano passado, foi explorado o sentimento religioso entre a juventude indonésia, que se ofereceu para ir para lá participar na guerra.

O empolamento que se deu, com ³ulamas² a pedir mais acções militares no território e declarações de Amien Rais e do Habibie, foi mais uma desesperada tentativa de irritar o novo indonésio contra o povo maubere.

Outro objectivo ainda, o mais provável, é uma operação antecipada de limpeza, de prevenção para o 12 de Novembro. Repare-se que transferiram dois mil timorenses empregados do Estado para a ilha de Java e ainda vão mandar mais trabalhadores.

P. ‹ No balanço que se faz destas duas décadas, é comum apontar-se o grande desenvolvimento ocorrido no território em pelo menos três sectores: vias de comunicação, educação e saúde. Subscreve?

R. ‹ Não nego isso, mas o que é que isso interessa ao nosso povo? O nosso direito de sermos livres não pode ser trocado pelo desenvolvimento físico no território.

Só no distrito de Jacarta, os jornais indonésios falam de mais de três milhões de analfabetos, as pessoas morrem continuamente de diarreia, o cinturão da miséria, lixo e crime que abraça Jacarta envolve uma população de cinco milhões [de pessoas].

O que nos interessam as antenas parabólicas nas aldeias de Timor-Leste, como o Mário Carrascalão afirmou que havia quando ele era governador, se tudo o mais que é transcendental para o nosso povo foi violado?

O nosso povo foi forçado a utilizar apenas a língua indonésia; o nosso povo está sendo forçado a alterar os seus padrões e a receber a influência negativa da maneira de ser e pensar da ralé dos transmigrantes que para lá são mandados; o nosso povo é perseguido, preso, torturado e massacrado; o nosso povo é ensinado a mentir e a denunciar-se mutuamente; o nosso povo é espoliado das suas plantações de café, do seu mármore, do seu sândalo, do seu petróleo.

As pessoas não vão aos hospitais, porque ali morrem mais depressa; os postos sanitários no interior estão vazios de medicamentos.

A quantidade de escolas não é sinónimo de qualidade de ensino e conheço muitos ³SH² (Master of Law) e ³Doktorandus² indonésios que mais servem é para serem vendedores de ³tempe² [alimentação típica indonésia, feita de soja moída, em formas quadradas ou rectangulares].

Está a ver como a aparência física desse propalado desenvolvimento não interessa ao nosso povo?

P. ‹ Como consequência natural do aumento do acesso à educação, Timor dispõe hoje de numerosos quadros, sobretudo na área da economia e desenvolvimento, a maioria formados em universidades indonésias. Como aprecia esta situação?

R. ‹ Hoje, isto não tem muita aplicação. A única saída para eles é irem para ³pegawais² e vegetarem na burocracia.

Para o futuro, para um Timor-Leste independente, pode esse facto ser muito contribuitivo para as necessidades do arranque inicial do país, embora eu creia que esses quadros necessitarão de reciclagem, para que venham a ser eficientes, práticos e dinâmicos na aplicação dos seus conhecimentos para Timor-Leste.

Deixei de ver os indonésios com aversão generalizada

P. ‹ Pode descrever-nos o seu dia-a-dia na prisão?

R. ‹ Nada interessante.

No livro de registos, diário, que os guardas preenchem para enviar ao Laksus, Bakorstanas, BIA e não sei mais aonde, apontam a hora a que acordo, de manhã, a que horas me lavo, a que horas tomo o pequeno-almoço; se vou ou não à capela, às sextas-feiras; a que horas almoço; se tomo uma sesta ou não; o que faço, se leio, se pinto, se saio a fazer exercícios ou a praticar algum desporto; a que horas tomo banho, a que horas janto e a que horas durmo.

E é isto exactamente o que venho fazendo, aturando vindas periódicas dos homens do Laksus para tentarem saber se tenho conhecimento de um ou outro acontecimento, relacionado à luta, seja em Timor-Leste seja aí, no exterior.

P. ‹ Quais os últimos livros que leu? Quais os seus escritores preferidos? Consegue ter acesso a jornais, ouvir rádio, ver TV? Quais?

R. ‹ A jornais e revistas indonésios, que permitem sempre fazer uma estimativa da situação política na Indonésia, pelos pronunciamentos do Suharto, ameaças dos generais e declarações de fidelidade dos ministros e algumas figuras públicas e, por isso tudo, verificar quão repressivo é o regime.

A televisão, depois que a estação privada SCTV foi obrigada a fechar o interessantíssimo programa Perspectiva, deixou de ter interesse. As notícias dançam à roda de Suharto, Habibie e Harmoko. De vez em quando é que Ali Alatas aparece a insultar os timorenses e Portugal.

P. ‹ Diz-se que a sua prisão se deveu a ter cometido a imprudência de se manter muito tempo em Díli. Aceita a crítica?

R. ‹ Aceito, desde que eu deva considerar que só a minha estadia em Díli permitiu que eu fosse capturado, o que não teria acontecido na montanha.

P. ‹ É verdade que quando foi preso se preparava para sair de Timor?

R-Absolutamente falso. As pessoas, às vezes, gostam de imaginar no escuro dos seus pensamentos.

P. ‹ Por força das circunstâncias, hoje conhece melhor o que se passa na Indonésia. Modificou a forma como olha para este país e para os indonésios?

R. ‹ Talvez em parte, pois deixei de ver os indonésios com aquela aversão generalizada que eu tinha antes, porque cada vez sei melhor que temos um inimigo comum, o odioso e repressivo regime militarista do Suharto.

Quanto ao resto, embora melhor agora, a ideia que eu tinha da Indonésia permanece. Uma estratégia obsessiva do estabelecimento de uma pequena burguesia nacional, que acumula as riquezas do país em bancos estrangeiros; uma louca corrida para uma modernização que vai exigindo sempre um maior endividamento, alimentando a corrupção entre o poder político e económico; e um presidente vitalício, com os seus generais ditando ordens a quase 200 milhões de pessoas. Um país potencialmente rico, sem dúvida, mas que não evitará, num futuro imprevisível, passar por enormes crises económicas e políticas.

P. ‹ Acha que o actual regime sobrevirá a Suharto? E que a solução do problema de Timor-Leste é possível sem alteração do regime?

R. ‹ É muito difícil fazer-se uma previsão. Contudo, do pouco que tenho procurado entender, o Suharto tem um domínio pessoal que mais nenhum outro poderá ter. É ainda um enigma para mim a ideia de uma luta entre o Suharto e os militares, no sentido de, como às vezes se diz, o Suharto pretender qualquer coisa, mas encontrar oposição por parte dos generais. Os factos demonstraram que o Suharto ordena e os militares cumprem.

Não há dúvida de que o regime está cheio de problemas, alguns deles insolúveis, e, mesmo que o Suharto morra (e que seja em breve), os militares (não apenas os activos, mas sobretudo os que hoje são ministros, embaixadores e comissários nas empresas, porque eles todos, até as mulheres e filhos e netos, pertencem à Keluarga Besar ABRI, e de relações estreitíssimas com o Golkar e empresas) não desejarão ceder.

Mas, em indo o Suharto para o inferno, o regime só poderá sobreviver à custa de maior repressão ainda e isso será demasiado arriscado. Na Indonésia dá a impressão de que todo o mundo espera apenas que o Suharto morra, para que a crise estale.

Existe uma relação de mútua influência entre a solução do problema de Timor-Leste e a mudança de regime. Contudo, segundo o que eu apreendo, é mais provável a mudança do regime depender da solução do problema de Timor-Leste do que o contrário, numa proporção de 60 para 40 por cento.

Eu acredito que, com uma maior pressão internacional, Jacarta entenderá melhor (e já entendeu) que é necessário dar passos concretos para uma solução do problema. A par disso, uma maior atenção da solidariedade internacional para a violação dos direitos humanos na própria Indonésia, para que o regime se sinta acossado em dois flancos.

P. ‹ Apesar de uma maior visibilidade internacional da questão, Timor-Leste continua longe de uma solução: a Indonésia não cede, os timorenses não dispõem de força para a expulsar e as grandes potências mostram-se indiferentes. Que saída prevê para a situação?

R. ‹ Nós continuaremos a batalhar pelo diálogo sério, que permita encontrar um ponto de partida para a solução do problema.

Portugal já deu passos acertados nessa direcção e, como o novo executivo, o CNRM [Conselho Nacional da Resistência Maubere] tudo fará para ser um parceiro competente na busca de ideias e esforços.

Em Timor-Leste, a população não suporta mais a presença indonésia e prevemos que a resistência popular irá continuar a apostar a sua vida pela libertação da Pátria.

Portugal deve dar assistência à guerrilha

P. ‹ Em Janeiro próximo, os chefes da diplomacia da Indonésia e de Portugal encontram-se para mais uma ronda de conversações sob os auspícios do secretário-geral da ONU. A seguir, deverá ocorrer uma nova reunião entre timorenses pró e contra a presença indonésia no território. Acha que devia participar tanto num como no outro encontro? O que diria, se pudesse participar em qualquer deles?

R. ‹ Eu creio que é absolutamente legítima e lógica a minha participação. Eu combati a ocupação indonésia, defendendo um direito reconhecido pelas Nações Unidas. Fui preso por causa disso e, se os encontros entre timorenses têm o objectivo de ajudar a encontrar uma solução, eu devo participar também.

Se eu pudesse fazer parte do encontro tripartido, necessitaria primeiro de ver com o Governo português o que se devia fazer. Assim também, no intertimorense, teria primeiro de consultar os outros companheiros, para estabelecer o plano de acção, que corresponda aos resultados do encontro tripartido.

P. ‹ No estádio actual do caso de Timor, o que acha que Portugal deve fazer, em concreto?

R. ‹ Aproveito para saudar a vitória socialista nas recentes eleições e, em nome do povo maubere, faço votos de muitos sucessos ao novo Governo, presidido por Sua Excelência o primeiro-ministro sr. eng. António Guterres. Era já nosso convencimento de que Timor-Leste é uma questão de consenso nacional, para a qual a política portuguesa assume responsabilidade constitucionais, com base nos princípios universais e nas resoluções da ONU. E apreciamos imensamente o empenhamento tanto do primeiro-ministro como do ministro dos Negócios Estrangeiros, que indicia um melhorado reforço na busca da solução do problema.

Eu tenho confiança em que o Governo português terá considerado muitas questões que lhe permitirão actuar da melhor maneira. Mas, muito concretamente, eu pediria ao Governo português que apoiasse da melhor forma as necessidades da resistência, no aspecto humanitário de assistência à guerrilha.

A resistência tem vindo a desenvolver as suas actividades com ajuda de organizações humanitárias, sem as quais teríamos tido muito maiores obstáculos, que nunca seriam ultrapassados. A guerrilha necessita de medicamentos, roupas, outros artigos que fazem falta na difícil vida no mato. E Portugal podia, muito concretamente, prestar atenção neste aspecto.

Multipartidarismo e abolição do exército

P. ‹ Encontra-se com os seus movimentos e contactos limitados e as perspectivas de libertação não se mostram imediatas. Qual é o seu papel na resistência? Quem a dirige neste momento?

R. ‹ Continuo a dirigi-la o melhor que posso.

P. ‹ Se os indonésios retirassem hoje do território, quem deveria liderar o processo político interno de transição: os comandantes da guerrilha ou os políticos jovens, forjados na luta nos centros urbanos? Que papel julga dever ser reservado à elite de quadros formados na indonésia e a figuras religiosas?

R. ‹ A guerrilha tem um papel importante a cumprir numa situação destas. A guerrilha, reduzida embora em homens, possui uma influência política atestada ao longo destes 20 anos de guerra e, mesmo que não queira, será solicitada a exercer um papel de pacificação, de normalização e de controlo da situação. Claro, a guerrilha nunca actuou sozinha, quer dizer, a guerrilha e a organização clandestina nunca actuaram como compartimentos estanques e é por isso que existe uma relação única, em termos de capacidade política junto das massas, mais ainda do que poderá acontecer com os políticos, sejam do interior sejam do exterior.

O concurso da guerrilha, apoiada pelos quadros da organização clandestina, é importante como necessário. Os comandantes da guerrilha têm a experiência da situação após o contragolpe e os guerrilheiros são, por assim dizer, os homens mais preparados politicamente e psicologicamente para promover um clima de não represálias.

Mas os guerrilheiros só estão capazes de desempenhar esta missão política de controle da situação. Assim, obviamente, para se poder manter uma administração transitória, não só os políticos jovens serão chamados, como, em maior percentagem, os funcionários do Estado, que aparentemente não têm merecido classificação na estrutura da resistência. Todos possuem já uma experiência rica. A da nossa tomada de poder, depois do contragolpe, e o conhecimento que detêm sobre as diferentes áreas de administração.

A Igreja terá exclusivamente um papel estabilizador, complementar ao da guerrilha, e as portas estão abertas para participarem de um modo indirecto, mas influente, no estabelecimento do poder.

Haverá possibilidades de uns excessos, compreensíveis, mas, com uma boa conjugação destes três elementos, guerrilha, organização clandestina e Igreja, eu acredito, que muito cedo se controlará a situação e se estabelecerá uma administração inicial, para permitir as condições mínimas de funcionamento de uma vida normal.

P. ‹ Através de que medidas concretas se poderia evitar em Timor a ocorrência de situações semelhantes às de Angola e Moçambique?

R. ‹ As causas que, em Angola e Moçambique, levaram a uma guerra civil, por tão longo tempo, não existem hoje em Timor-Leste. Existiram e isso originou, em Agosto de 1975, o golpe da UDT, a que depois se seguiu esta criminosa ocupação.

Agora, partimos todos para um sistema parlamentar multipartidário. Desse pressuposto político, a degradação económica só será concebível se os políticos timorenses vierem a pensar apenas em aproveitar-se da situação para obter regalias.

A degradação económica viria também de despesas não lucrativas, como a manutenção do exército, e isto não vai acontecer; viria também de uma dispendiosa avolumação da elite burocrática; e poderá suceder como resultado da ausência de uma política económica, que venha a constituir os fundamentos racionais de um processo de desenvolvimento específico de Timor-Leste, nas suas potencialidades e nas suas carências.

Xanana ao PÚBLICO

³Guerrilha, organização clandestina e igreja controlarão Timor independente²

Adelino Gomes

Situações como as que mergulharam Angola e Moçambique na guerra não acontecerão num Timor-Leste independente, afiança Xanana Gusmão. Três anos depois da sua detenção, o antigo comandante guerrilheiro diz que continua a dirigir a luta e acha que é ³absolutamente legítima e lógica² a sua participação nas conversações entre os chefes das diplomacias da Indonésia e de Portugal, que dentro de semanas voltarão a encontrar-se sob os auspícios da ONU. Do Governo português, a resistência aguarda formas de apoio à guerrilha, necessitada de medicamentos e roupas, diz Xanana, nesta entrevista cujas respostas nos enviou da prisão de Cipinang, Jacarta, no dia 12 de Novembro, a data em que, em 1992, ocorreu aquele que considera ³o mais importante acontecimento² desde o dia da invasão indonésia, que amanhã se assinala. Neste destacável, pela primeira vez, o rosto e as impressões de portugueses ³metropolitanos², que se mantiveram em Timor, apesar da guerra civil, da invasão e do inenarrável cortejo de dramas dos últimos 20 anos timorenses.

PÚBLICO ‹ Fez em 28 de Novembro 20 anos, a Fretilin proclamou unilateralmente a independência de Timor. Lembra-se desse momento? O que sentiu?

XANANA GUSMÃO ‹ Sim, quase que o tenho diante dos meus olhos. Uma cerimónia simples à frente do palácio, um acto quase feito em segredo. Um ajuntamento inseguro da população, convocada à última hora. A causa não era fora da lógica. Às três horas da tarde, ainda se via uma velha fragata indonésia, deitando muito fumo, à frente da capital, tomando a direcção do Oeste.

Alguns membros do CCF [Comité Central da Fretilin] vestidos com farda da Frelimo [de Moçambique]. O arrear da bandeira portuguesa provocava uma nostalgia impensada, que marcava o corte de qualquer coisa que desejavámos, mas não esperávamos fosse de uma forma tão triste. Nalguns rostos havia serenidade, nuns poucos certa dureza, em todos os outros algo que se assemelhava a apreensão e perplexidade.

O içar da bandeira nacional veio recompor os espíritos, assinalando uma realidade que nos esmagava. As palavras de ordem soaram numa mistura de determinação e angústia, que vibravam em cada veia, na compreensão de que a luta teria de continuar, porque já estavámos em guerra.

Quando voltei a casa, a noite tinha as mesmas sombras de ameaça, mas a Pátria tinha sido erguida.

P. ‹ Concordou com a iniciativa? Porquê? Acha que ela pode ter contribuído de algum modo para a invasão, oito dias depois?

R. ‹ Fortuitamente, participei, uns dias antes, numa reunião restrita do CCF onde se discutira o problema. As razões eram justas. Estávamos a perder terreno perante o avanço inimigo pela fronteira. A nossa total impreparação militar era notória. Havia já rumores sobre uma invasão mais aberta. Se nos fosse reconhecida a RDTL [República Democrática de Timor-Leste], a guerra que já se instalara no solo pátrio teria uma dimensão maior perante a comunidade internacional, a invasão a um Estado soberano.

A invasão já tinha começado desde Setembro e, em 28 de Novembro, as vilas de Maliana, Balibó, Atabae, tinham já sido tomadas. Embora formalmente nós tenhamos de tomar o 7 de Dezembro como referência, todos os dados indicam que Jacarta já tinha os planos para continuar a guerra pelo controle de Timor-Leste, apoiada pela UDT.

P. ‹ Houve figuras da Igreja que viram a invasão como uma forma de libertar a população do jugo de um partido marxista, como se considerava então a Fretilin. A partir de quando e como é que as autoridades eclesiásticas se ³reconciliaram² com a resistência?

R. ‹ Nos primeiros anos, podia-se dizer que, embora houvesse individualmente uma ou outra atitude de repúdio à carnificina que as forças invasoras praticavam, o comum era a submissão, tendo havido até várias homilias de apoio às forças invasoras.

Eu creio que a Igreja fez o exame de consciência, depois da vaga de massacres que sucederam à destruição das bases populares nas montanhas. As primeiras aproximações que tentámos foram em 1979 e, em 1980, começámos a receber manifestações de apoio, tendo culminado com o meu encontro pessoal com o saudoso e mui querido D. Martinho Lopes, na segunda metade de 1982.

Liberdade não se troca por desenvolvimento

P. ‹ Desde as últimas semanas do ano passado, têm vindo a eclodir em Timor confrontos de carácter religioso, ao mesmo tempo que foram crescendo críticas dos meios muçulmanos contra o bispo Ximenes Belo. Os confrontos coincidiram com a aproximação da atribuição do Prémio Nobel da Paz, a que monsenhor Belo era um dos candidatos mais fortes. Mas há quem veja neles uma tentativa para empolar um conflito religioso (até então) inexistente. Quer comentar?

R. ‹ Existem muitos objectivos por detrás do empolamento (inusual), de carácter religioso, da situação no território.

Um objectivo pode ser precisamente esse, de sujar a imagem de D. Ximenes Belo. Outro, dado que o caso de Timor-Leste tem sido muito referido nos últimos dois anos, e embora a imprensa indonésia tenha sempre dado o ponto de vista do regime, a sociedade indonésia começa a ter muitas dúvidas, pela razão de que também sente a repressão política e psicológica, a falta de liberdade de opinião, etc., e era necessário utilizar armas que convençam. Na sociedade indonésia, o fantasma do comunismo foi o ³slogan² e tem sido o único que permite unir todas as diferentes sensibilidades. Enquanto isso, as figuras de destaque do regime (Suharto, Sutrisno, Feiçal Tanjung e outros generais) têm usado os ³ulamas², os ³pesantren² como suporte da superestrutura ideológica. Repara-se que, para a guerra da Bósnia no ano passado, foi explorado o sentimento religioso entre a juventude indonésia, que se ofereceu para ir para lá participar na guerra.

O empolamento que se deu, com ³ulamas² a pedir mais acções militares no território e declarações de Amien Rais e do Habibie, foi mais uma desesperada tentativa de irritar o novo indonésio contra o povo maubere.

Outro objectivo ainda, o mais provável, é uma operação antecipada de limpeza, de prevenção para o 12 de Novembro. Repare-se que transferiram dois mil timorenses empregados do Estado para a ilha de Java e ainda vão mandar mais trabalhadores.

P. ‹ No balanço que se faz destas duas décadas, é comum apontar-se o grande desenvolvimento ocorrido no território em pelo menos três sectores: vias de comunicação, educação e saúde. Subscreve?

R. ‹ Não nego isso, mas o que é que isso interessa ao nosso povo? O nosso direito de sermos livres não pode ser trocado pelo desenvolvimento físico no território.

Só no distrito de Jacarta, os jornais indonésios falam de mais de três milhões de analfabetos, as pessoas morrem continuamente de diarreia, o cinturão da miséria, lixo e crime que abraça Jacarta envolve uma população de cinco milhões [de pessoas].

O que nos interessam as antenas parabólicas nas aldeias de Timor-Leste, como o Mário Carrascalão afirmou que havia quando ele era governador, se tudo o mais que é transcendental para o nosso povo foi violado?

O nosso povo foi forçado a utilizar apenas a língua indonésia; o nosso povo está sendo forçado a alterar os seus padrões e a receber a influência negativa da maneira de ser e pensar da ralé dos transmigrantes que para lá são mandados; o nosso povo é perseguido, preso, torturado e massacrado; o nosso povo é ensinado a mentir e a denunciar-se mutuamente; o nosso povo é espoliado das suas plantações de café, do seu mármore, do seu sândalo, do seu petróleo.

As pessoas não vão aos hospitais, porque ali morrem mais depressa; os postos sanitários no interior estão vazios de medicamentos.

A quantidade de escolas não é sinónimo de qualidade de ensino e conheço muitos ³SH² (Master of Law) e ³Doktorandus² indonésios que mais servem é para serem vendedores de ³tempe² [alimentação típica indonésia, feita de soja moída, em formas quadradas ou rectangulares].

Está a ver como a aparência física desse propalado desenvolvimento não interessa ao nosso povo?

P. ‹ Como consequência natural do aumento do acesso à educação, Timor dispõe hoje de numerosos quadros, sobretudo na área da economia e desenvolvimento, a maioria formados em universidades indonésias. Como aprecia esta situação?

R. ‹ Hoje, isto não tem muita aplicação. A única saída para eles é irem para ³pegawais² e vegetarem na burocracia.

Para o futuro, para um Timor-Leste independente, pode esse facto ser muito contribuitivo para as necessidades do arranque inicial do país, embora eu creia que esses quadros necessitarão de reciclagem, para que venham a ser eficientes, práticos e dinâmicos na aplicação dos seus conhecimentos para Timor-Leste.

Deixei de ver os indonésios com aversão generalizada

P. ‹ Pode descrever-nos o seu dia-a-dia na prisão?

R. ‹ Nada interessante.

No livro de registos, diário, que os guardas preenchem para enviar ao Laksus, Bakorstanas, BIA e não sei mais aonde, apontam a hora a que acordo, de manhã, a que horas me lavo, a que horas tomo o pequeno-almoço; se vou ou não à capela, às sextas-feiras; a que horas almoço; se tomo uma sesta ou não; o que faço, se leio, se pinto, se saio a fazer exercícios ou a praticar algum desporto; a que horas tomo banho, a que horas janto e a que horas durmo.

E é isto exactamente o que venho fazendo, aturando vindas periódicas dos homens do Laksus para tentarem saber se tenho conhecimento de um ou outro acontecimento, relacionado à luta, seja em Timor-Leste seja aí, no exterior.

P. ‹ Quais os últimos livros que leu? Quais os seus escritores preferidos? Consegue ter acesso a jornais, ouvir rádio, ver TV? Quais?

R. ‹ A jornais e revistas indonésios, que permitem sempre fazer uma estimativa da situação política na Indonésia, pelos pronunciamentos do Suharto, ameaças dos generais e declarações de fidelidade dos ministros e algumas figuras públicas e, por isso tudo, verificar quão repressivo é o regime.

A televisão, depois que a estação privada SCTV foi obrigada a fechar o interessantíssimo programa Perspectiva, deixou de ter interesse. As notícias dançam à roda de Suharto, Habibie e Harmoko. De vez em quando é que Ali Alatas aparece a insultar os timorenses e Portugal.

P. ‹ Diz-se que a sua prisão se deveu a ter cometido a imprudência de se manter muito tempo em Díli. Aceita a crítica?

R. ‹ Aceito, desde que eu deva considerar que só a minha estadia em Díli permitiu que eu fosse capturado, o que não teria acontecido na montanha.

P. ‹ É verdade que quando foi preso se preparava para sair de Timor?

R-Absolutamente falso. As pessoas, às vezes, gostam de imaginar no escuro dos seus pensamentos.

P. ‹ Por força das circunstâncias, hoje conhece melhor o que se passa na Indonésia. Modificou a forma como olha para este país e para os indonésios?

R. ‹ Talvez em parte, pois deixei de ver os indonésios com aquela aversão generalizada que eu tinha antes, porque cada vez sei melhor que temos um inimigo comum, o odioso e repressivo regime militarista do Suharto.

Quanto ao resto, embora melhor agora, a ideia que eu tinha da Indonésia permanece. Uma estratégia obsessiva do estabelecimento de uma pequena burguesia nacional, que acumula as riquezas do país em bancos estrangeiros; uma louca corrida para uma modernização que vai exigindo sempre um maior endividamento, alimentando a corrupção entre o poder político e económico; e um presidente vitalício, com os seus generais ditando ordens a quase 200 milhões de pessoas. Um país potencialmente rico, sem dúvida, mas que não evitará, num futuro imprevisível, passar por enormes crises económicas e políticas.

P. ‹ Acha que o actual regime sobrevirá a Suharto? E que a solução do problema de Timor-Leste é possível sem alteração do regime?

R. ‹ É muito difícil fazer-se uma previsão. Contudo, do pouco que tenho procurado entender, o Suharto tem um domínio pessoal que mais nenhum outro poderá ter. É ainda um enigma para mim a ideia de uma luta entre o Suharto e os militares, no sentido de, como às vezes se diz, o Suharto pretender qualquer coisa, mas encontrar oposição por parte dos generais. Os factos demonstraram que o Suharto ordena e os militares cumprem.

Não há dúvida de que o regime está cheio de problemas, alguns deles insolúveis, e, mesmo que o Suharto morra (e que seja em breve), os militares (não apenas os activos, mas sobretudo os que hoje são ministros, embaixadores e comissários nas empresas, porque eles todos, até as mulheres e filhos e netos, pertencem à Keluarga Besar ABRI, e de relações estreitíssimas com o Golkar e empresas) não desejarão ceder.

Mas, em indo o Suharto para o inferno, o regime só poderá sobreviver à custa de maior repressão ainda e isso será demasiado arriscado. Na Indonésia dá a impressão de que todo o mundo espera apenas que o Suharto morra, para que a crise estale.

Existe uma relação de mútua influência entre a solução do problema de Timor-Leste e a mudança de regime. Contudo, segundo o que eu apreendo, é mais provável a mudança do regime depender da solução do problema de Timor-Leste do que o contrário, numa proporção de 60 para 40 por cento.

Eu acredito que, com uma maior pressão internacional, Jacarta entenderá melhor (e já entendeu) que é necessário dar passos concretos para uma solução do problema. A par disso, uma maior atenção da solidariedade internacional para a violação dos direitos humanos na própria Indonésia, para que o regime se sinta acossado em dois flancos.

P. ‹ Apesar de uma maior visibilidade internacional da questão, Timor-Leste continua longe de uma solução: a Indonésia não cede, os timorenses não dispõem de força para a expulsar e as grandes potências mostram-se indiferentes. Que saída prevê para a situação?

R. ‹ Nós continuaremos a batalhar pelo diálogo sério, que permita encontrar um ponto de partida para a solução do problema.

Portugal já deu passos acertados nessa direcção e, como o novo executivo, o CNRM [Conselho Nacional da Resistência Maubere] tudo fará para ser um parceiro competente na busca de ideias e esforços.

Em Timor-Leste, a população não suporta mais a presença indonésia e prevemos que a resistência popular irá continuar a apostar a sua vida pela libertação da Pátria.

Portugal deve dar assistência à guerrilha

P. ‹ Em Janeiro próximo, os chefes da diplomacia da Indonésia e de Portugal encontram-se para mais uma ronda de conversações sob os auspícios do secretário-geral da ONU. A seguir, deverá ocorrer uma nova reunião entre timorenses pró e contra a presença indonésia no território. Acha que devia participar tanto num como no outro encontro? O que diria, se pudesse participar em qualquer deles?

R. ‹ Eu creio que é absolutamente legítima e lógica a minha participação. Eu combati a ocupação indonésia, defendendo um direito reconhecido pelas Nações Unidas. Fui preso por causa disso e, se os encontros entre timorenses têm o objectivo de ajudar a encontrar uma solução, eu devo participar também.

Se eu pudesse fazer parte do encontro tripartido, necessitaria primeiro de ver com o Governo português o que se devia fazer. Assim também, no intertimorense, teria primeiro de consultar os outros companheiros, para estabelecer o plano de acção, que corresponda aos resultados do encontro tripartido.

P. ‹ No estádio actual do caso de Timor, o que acha que Portugal deve fazer, em concreto?

R. ‹ Aproveito para saudar a vitória socialista nas recentes eleições e, em nome do povo maubere, faço votos de muitos sucessos ao novo Governo, presidido por Sua Excelência o primeiro-ministro sr. eng. António Guterres. Era já nosso convencimento de que Timor-Leste é uma questão de consenso nacional, para a qual a política portuguesa assume responsabilidade constitucionais, com base nos princípios universais e nas resoluções da ONU. E apreciamos imensamente o empenhamento tanto do primeiro-ministro como do ministro dos Negócios Estrangeiros, que indicia um melhorado reforço na busca da solução do problema.

Eu tenho confiança em que o Governo português terá considerado muitas questões que lhe permitirão actuar da melhor maneira. Mas, muito concretamente, eu pediria ao Governo português que apoiasse da melhor forma as necessidades da resistência, no aspecto humanitário de assistência à guerrilha.

A resistência tem vindo a desenvolver as suas actividades com ajuda de organizações humanitárias, sem as quais teríamos tido muito maiores obstáculos, que nunca seriam ultrapassados. A guerrilha necessita de medicamentos, roupas, outros artigos que fazem falta na difícil vida no mato. E Portugal podia, muito concretamente, prestar atenção neste aspecto.

Multipartidarismo e abolição do exército

P. ‹ Encontra-se com os seus movimentos e contactos limitados e as perspectivas de libertação não se mostram imediatas. Qual é o seu papel na resistência? Quem a dirige neste momento?

R. ‹ Continuo a dirigi-la o melhor que posso.

P. ‹ Se os indonésios retirassem hoje do território, quem deveria liderar o processo político interno de transição: os comandantes da guerrilha ou os políticos jovens, forjados na luta nos centros urbanos? Que papel julga dever ser reservado à elite de quadros formados na indonésia e a figuras religiosas?

R. ‹ A guerrilha tem um papel importante a cumprir numa situação destas. A guerrilha, reduzida embora em homens, possui uma influência política atestada ao longo destes 20 anos de guerra e, mesmo que não queira, será solicitada a exercer um papel de pacificação, de normalização e de controlo da situação. Claro, a guerrilha nunca actuou sozinha, quer dizer, a guerrilha e a organização clandestina nunca actuaram como compartimentos estanques e é por isso que existe uma relação única, em termos de capacidade política junto das massas, mais ainda do que poderá acontecer com os políticos, sejam do interior sejam do exterior.

O concurso da guerrilha, apoiada pelos quadros da organização clandestina, é importante como necessário. Os comandantes da guerrilha têm a experiência da situação após o contragolpe e os guerrilheiros são, por assim dizer, os homens mais preparados politicamente e psicologicamente para promover um clima de não represálias.

Mas os guerrilheiros só estão capazes de desempenhar esta missão política de controle da situação. Assim, obviamente, para se poder manter uma administração transitória, não só os políticos jovens serão chamados, como, em maior percentagem, os funcionários do Estado, que aparentemente não têm merecido classificação na estrutura da resistência. Todos possuem já uma experiência rica. A da nossa tomada de poder, depois do contragolpe, e o conhecimento que detêm sobre as diferentes áreas de administração.

A Igreja terá exclusivamente um papel estabilizador, complementar ao da guerrilha, e as portas estão abertas para participarem de um modo indirecto, mas influente, no estabelecimento do poder.

Haverá possibilidades de uns excessos, compreensíveis, mas, com uma boa conjugação destes três elementos, guerrilha, organização clandestina e Igreja, eu acredito, que muito cedo se controlará a situação e se estabelecerá uma administração inicial, para permitir as condições mínimas de funcionamento de uma vida normal.

P. ‹ Através de que medidas concretas se poderia evitar em Timor a ocorrência de situações semelhantes às de Angola e Moçambique?

R. ‹ As causas que, em Angola e Moçambique, levaram a uma guerra civil, por tão longo tempo, não existem hoje em Timor-Leste. Existiram e isso originou, em Agosto de 1975, o golpe da UDT, a que depois se seguiu esta criminosa ocupação.

Agora, partimos todos para um sistema parlamentar multipartidário. Desse pressuposto político, a degradação económica só será concebível se os políticos timorenses vierem a pensar apenas em aproveitar-se da situação para obter regalias.

A degradação económica viria também de despesas não lucrativas, como a manutenção do exército, e isto não vai acontecer; viria também de uma dispendiosa avolumação da elite burocrática; e poderá suceder como resultado da ausência de uma política económica, que venha a constituir os fundamentos racionais de um processo de desenvolvimento específico de Timor-Leste, nas suas potencialidades e nas suas carências.

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