Suplemento Mil Folhas

04-10-2001
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Segredos de Cordas

Por CRISTINA FERNANDES

Sábado, 29 de Setembro de 2001

Dedilhados ou friccionados, os instrumentos de corda foram protagonistas de todas as vanguardas musicais. Este é o tema das XXII Jornadas Gulbenkian de Música Antiga. Oportunidade para ouvir alguns virtuosos destes instrumentos num extenso mosaico de timbres, géneros e estilos.

As cordas são uma presença quase constante nos vários domínios da prática musical. Desde os finais do renascimento - que coincide com a emancipação da música instrumental - adquiriram também um papel crucial no desenvolvimento da linguagem e das principais estéticas da arte dos sons. A edição deste ano das Jornadas Gulbenkian de Música Antiga propõe a ambiciosa tarefa de delinear o papel dos instrumentos de corda dedilhada e de arco na música erudita europeia entre o Renascimento e os alvores do Romantismo. Os repertórios italiano, alemão, francês, inglês, espanhol e português, visitados alternadamente por alguns dos mais destacados intérpretes mundiais, serão as peças de um "puzzle" tão gigantesco como fascinante onde as famílias da viola da gamba e do violino (a solo ou em conjuntos de geometria variável) se cruzam com as cordas beliscadas do alaúde, da vihuela, das guitarras renascentista e barroca ou de instrumentos de tecla como o cravo. Para abrir o apetite e alargar horizontes, a habitual conferência de abertura de Rui Vieira Nery (dia 1, às 18h30, no Auditório 2 da Gulbenkian) versará o tema "A música para cordas como território de todas as vanguardas".

Cordas, friccionadas

Os dois extremos do período temporal abarcado pelo tema das jornadas encontram-se respectivamente marcados pela afirmação das famílias da viola da gamba e do violino. A viola da gamba gozou de um estatuto muito diversificado nos vários centros europeus. Assim, enquanto a Inglaterra possuía uma tradição de valor excepcional que remontava aos finais do Renascimento, os alemães interessavam-se por ela sobretudo como instrumento de conjunto, enquanto em Itália se preferia o violino. Em contrapartida, os franceses viam-na como um instrumento nobre e expressivo, dando origem a uma escola de pujante vitalidade da qual Marin Marais e Antoine Forqueray - "L'Ange e Le Diable", como lhes chamou Hubert le Blanc - foram os mais brilhantes representantes.

A competição aberta com a família do violino em meados do século XVIII chegou mesmo a ser objecto de várias polémicas das quais o testemunho mais célebre é a "Defense de la basse de viole contre les entreprises du violon et les prétentions du violoncel" (1740), do já citado Le Blanc, que contrapunha a nobreza estética e sonora da viola da gamba à "natureza vulgar" do violino e do violoncelo.

Ao invés, o barroco italiano coincidiu com a idade de ouro do violino, aperfeiçoado por construtores lendários como Amati, Guarneri e Stradivarius e tocado por virtuosos da craveira de Corelli, Torelli, Locatelli, Tartini ou Vivaldi. Estes últimos dedicaram-lhe também composições de brilho exuberante e técnica diabólica.

Um dos grandes atractivos destas jornadas consiste precisamente na participação de alguns dos mais consumados mestres do nosso tempo nestes instrumentos: Jordi Savall na viola da gamba - destaca-se o concerto "La Viole du Roi Soleil", no dia 2, na Academia das Ciências, em conjunto com o fantástico alaúdista e guitarrista Rolf Lislevand e o cravista Michel Behringer -, Andrew Manze ou Chiara Banchini no violino barroco, Anner Bylsma e Christophe Coin no violoncelo barroco...

Cordas, na música de câmara

Nos finais do século XVI e durante o século XVII, a música de câmara foi, em parte, protagonizada pelos "consorts" de violas da gamba, sobretudo na Inglaterra isabelina. A partir de meados do século XVIII, na sequência da progressiva afirmação do violino, esta passaria a estruturar-se a partir do quarteto de cordas e seus derivados (trios, quintetos, sextetos). O "consort" seiscentista Hesperion XXI, um dos grupos de Jordi Savall, representa esse primeiro momento, com o programa "As Lágrimas das Musas", enquanto o prestigiado Ensemble Baroque de Limoges de Christophe Coin (no dia 8, nos Jerónimos) testemunha o segundo, com Sextetos e Divertimentos de Boccherini e transcrições da Sinfonia Concertante e da Sinfonia "Haffner", de Mozart. O lendário L'Archibudelli de Bylsma revela-nos, por seu turno, algumas das jóias da música de câmara do classicismo e do primeiro romantismo (o Trio nº 1, de Haydn; o Divertimento KV 563, de Mozart; os Trios op. 9, de Beethoven; e o Trio nº 2, de Schubert) através das macias sonoridades das cordas de tripa dos seus instrumentos (dias 6 e 7, no Palácio da Ajuda e nos Jerónimos).

Cordas, na orquestra

Foi durante o barroco que surgiram as primeiras orquestras no sentido moderno do termo, ou seja, os primeiros agrupamentos de grandes dimensões em que a distribuição instrumental é anterior à composição das obras e as condiciona. Nascida para garantir a música dos "Ballets de Cour", a orquestra "Les 24 Violons du Roi " (também conhecida como "La Grande Bande" ) da corte de Luís XIV, foi pioneira nesta aventura, transformou-se, sob a orientação de Lully, num conjunto de magnitude e excelência únicas na Europa e no modelo de outras cortes absolutistas. As principais "nações musicais" (Itália, França e Alemanha) desenvolveram simultaneamente géneros (concertos, suites, sinfonias, aberturas...) e estilos próprios em conformidade com o potencial destas formações. Os principais terão um lugar de destaque nestas jornadas. "Le Concert des Nations", de Jordi Savall, traz-nos a graciosidade e os ritmos dançantes das suites extraídas de obras dramáticas de Lully, Marais e Rameau, mas também as tendências pictóricas da música francesa (no dia 1, na Gulbenkian). A Academy of Ancient Music, de Andrew Manze - que retoma o nome da formação londrina do tempo de Haendel - dedica um programa à música alemã (Händel, Telemann, Scheidt, Pisendel, Carl Ph. E. Bach, J. S. Bach) e outro à música italiana (Locatelli, Vivaldi, Corelli) - nos dias 11 e 12, na Sociedade de Geografia -, enquanto a Akademie für Alte Musik Berlin nos revela algumas das tendências da transição para o classicismo (Graun, Reichardt, Wilhelm F. Bach, Nichelmann) nos dias 13 e 14 (Academia das Ciências e Gulbenkian). O repertório português do século XVIII de acentuada influência italiana, também não foi esquecido. A Capela Real, dirigida pelo violinista Stephen Bull, interpretará o conjunto da produção orquestral conhecida de Carlos Seixas - com José Luís González Uriol como solista no concerto para cravo - em conjunto com peças de Francisco António de Almeida, Pedro António Avondano, Jerónimo Francisco de Lima e José Palomino (no dia 9, no São Carlos).

Cordas, dedilhadas

O alaúde foi um dos instrumentos mais apreciados para acompanhar a voz e um dos mais utilizados na realização do baixo contínuo, mas seria inevitavelmente a sua dimensão solística a inspirar as obras de maior esplendor. Virtuosos como Dennis e Ennemond Gaultier na França seiscentista ou Sylvius Leopold Weiss na Alemanha do século XVIII conduziram a escrita para este instrumento a um elevado grau de refinamento e sofisticação, como se poderá constatar no recital de Edin Karamazov, o mesmo intérprete que acompanhou Scholl na última temporada Gulbenkian (no dia 5, no Palácio Fronteira). Na Península Ibérica preferia-se a vihuela e a guitarra, onde floresceu uma importante escola de composição e interpretação, ilustrada pelo recital de Toyohiko Satoh e Manuel Morais com obras dos séculos XVI a XVIII (no dia 10, no Palácio da Ajuda).

Cordas, vocais

Face à especificidade do tema, a música vocal terá uma representação reduzida. No entanto, é caso para dizer: "poucos, mas bons". A soprano argentina Maria Cristina Kiehr - uma das vozes mais belas e emblemáticas da música antiga, habitual colaboradora de René Jacobs, Savall, Herreweghe, Leonhardt, Garrido e de tantos outros nomes gigantescos - e o contratenor Andreas Scholl, verdadeira "super-estrela" do canto barroco, protagonizam dois concertos imperdíveis. O primeiro (dia 4, na Academia das Ciências), com o Ensemble 415, é dedicado à família Bononcini, com sinfonias, sonatas e cantatas de Giovanni Maria, Antonio Maria e Givanni Battista Bononcini. O segundo (no dia 14, na Gulbenkian) oferece-nos algum do repertório habitual de Scholl - árias de Mozart, J. S. Bach e Gluck - em conjunto com a música orquestral dos filhos de Bach (Johann Christian e Wilhelm Friedemann) interpretada pela Akademie für Alte Musik, para muitos a melhor orquestra barroca actual. Ouro sobre azul num encerramento que se adivinha inesquecível.

Segredos de Cordas

Por CRISTINA FERNANDES

Sábado, 29 de Setembro de 2001

Dedilhados ou friccionados, os instrumentos de corda foram protagonistas de todas as vanguardas musicais. Este é o tema das XXII Jornadas Gulbenkian de Música Antiga. Oportunidade para ouvir alguns virtuosos destes instrumentos num extenso mosaico de timbres, géneros e estilos.

As cordas são uma presença quase constante nos vários domínios da prática musical. Desde os finais do renascimento - que coincide com a emancipação da música instrumental - adquiriram também um papel crucial no desenvolvimento da linguagem e das principais estéticas da arte dos sons. A edição deste ano das Jornadas Gulbenkian de Música Antiga propõe a ambiciosa tarefa de delinear o papel dos instrumentos de corda dedilhada e de arco na música erudita europeia entre o Renascimento e os alvores do Romantismo. Os repertórios italiano, alemão, francês, inglês, espanhol e português, visitados alternadamente por alguns dos mais destacados intérpretes mundiais, serão as peças de um "puzzle" tão gigantesco como fascinante onde as famílias da viola da gamba e do violino (a solo ou em conjuntos de geometria variável) se cruzam com as cordas beliscadas do alaúde, da vihuela, das guitarras renascentista e barroca ou de instrumentos de tecla como o cravo. Para abrir o apetite e alargar horizontes, a habitual conferência de abertura de Rui Vieira Nery (dia 1, às 18h30, no Auditório 2 da Gulbenkian) versará o tema "A música para cordas como território de todas as vanguardas".

Cordas, friccionadas

Os dois extremos do período temporal abarcado pelo tema das jornadas encontram-se respectivamente marcados pela afirmação das famílias da viola da gamba e do violino. A viola da gamba gozou de um estatuto muito diversificado nos vários centros europeus. Assim, enquanto a Inglaterra possuía uma tradição de valor excepcional que remontava aos finais do Renascimento, os alemães interessavam-se por ela sobretudo como instrumento de conjunto, enquanto em Itália se preferia o violino. Em contrapartida, os franceses viam-na como um instrumento nobre e expressivo, dando origem a uma escola de pujante vitalidade da qual Marin Marais e Antoine Forqueray - "L'Ange e Le Diable", como lhes chamou Hubert le Blanc - foram os mais brilhantes representantes.

A competição aberta com a família do violino em meados do século XVIII chegou mesmo a ser objecto de várias polémicas das quais o testemunho mais célebre é a "Defense de la basse de viole contre les entreprises du violon et les prétentions du violoncel" (1740), do já citado Le Blanc, que contrapunha a nobreza estética e sonora da viola da gamba à "natureza vulgar" do violino e do violoncelo.

Ao invés, o barroco italiano coincidiu com a idade de ouro do violino, aperfeiçoado por construtores lendários como Amati, Guarneri e Stradivarius e tocado por virtuosos da craveira de Corelli, Torelli, Locatelli, Tartini ou Vivaldi. Estes últimos dedicaram-lhe também composições de brilho exuberante e técnica diabólica.

Um dos grandes atractivos destas jornadas consiste precisamente na participação de alguns dos mais consumados mestres do nosso tempo nestes instrumentos: Jordi Savall na viola da gamba - destaca-se o concerto "La Viole du Roi Soleil", no dia 2, na Academia das Ciências, em conjunto com o fantástico alaúdista e guitarrista Rolf Lislevand e o cravista Michel Behringer -, Andrew Manze ou Chiara Banchini no violino barroco, Anner Bylsma e Christophe Coin no violoncelo barroco...

Cordas, na música de câmara

Nos finais do século XVI e durante o século XVII, a música de câmara foi, em parte, protagonizada pelos "consorts" de violas da gamba, sobretudo na Inglaterra isabelina. A partir de meados do século XVIII, na sequência da progressiva afirmação do violino, esta passaria a estruturar-se a partir do quarteto de cordas e seus derivados (trios, quintetos, sextetos). O "consort" seiscentista Hesperion XXI, um dos grupos de Jordi Savall, representa esse primeiro momento, com o programa "As Lágrimas das Musas", enquanto o prestigiado Ensemble Baroque de Limoges de Christophe Coin (no dia 8, nos Jerónimos) testemunha o segundo, com Sextetos e Divertimentos de Boccherini e transcrições da Sinfonia Concertante e da Sinfonia "Haffner", de Mozart. O lendário L'Archibudelli de Bylsma revela-nos, por seu turno, algumas das jóias da música de câmara do classicismo e do primeiro romantismo (o Trio nº 1, de Haydn; o Divertimento KV 563, de Mozart; os Trios op. 9, de Beethoven; e o Trio nº 2, de Schubert) através das macias sonoridades das cordas de tripa dos seus instrumentos (dias 6 e 7, no Palácio da Ajuda e nos Jerónimos).

Cordas, na orquestra

Foi durante o barroco que surgiram as primeiras orquestras no sentido moderno do termo, ou seja, os primeiros agrupamentos de grandes dimensões em que a distribuição instrumental é anterior à composição das obras e as condiciona. Nascida para garantir a música dos "Ballets de Cour", a orquestra "Les 24 Violons du Roi " (também conhecida como "La Grande Bande" ) da corte de Luís XIV, foi pioneira nesta aventura, transformou-se, sob a orientação de Lully, num conjunto de magnitude e excelência únicas na Europa e no modelo de outras cortes absolutistas. As principais "nações musicais" (Itália, França e Alemanha) desenvolveram simultaneamente géneros (concertos, suites, sinfonias, aberturas...) e estilos próprios em conformidade com o potencial destas formações. Os principais terão um lugar de destaque nestas jornadas. "Le Concert des Nations", de Jordi Savall, traz-nos a graciosidade e os ritmos dançantes das suites extraídas de obras dramáticas de Lully, Marais e Rameau, mas também as tendências pictóricas da música francesa (no dia 1, na Gulbenkian). A Academy of Ancient Music, de Andrew Manze - que retoma o nome da formação londrina do tempo de Haendel - dedica um programa à música alemã (Händel, Telemann, Scheidt, Pisendel, Carl Ph. E. Bach, J. S. Bach) e outro à música italiana (Locatelli, Vivaldi, Corelli) - nos dias 11 e 12, na Sociedade de Geografia -, enquanto a Akademie für Alte Musik Berlin nos revela algumas das tendências da transição para o classicismo (Graun, Reichardt, Wilhelm F. Bach, Nichelmann) nos dias 13 e 14 (Academia das Ciências e Gulbenkian). O repertório português do século XVIII de acentuada influência italiana, também não foi esquecido. A Capela Real, dirigida pelo violinista Stephen Bull, interpretará o conjunto da produção orquestral conhecida de Carlos Seixas - com José Luís González Uriol como solista no concerto para cravo - em conjunto com peças de Francisco António de Almeida, Pedro António Avondano, Jerónimo Francisco de Lima e José Palomino (no dia 9, no São Carlos).

Cordas, dedilhadas

O alaúde foi um dos instrumentos mais apreciados para acompanhar a voz e um dos mais utilizados na realização do baixo contínuo, mas seria inevitavelmente a sua dimensão solística a inspirar as obras de maior esplendor. Virtuosos como Dennis e Ennemond Gaultier na França seiscentista ou Sylvius Leopold Weiss na Alemanha do século XVIII conduziram a escrita para este instrumento a um elevado grau de refinamento e sofisticação, como se poderá constatar no recital de Edin Karamazov, o mesmo intérprete que acompanhou Scholl na última temporada Gulbenkian (no dia 5, no Palácio Fronteira). Na Península Ibérica preferia-se a vihuela e a guitarra, onde floresceu uma importante escola de composição e interpretação, ilustrada pelo recital de Toyohiko Satoh e Manuel Morais com obras dos séculos XVI a XVIII (no dia 10, no Palácio da Ajuda).

Cordas, vocais

Face à especificidade do tema, a música vocal terá uma representação reduzida. No entanto, é caso para dizer: "poucos, mas bons". A soprano argentina Maria Cristina Kiehr - uma das vozes mais belas e emblemáticas da música antiga, habitual colaboradora de René Jacobs, Savall, Herreweghe, Leonhardt, Garrido e de tantos outros nomes gigantescos - e o contratenor Andreas Scholl, verdadeira "super-estrela" do canto barroco, protagonizam dois concertos imperdíveis. O primeiro (dia 4, na Academia das Ciências), com o Ensemble 415, é dedicado à família Bononcini, com sinfonias, sonatas e cantatas de Giovanni Maria, Antonio Maria e Givanni Battista Bononcini. O segundo (no dia 14, na Gulbenkian) oferece-nos algum do repertório habitual de Scholl - árias de Mozart, J. S. Bach e Gluck - em conjunto com a música orquestral dos filhos de Bach (Johann Christian e Wilhelm Friedemann) interpretada pela Akademie für Alte Musik, para muitos a melhor orquestra barroca actual. Ouro sobre azul num encerramento que se adivinha inesquecível.

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