EXPRESSO: Opinião

01-03-2002
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Desactualizada

Maria João Avillez

«O Instituto Camões, prestes a completar dez anos, anunciou há dias querer triplicar os 'centros de português' por esse vasto mundo fora. Eu gostaria de saber para quê. Já uma vez aqui falei nisto. A verdade é que, com raras excepções, não fui capaz de vislumbrar nos que conheço — e conheço alguns — a utilidade ou o sentido que lhe emprestam os responsáveis.»

Domingo, 27

«E SE fôssemos atravessar o rio de cacilheiro?!» Fomos. Em pleno Inverno Lisboa pode ter esta luz e a doçura transparente desta luz. O Tejo era um espelho líquido que, ao longe, num mesmo azul, se confundia com o céu. «Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa...». O’Neill sabia que só o voo da gaivota abarcaria o milagre desta luz.

Segunda, 28

PERCEBE-SE o excesso com que Marcelo Rebelo de Sousa tingiu de laranja a sua televisiva charla de ontem. Tratou-se «marcelisticamente» de elevar ao máximo fasquias e expectativas, abrindo o tapete da vitória ao PSD e ao seu líder para depois, em caso de más notícias, pedir contas pelo zero a comportamento. Percebe-se igualmente esta quase física sensação de derrota que os socialistas trazem colada à pele. É que a apregoada «seriedade» de Ferro Rodrigues — o «principal ministro de Guterres», como eles dizem — por si só não chega para fazer milagres. Tal como se apresentam as listas, as tropas e o aparelho, só um milagre. Noutra sede, o que não se percebe de todo é como é que um dirigente com as responsabilidades políticas e culturais de Rosado Fernandes escolhe esta altura para na primeira página de um jornal acusar o PSD de «prostituta», por recusar uma aliança pré-eleitoral com o PP. Conhecendo-se a história, ela recomendaria que se usassem agora palavras, actos e gestos escritos em filigrana. Não têm remédio nem remissão. Mas, por este caminho, estão a pedi-las.

Terça, 29

O FINAL do Encontro de Assis trouxe, trouxe-nos, o anúncio de outra era. Nova era porque selada num antes inimaginável compromisso interconfessional. Foram muitos os signatários e vieram de muito longe ao encontro do Papa, que tinha apenas o Evangelho numa mão e a oração na outra. E no coração a fecunda fé que sempre inspirou os passos de um homem de Deus chamado Karol Wojtyla. É-me impossível transcrever na íntegra o texto final deste riquíssimo, raríssimo, encontro de religiões. Mas como muito lucidamente já escreveu Mário Pinto, parece mais difícil agora aos senhores da guerra reivindicarem para ela uma legitimidade «religiosa». Mesmo que os amanhãs se mostrem, como mostram, cobertos de temores e envoltos em sombra.

Quarta, 30

DUAS notas que me ficaram na cabeça. Primeira: o melhor da entrevista de Santana Lopes ao «Público» não são as medidas nem a manifesta energia. É uma pequena frase que expõe um critério político e define uma estratégia: «não estou à espera de consenso». Com o que aí está e com o que aí vem, devia servir de lema ao próprio PSD. (E que fizeram Sá Carneiro e Cavaco senão resistir a agradar a todos e a todos contentar?)

Segunda: com o rádio quase sempre ligado para a Antena 2, ouvi há dias um senhor que não conheço (Manuel Morais, seria?) que me pareceu dirigir uma orquestra recém-criada — Orquestra Orfeus — com sede na Universidade de Évora. Não sei se é bem isto, mas retive o que me pareceu essencial, que também neste caso se resume a uma pequena frase: «o objectivo da orquestra é prestar serviço à comunidade». É que é tão raro alguém achar que o seu ofício, a sua arte, o seu «melhor» se destinam prioritariamente a «servir» e não a pedir — subsídios, instalações, ajudas — que gosto de o sublinhar aqui. Com a devida vénia.

Quinta, 31

O INSTITUTO Camões, prestes a completar dez anos, anunciou há dias querer triplicar os «centros de português» por esse vasto mundo fora. Eu gostaria de saber para quê. Já uma vez aqui falei nisto. A verdade é que, com raras excepções, não fui capaz de vislumbrar nos que conheço — e conheço alguns — a utilidade ou o sentido que lhe emprestam os responsáveis, por muito que culturalmente tenham bons pergaminhos. Posso estar desactualizada mas, que me lembre, há umas exposições, há caríssimas «embaixadas de escritores», há uns livros nas estantes, uma gente que aparece para ler jornais da «pátria» e eventos com escasso público. Ainda agora, em Maputo — onde estive em Dezembro —, voltei a ouvir explicarem-me as deficiências do nosso centro cultural e a sua triste existência, «versus» a magnânima utilidade do centro cultural francês (o maravilhoso edifício onde a França cultural está instalada na capital de Moçambique foi em primeiro lugar oferecido a Portugal, que o recusou por falta de verba). Ao longo de diversas viagens às sete partidas, fui encontrando sempre vários «Camões» a meia-nau, tristonhos e bisonhos, onde sobrevivem — por entre um critério vago, pouco dinheiro e nenhuma vontade política — umas almas pouco estimuladas. Saltar então de 18 para 60... é melhor dizerem-nos para quê. E, já agora: quanto vale o nosso dinheiro?

E-mail: mjoaoavillez@hotmail.com

Desactualizada

Maria João Avillez

«O Instituto Camões, prestes a completar dez anos, anunciou há dias querer triplicar os 'centros de português' por esse vasto mundo fora. Eu gostaria de saber para quê. Já uma vez aqui falei nisto. A verdade é que, com raras excepções, não fui capaz de vislumbrar nos que conheço — e conheço alguns — a utilidade ou o sentido que lhe emprestam os responsáveis.»

Domingo, 27

«E SE fôssemos atravessar o rio de cacilheiro?!» Fomos. Em pleno Inverno Lisboa pode ter esta luz e a doçura transparente desta luz. O Tejo era um espelho líquido que, ao longe, num mesmo azul, se confundia com o céu. «Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa...». O’Neill sabia que só o voo da gaivota abarcaria o milagre desta luz.

Segunda, 28

PERCEBE-SE o excesso com que Marcelo Rebelo de Sousa tingiu de laranja a sua televisiva charla de ontem. Tratou-se «marcelisticamente» de elevar ao máximo fasquias e expectativas, abrindo o tapete da vitória ao PSD e ao seu líder para depois, em caso de más notícias, pedir contas pelo zero a comportamento. Percebe-se igualmente esta quase física sensação de derrota que os socialistas trazem colada à pele. É que a apregoada «seriedade» de Ferro Rodrigues — o «principal ministro de Guterres», como eles dizem — por si só não chega para fazer milagres. Tal como se apresentam as listas, as tropas e o aparelho, só um milagre. Noutra sede, o que não se percebe de todo é como é que um dirigente com as responsabilidades políticas e culturais de Rosado Fernandes escolhe esta altura para na primeira página de um jornal acusar o PSD de «prostituta», por recusar uma aliança pré-eleitoral com o PP. Conhecendo-se a história, ela recomendaria que se usassem agora palavras, actos e gestos escritos em filigrana. Não têm remédio nem remissão. Mas, por este caminho, estão a pedi-las.

Terça, 29

O FINAL do Encontro de Assis trouxe, trouxe-nos, o anúncio de outra era. Nova era porque selada num antes inimaginável compromisso interconfessional. Foram muitos os signatários e vieram de muito longe ao encontro do Papa, que tinha apenas o Evangelho numa mão e a oração na outra. E no coração a fecunda fé que sempre inspirou os passos de um homem de Deus chamado Karol Wojtyla. É-me impossível transcrever na íntegra o texto final deste riquíssimo, raríssimo, encontro de religiões. Mas como muito lucidamente já escreveu Mário Pinto, parece mais difícil agora aos senhores da guerra reivindicarem para ela uma legitimidade «religiosa». Mesmo que os amanhãs se mostrem, como mostram, cobertos de temores e envoltos em sombra.

Quarta, 30

DUAS notas que me ficaram na cabeça. Primeira: o melhor da entrevista de Santana Lopes ao «Público» não são as medidas nem a manifesta energia. É uma pequena frase que expõe um critério político e define uma estratégia: «não estou à espera de consenso». Com o que aí está e com o que aí vem, devia servir de lema ao próprio PSD. (E que fizeram Sá Carneiro e Cavaco senão resistir a agradar a todos e a todos contentar?)

Segunda: com o rádio quase sempre ligado para a Antena 2, ouvi há dias um senhor que não conheço (Manuel Morais, seria?) que me pareceu dirigir uma orquestra recém-criada — Orquestra Orfeus — com sede na Universidade de Évora. Não sei se é bem isto, mas retive o que me pareceu essencial, que também neste caso se resume a uma pequena frase: «o objectivo da orquestra é prestar serviço à comunidade». É que é tão raro alguém achar que o seu ofício, a sua arte, o seu «melhor» se destinam prioritariamente a «servir» e não a pedir — subsídios, instalações, ajudas — que gosto de o sublinhar aqui. Com a devida vénia.

Quinta, 31

O INSTITUTO Camões, prestes a completar dez anos, anunciou há dias querer triplicar os «centros de português» por esse vasto mundo fora. Eu gostaria de saber para quê. Já uma vez aqui falei nisto. A verdade é que, com raras excepções, não fui capaz de vislumbrar nos que conheço — e conheço alguns — a utilidade ou o sentido que lhe emprestam os responsáveis, por muito que culturalmente tenham bons pergaminhos. Posso estar desactualizada mas, que me lembre, há umas exposições, há caríssimas «embaixadas de escritores», há uns livros nas estantes, uma gente que aparece para ler jornais da «pátria» e eventos com escasso público. Ainda agora, em Maputo — onde estive em Dezembro —, voltei a ouvir explicarem-me as deficiências do nosso centro cultural e a sua triste existência, «versus» a magnânima utilidade do centro cultural francês (o maravilhoso edifício onde a França cultural está instalada na capital de Moçambique foi em primeiro lugar oferecido a Portugal, que o recusou por falta de verba). Ao longo de diversas viagens às sete partidas, fui encontrando sempre vários «Camões» a meia-nau, tristonhos e bisonhos, onde sobrevivem — por entre um critério vago, pouco dinheiro e nenhuma vontade política — umas almas pouco estimuladas. Saltar então de 18 para 60... é melhor dizerem-nos para quê. E, já agora: quanto vale o nosso dinheiro?

E-mail: mjoaoavillez@hotmail.com

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