Menos dogmas e mais ousadia

17-07-2001
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Menos Dogmas e Mais Ousadia

Por FREI BENTO DOMINGUES

Domingo, 15 de Julho de 2001 1. Fiquei muito surpreendido com a grande notícia do passado dia 7: um lisboeta dominicano, nascido em 1514, D. Frei Bartolomeu dos Mártires, conhecido no Concílio de Trento como "O Bracarense", que morreu em Viana do Castelo no ano de 1590 - e cujo cadáver foi defendido, de armas na mão, para não ser raptado pela Cidade dos Arcebispos - vai, finalmente, ser beatificado. E espantado porquê? D. Frei Bartolomeu era, sem dúvida, um sábio, um santo, um zeloso pastor da Igreja, um defensor dos pobres e das viúvas, tudo o que quiserem. Mas quatro séculos já me pareciam suficientes para provar que ele não tinha carisma para suscitar devotos apaixonados, pessoas que por tudo e por nada recorrem ao seu auxílio e que o recomendem às amigas para que o invoquem nos momentos de necessidade e aflição. E, sem carisma, como se diz agora dos políticos, nada feito! S. Carlos Borromeu e S. Pio V conheceram-no pessoalmente, admiravam-no muito, aconselhavam-se com ele, chamavam-lhe santo. O papa Gregório XVI publicou o decreto da heroicidade das suas virtudes. João Paulo II, quando veio a Fátima pela primeira vez, em 1982, além dos elogios que lhe dedicou, apresentou-o aos Bispos portugueses como símbolo dos pastores que são verdadeiramente modelos. Nesse instante, ainda pensei que tinha chegado a hora do eternamente preterido. Os pastorinhos de Fátima adiantaram-se e ganharam os altares. 2. Acompanho, desde os finais dos anos 50, a sapientíssima teimosia de Frei Raúl de Almeida Rolo. Abraçou uma causa que não se confundia com o reconhecimento nos altares das provadíssimas e heróicas virtudes do famoso Arcebispo de Braga (1559-1582) e do maior protagonista do atribulado Concílio de Trento, na douta opinião do historiador alemão, Herbert Jedin. Não o movia a caça ao milagre. O reconhecimento canónico de mais um santo ou de menos um santo não pode ser a preocupação principal de um teólogo. Interessava-lhe investigar, revelar e sobretudo documentar a estatura ignorada de um corajoso reformador que baseou a sua espantosa acção num aturado labor teológico (Cf. "Theologica Scripta", 6 vol.), que frequentou a escola dos mais genuínos pastores da Igreja (Cf, "Estímulo de Pastores"), que vivia no convívio dos grandes mestres da vida espiritual (Cf. "Compêndio de Doutrina Espiritual") e cuja preocupação essencial era fazer chegar aos mais rústicos a Palavra de Deus, àqueles que nas Visitas Pastorais o recebiam com orações de fazer tremer as pedras - "Bendita seja a Santíssima Trindade, irmã de Nossa Senhora" - e que ele recebia com um sorriso, sabendo muito bem de quem era a responsabilidade da asneira e a obrigação que tinha de lhe dar remédio adequado (Cf. "Catecismo ou Doutrina Cristã e Práticas Espirituais"). A unidade existencial entre contemplação, estudo e acção apostólica que brilhava na vida do Arcebispo foi desenvolvida na experiência da Reforma Dominicana dessa época, também ela por estudar. Para Frei Raúl de Almeida Rolo, era absolutamente inaceitável que "aquela famosa trombeta" - na expressão da sonora "Vida do Arcebispo" de Frei Luís de Sousa - que tanto batalhou no último período do Concílio de Trento (1562-1563) e que tanta influência tivera em vários países - basta pensar nas traduções e no número de edições que alcançou - estivesse, no começo da preparação do Vaticano II, reduzida ao silêncio ou a algumas anedotas de duvidosa historicidade. 3. Frei Raúl de Almeida Rolo, bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, não se tornou apenas o grande especialista de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. É certo que dedicou ao seu pensamento pastoral, social e doutrinal as teses de leitorado e doutoramento, fez a edição crítica das sua Obras Completas, consagrou-lhe vários Congressos e difundiu as investigações realizadas através de inumeráveis obras e colóquios à história da Igreja no século XVI - que é urgente reunir -, encontrou entre os historiadores portugueses e estrangeiros muitas cumplicidades e alianças frutuosas em torno desta gigantesca figura da Igreja em Portugal. Antes de lhe conseguir num templo um nicho para os devotos, tentou abrir-lhe um espaço na cultura histórica portuguesa. O trabalho de investigador acompanhou o de promotor da causa de beatificação de Bartolomeu dos Mártires que foi o "o fogo, o raio e o corisco" do Concílio de Trento. Queria que se evitassem conversas pseudo-doutrinárias que não levavam a nada e apenas serviam para desviar as atenções da urgentíssima reforma da vida do papa, dos cardeais, dos bispos e dos padres. E tomando uma posição diametralmente oposta à do Papa Pio IV - acerca das prioridades a observar no Concílio - fez saber que "a Igreja e o Mundo estavam muito mais precisados da reforma do que de dogmas"... Beatificar não é calar D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Ele tem hoje algo a lembrar à hierarquia eclesiástica actual: não nos saturem com documentos carregados de dogmatismo que apenas servem para ocultar o confronto com várias reformas urgentes. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

O novo desafio deTimor-Leste

A COLUNA DO PROVEDOR DO LEITOR

Assuntos melindrosos

OPINIÃO

Menos dogmas e mais ousadia

Mandatos e mandantes

Wagner em Jerusalém

El País

CARTAS AO DIRECTOR

A saúde é um direito

Objectividade "versus" opinião

Citações

O PÚBLICO ERROU

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Domingo, 15 de Julho de 2001 1. Fiquei muito surpreendido com a grande notícia do passado dia 7: um lisboeta dominicano, nascido em 1514, D. Frei Bartolomeu dos Mártires, conhecido no Concílio de Trento como "O Bracarense", que morreu em Viana do Castelo no ano de 1590 - e cujo cadáver foi defendido, de armas na mão, para não ser raptado pela Cidade dos Arcebispos - vai, finalmente, ser beatificado. E espantado porquê? D. Frei Bartolomeu era, sem dúvida, um sábio, um santo, um zeloso pastor da Igreja, um defensor dos pobres e das viúvas, tudo o que quiserem. Mas quatro séculos já me pareciam suficientes para provar que ele não tinha carisma para suscitar devotos apaixonados, pessoas que por tudo e por nada recorrem ao seu auxílio e que o recomendem às amigas para que o invoquem nos momentos de necessidade e aflição. E, sem carisma, como se diz agora dos políticos, nada feito! S. Carlos Borromeu e S. Pio V conheceram-no pessoalmente, admiravam-no muito, aconselhavam-se com ele, chamavam-lhe santo. O papa Gregório XVI publicou o decreto da heroicidade das suas virtudes. João Paulo II, quando veio a Fátima pela primeira vez, em 1982, além dos elogios que lhe dedicou, apresentou-o aos Bispos portugueses como símbolo dos pastores que são verdadeiramente modelos. Nesse instante, ainda pensei que tinha chegado a hora do eternamente preterido. Os pastorinhos de Fátima adiantaram-se e ganharam os altares. 2. Acompanho, desde os finais dos anos 50, a sapientíssima teimosia de Frei Raúl de Almeida Rolo. Abraçou uma causa que não se confundia com o reconhecimento nos altares das provadíssimas e heróicas virtudes do famoso Arcebispo de Braga (1559-1582) e do maior protagonista do atribulado Concílio de Trento, na douta opinião do historiador alemão, Herbert Jedin. Não o movia a caça ao milagre. O reconhecimento canónico de mais um santo ou de menos um santo não pode ser a preocupação principal de um teólogo. Interessava-lhe investigar, revelar e sobretudo documentar a estatura ignorada de um corajoso reformador que baseou a sua espantosa acção num aturado labor teológico (Cf. "Theologica Scripta", 6 vol.), que frequentou a escola dos mais genuínos pastores da Igreja (Cf, "Estímulo de Pastores"), que vivia no convívio dos grandes mestres da vida espiritual (Cf. "Compêndio de Doutrina Espiritual") e cuja preocupação essencial era fazer chegar aos mais rústicos a Palavra de Deus, àqueles que nas Visitas Pastorais o recebiam com orações de fazer tremer as pedras - "Bendita seja a Santíssima Trindade, irmã de Nossa Senhora" - e que ele recebia com um sorriso, sabendo muito bem de quem era a responsabilidade da asneira e a obrigação que tinha de lhe dar remédio adequado (Cf. "Catecismo ou Doutrina Cristã e Práticas Espirituais"). A unidade existencial entre contemplação, estudo e acção apostólica que brilhava na vida do Arcebispo foi desenvolvida na experiência da Reforma Dominicana dessa época, também ela por estudar. Para Frei Raúl de Almeida Rolo, era absolutamente inaceitável que "aquela famosa trombeta" - na expressão da sonora "Vida do Arcebispo" de Frei Luís de Sousa - que tanto batalhou no último período do Concílio de Trento (1562-1563) e que tanta influência tivera em vários países - basta pensar nas traduções e no número de edições que alcançou - estivesse, no começo da preparação do Vaticano II, reduzida ao silêncio ou a algumas anedotas de duvidosa historicidade. 3. Frei Raúl de Almeida Rolo, bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, não se tornou apenas o grande especialista de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. É certo que dedicou ao seu pensamento pastoral, social e doutrinal as teses de leitorado e doutoramento, fez a edição crítica das sua Obras Completas, consagrou-lhe vários Congressos e difundiu as investigações realizadas através de inumeráveis obras e colóquios à história da Igreja no século XVI - que é urgente reunir -, encontrou entre os historiadores portugueses e estrangeiros muitas cumplicidades e alianças frutuosas em torno desta gigantesca figura da Igreja em Portugal. Antes de lhe conseguir num templo um nicho para os devotos, tentou abrir-lhe um espaço na cultura histórica portuguesa. O trabalho de investigador acompanhou o de promotor da causa de beatificação de Bartolomeu dos Mártires que foi o "o fogo, o raio e o corisco" do Concílio de Trento. Queria que se evitassem conversas pseudo-doutrinárias que não levavam a nada e apenas serviam para desviar as atenções da urgentíssima reforma da vida do papa, dos cardeais, dos bispos e dos padres. E tomando uma posição diametralmente oposta à do Papa Pio IV - acerca das prioridades a observar no Concílio - fez saber que "a Igreja e o Mundo estavam muito mais precisados da reforma do que de dogmas"... Beatificar não é calar D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Ele tem hoje algo a lembrar à hierarquia eclesiástica actual: não nos saturem com documentos carregados de dogmatismo que apenas servem para ocultar o confronto com várias reformas urgentes. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

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