Lições timorenses

25-06-2001
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Análise

Lições Timorenses

Por ADELINO GOMES

Domingo, 10 de Junho de 2001 A extinção do CNRT representa o fim de um capítulo formidável da história de um pequeno país cuja população se deixou chegar ao limite quase da sobrevivência como forma de impor uma derrota ao inimigo mil vezes mais poderoso. 1. Há um momento chave na história da resistência política dos timorenses à ocupação indonésia. Ocorreu em Portugal, em Abril de 1998 e consistiu na substituição de "maubere" por "timorense" na sigla do Conselho Nacional de Resistência. Maubere era um termo pejorativo usado no tempo colonial para referir os "pés-descalços" e que a Fretilin utilizou em 1975 como emblema de luta pelos mais humildes e oprimidos. Na sua aparente simplicidade, esta substituição de um "m" por um "t" marcou o antes e o depois da luta política no interior do território, ao permitir que a frente contra a Indonésia se alargasse de um grupo, ainda que vasto, à sociedade timorense no seu todo, incluindo as confissões religiosas cristãs. É verdade que estas, em particular a poderosa Igreja Católica, já há muito se encontravam comprometidas na resistência. Com excepção dos momentos imediatamente anteriores e posteriores à invasão, em que os seus dirigentes pareceram acreditar que a intervenção indonésia levaria a paz ao território e salvaria a população da ameaça comunista representada pela Fretilin, a Igreja Católica nunca deixou de estar ao lado das populações sofredoras. Primeiro através do administrador apostólico D. Martinho da Costa Lopes, um antigo deputado de Salazar que chegou a integrar uma "troica" da liderança clandestina (e por causa dessa militância se viu afastado pelo Vaticano da diocese). Depois através de Carlos Felipe Ximenes Belo, de quem Roma e Jacarta esperavam uma acção pastoral de algum modo favorável à tese integracionista. A realidade testemunhada no terreno impôs, porém, ao jovem prelado um comportamento de solidariedade e defesa dos injustiçados e das vítimas da opressão. A crueldade da ocupação indonésia, identificada com o Estado "muçulmano", acabaria por conferir à Igreja católica uma força sem paralelo na sociedade timorense, ao mesmo tempo que transformava o bispo Nobel, quiçá contra a sua anterior predisposição, em temido porta-voz das aspirações dos timorenses à autodeterminação. A transformação do CNRM em CNRT foi o coroar de todas estas convergências na acção: removeu os obstáculos psicológicos que alguns sectores da sociedade encontravam ainda na colaboração com as Falintil, herdeiras da guerrilha da Fretilin, e consagrou simbolicamente o carácter nacional da luta de resistência. 2. Foi sob a liderança do CNRT que a nação timorense correu a última e dramática etapa da sua luta contra a ocupação. Como foi na bandeira do CNRT, símbolo da unidade nacional, que mais de 70 por cento dos timorenses votaram, em 30 de Agosto de 1999, com isso querendo dizer que escolhiam um futuro independente. A sua extinção representa o fim de um capítulo formidável da história de um pequeno país cuja população se deixou chegar ao limite quase da sobrevivência como forma de impor uma derrota ao inimigo mil vezes mais poderoso. Por isso se compreende a emoção com que a maioria dos dirigentes, com Xanana Gusmão à frente, votaram a extinção do CNRT. 3. Os atrasos no processo de reconstrução e uma avalancha de críticas ao trabalho da UNTAET têm levado muitos amigos da causa de Timor a olharem com perplexidade e alguma decepção para o processo de transição em curso, receosos dos efeitos a médio e longo prazo das divisões que tão cedo se cavaram entre companheiros da luta clandestina. Esta onda de criticismo esconde algumas boas notícias. A auto-dissolução do CNRT, "sem almejar o poder, sem monopolizar o poder" - caso ímpar na história dos movimentos de libertação nacional, como bem sublinha o representante da ONU, Sérgio Vieira de Mello - é, porventura, a melhor delas todas porque representa um tipo de comportamento que os heróis da resistência assumem desde a libertação. Contrariamente àquilo que vimos noutros processos - também histórica, cultural e psicologicamente próximos de nós - os membros da resistência tiveram que competir em igualdade de circunstâncias com os outros cidadãos para conseguirem um lugar na administração pública. Um outro dado atípico nos processos de independência de antigas colónias: tanto quanto sei, nenhum dos timorenses que ocupam cargos governamentais na Administração Transitória teve direito a residência oficial. Tive ocasião de ver recentemente em Díli tanto a casa em que Xanana Gusmão vive como a casa em que Ramos-Horta continua a viver. Xanana mudou-se, com a mulher e o filho para uma modesta residência situada no bairro de Bemori; Ramos-Horta vive hoje, como vivia há um ano, numa modesta casa da família, a dois passos das antigas instalações da UNAMET. Manuel Carrascalão dizem-me que não abandonou ainda o contentor para os lados do aeroporto onde o encontrei, amargurado, no Natal de 1999. Muitos outros elementos da liderança do CNRT, incluindo aqueles que regressaram do exílio, habitam em precárias condições nas traseiras das casas das respectivas famílias, incendiadas pelas milícias em Setembro de 1999. 4. Quando o mais comum dos bom-sensos aconselharia a manter o CNRT como garante da unidade alcançada, eis que os timorenses tomam de novo a mais difícil das opções e fecham o chapéu com que esconjuravam os velhos demónios do passado e se protegiam dos perigos do confronto. A decisão de avançarem para a criação de partidos (uma dúzia deles já iniciaram o processo de legalização) não deixa também e por isso mesmo de representar uma autêntica lição de democracia. O caminho não é isento de perigos. Como bem notava a CDPM em documento recente ("Partidos políticos e Forças pró-independência", de 5 de Março passado), "as linhas de divisão e reagrupamento em partidos políticos, em Timor-Leste e neste momento, não são as que encontramos em democracias estabilizadas ou sociedades historicamente e culturalmente diferentes. Isto não invalida a democracia, mas obriga a contextualizá-la (sem esquecer as forças indonésias que ainda não aceitaram a separação)". Os timorenses, a quem a comunidade internacional pede democracia e que à comunidade internacional prometeram uma sociedade democrática, decidiram pois jogar o livre jogo democrático. Fazem-no renunciando ao único orgão que poderia amortecer os efeitos de uma derrapagem política nas próximas eleições. É um acto de coragem política, sublinha o documento de "extinção". É um exemplo e uma lição que lhes ficamos mais uma vez a dever. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE O fim da voz única de Timor

A hora de fazer contas

Declaração final

O último adeus ao CNRT

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Por ADELINO GOMES

Domingo, 10 de Junho de 2001 A extinção do CNRT representa o fim de um capítulo formidável da história de um pequeno país cuja população se deixou chegar ao limite quase da sobrevivência como forma de impor uma derrota ao inimigo mil vezes mais poderoso. 1. Há um momento chave na história da resistência política dos timorenses à ocupação indonésia. Ocorreu em Portugal, em Abril de 1998 e consistiu na substituição de "maubere" por "timorense" na sigla do Conselho Nacional de Resistência. Maubere era um termo pejorativo usado no tempo colonial para referir os "pés-descalços" e que a Fretilin utilizou em 1975 como emblema de luta pelos mais humildes e oprimidos. Na sua aparente simplicidade, esta substituição de um "m" por um "t" marcou o antes e o depois da luta política no interior do território, ao permitir que a frente contra a Indonésia se alargasse de um grupo, ainda que vasto, à sociedade timorense no seu todo, incluindo as confissões religiosas cristãs. É verdade que estas, em particular a poderosa Igreja Católica, já há muito se encontravam comprometidas na resistência. Com excepção dos momentos imediatamente anteriores e posteriores à invasão, em que os seus dirigentes pareceram acreditar que a intervenção indonésia levaria a paz ao território e salvaria a população da ameaça comunista representada pela Fretilin, a Igreja Católica nunca deixou de estar ao lado das populações sofredoras. Primeiro através do administrador apostólico D. Martinho da Costa Lopes, um antigo deputado de Salazar que chegou a integrar uma "troica" da liderança clandestina (e por causa dessa militância se viu afastado pelo Vaticano da diocese). Depois através de Carlos Felipe Ximenes Belo, de quem Roma e Jacarta esperavam uma acção pastoral de algum modo favorável à tese integracionista. A realidade testemunhada no terreno impôs, porém, ao jovem prelado um comportamento de solidariedade e defesa dos injustiçados e das vítimas da opressão. A crueldade da ocupação indonésia, identificada com o Estado "muçulmano", acabaria por conferir à Igreja católica uma força sem paralelo na sociedade timorense, ao mesmo tempo que transformava o bispo Nobel, quiçá contra a sua anterior predisposição, em temido porta-voz das aspirações dos timorenses à autodeterminação. A transformação do CNRM em CNRT foi o coroar de todas estas convergências na acção: removeu os obstáculos psicológicos que alguns sectores da sociedade encontravam ainda na colaboração com as Falintil, herdeiras da guerrilha da Fretilin, e consagrou simbolicamente o carácter nacional da luta de resistência. 2. Foi sob a liderança do CNRT que a nação timorense correu a última e dramática etapa da sua luta contra a ocupação. Como foi na bandeira do CNRT, símbolo da unidade nacional, que mais de 70 por cento dos timorenses votaram, em 30 de Agosto de 1999, com isso querendo dizer que escolhiam um futuro independente. A sua extinção representa o fim de um capítulo formidável da história de um pequeno país cuja população se deixou chegar ao limite quase da sobrevivência como forma de impor uma derrota ao inimigo mil vezes mais poderoso. Por isso se compreende a emoção com que a maioria dos dirigentes, com Xanana Gusmão à frente, votaram a extinção do CNRT. 3. Os atrasos no processo de reconstrução e uma avalancha de críticas ao trabalho da UNTAET têm levado muitos amigos da causa de Timor a olharem com perplexidade e alguma decepção para o processo de transição em curso, receosos dos efeitos a médio e longo prazo das divisões que tão cedo se cavaram entre companheiros da luta clandestina. Esta onda de criticismo esconde algumas boas notícias. A auto-dissolução do CNRT, "sem almejar o poder, sem monopolizar o poder" - caso ímpar na história dos movimentos de libertação nacional, como bem sublinha o representante da ONU, Sérgio Vieira de Mello - é, porventura, a melhor delas todas porque representa um tipo de comportamento que os heróis da resistência assumem desde a libertação. Contrariamente àquilo que vimos noutros processos - também histórica, cultural e psicologicamente próximos de nós - os membros da resistência tiveram que competir em igualdade de circunstâncias com os outros cidadãos para conseguirem um lugar na administração pública. Um outro dado atípico nos processos de independência de antigas colónias: tanto quanto sei, nenhum dos timorenses que ocupam cargos governamentais na Administração Transitória teve direito a residência oficial. Tive ocasião de ver recentemente em Díli tanto a casa em que Xanana Gusmão vive como a casa em que Ramos-Horta continua a viver. Xanana mudou-se, com a mulher e o filho para uma modesta residência situada no bairro de Bemori; Ramos-Horta vive hoje, como vivia há um ano, numa modesta casa da família, a dois passos das antigas instalações da UNAMET. Manuel Carrascalão dizem-me que não abandonou ainda o contentor para os lados do aeroporto onde o encontrei, amargurado, no Natal de 1999. Muitos outros elementos da liderança do CNRT, incluindo aqueles que regressaram do exílio, habitam em precárias condições nas traseiras das casas das respectivas famílias, incendiadas pelas milícias em Setembro de 1999. 4. Quando o mais comum dos bom-sensos aconselharia a manter o CNRT como garante da unidade alcançada, eis que os timorenses tomam de novo a mais difícil das opções e fecham o chapéu com que esconjuravam os velhos demónios do passado e se protegiam dos perigos do confronto. A decisão de avançarem para a criação de partidos (uma dúzia deles já iniciaram o processo de legalização) não deixa também e por isso mesmo de representar uma autêntica lição de democracia. O caminho não é isento de perigos. Como bem notava a CDPM em documento recente ("Partidos políticos e Forças pró-independência", de 5 de Março passado), "as linhas de divisão e reagrupamento em partidos políticos, em Timor-Leste e neste momento, não são as que encontramos em democracias estabilizadas ou sociedades historicamente e culturalmente diferentes. Isto não invalida a democracia, mas obriga a contextualizá-la (sem esquecer as forças indonésias que ainda não aceitaram a separação)". Os timorenses, a quem a comunidade internacional pede democracia e que à comunidade internacional prometeram uma sociedade democrática, decidiram pois jogar o livre jogo democrático. Fazem-no renunciando ao único orgão que poderia amortecer os efeitos de uma derrapagem política nas próximas eleições. É um acto de coragem política, sublinha o documento de "extinção". É um exemplo e uma lição que lhes ficamos mais uma vez a dever. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE O fim da voz única de Timor

A hora de fazer contas

Declaração final

O último adeus ao CNRT

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