EXPRESSO: Vidas

01-03-2002
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PESSOAS

Construtores

Os novos Violeros

Numa quinta de Fafe, quatro professores universitários e um estudante aprendem a construir instrumentos antigos

Texto de Valdemar Cruz

FOTOGRAFIAS: RUI DUARTE SILVA Nas Escolas Superiores de Música portuguesas não há, como na Europa Central, a tradição de organizar a construção de instrumentos antigos

Jorge Ulisses, 60 anos, tem nome de herói grego. Fala com a astúcia tranquila de quem, depois de longos anos como professor catedrático na Escola Superior de Belas Artes do Porto, aproveita agora a reforma para cultivar novas paixões. Como materializar o sonho de construir uma viola antiga. Ao longo de dez dias, oito horas por dia, participou no curso ministrado em Fafe por José Angel Espejo, «luthier» espanhol de origem colombiana.

Ulisses olha para a sua «vihuela de mano», muito popular no século XVI, vê passearem-se pelos veios da madeira as horas imensas de entrega a um trabalho artesanal e quase sussurra quando diz ser o instrumento «uma escultura, por isso há que exaltá-lo».

Terá sido o que sucedeu durante esta experiência singular vivida na Quinta de Santo António do Pombal, um hotel rural a cinco quilómetros do centro de Fafe, numa iniciativa da Academia de Música José Atalaya, integrada no Festival Raízes Ibéricas. Dos cinco participantes, apenas Ulisses tinha construído já um instrumento musical. Todos os outros - três professores de guitarra, um do Conservatório de Aveiro, dois da Escola Superior de Música de Lisboa e um estudante da Faculdade de Letras do Porto - chegaram trazendo consigo uma imensa expectativa. Embora vivessem fascinados pela ideia de um dia poderem participar num curso como este, vulgar nos países do centro da Europa, não imaginavam poder fazê-lo tão cedo em Portugal.

O maestro José Atalaya, que se transferiu há algum tempo de Lisboa para Fafe por razões pessoais, observa-os e deixa-se atropelar pelas palavras que lhe saem em torrente, quando pretende descrever o entusiasmo com que ele próprio está a viver todo aquele trabalho intensivo,. Mais tranquilo, até pelo hábito de correr mundo a dirigir iniciativas deste género, Angel Espejo convive no dia-a-dia com os desafios milimétricos colocados pelo encaixe de cada nova peça nos instrumentos em construção.

Para início de conversa não gosta do termo «luthier», porque «os ibero-americanos têm uma linguagem muito rica que permite identificar com mais rigor uma profissão cujo grémio era um dos mais importantes na Península durante a Idade Média: o Grémio dos Violeros». A designação vem da viola de gamba e é como «violero» que Angel prefere ser conhecido.

Enquanto fala, há grande azáfama no salão onde alguns bilhares foram tapados para funcionarem como improvisadas mesas de marceneiros. O ambiente é descontraído, mas percebem-se réstias de tensão à medida que se aproximam os momentos mais delicados na construção do instrumento, como a colocação do cavalete. Com precisão cirúrgica se alimenta cada gesto. O resultado final, em termos sonoros, é sempre uma incógnita. No entanto, subsiste uma busca de perfeição que a todos contamina. Angel Espejo dá particular atenção à ambiência sonora e classifica como «história», um trabalho destas características. «Há aqui uma parte tão imaterial como a música, e é uma parte que tem naturalmente de ser recriada.»

Antigamente, os músicos construíam os seus próprios instrumentos ou, o que vem dar no mesmo, quem construía, tocava. João Sebastião Bach, por exemplo, interveio de forma muito decidida na construção dos órgãos mais importantes existentes na Turíngia alemã. Ia às oficinas. Falava com os construtores. Experimentava. Sugeria mudanças. No final, os resultados tinham quase sempre a celestial dimensão das criações divinas.

João Pedro Duarte, com 37 anos, professor de guitarra na Escola Superior de Música de Lisboa, não está propriamente à espera de obter resultados similares aos de Bach, mas não quis desperdiçar a oportunidade. Até porque, como diz, «estes instrumentos são muito caros e poder ter um nestas circunstâncias é extraordinário». Nas suas aulas de reportório de guitarra tenciona utilizar a sua «vihuela de mano» para efectuar demonstrações práticas dos sons possíveis ou do reportório de uma viola do século XVI. João Pedro sublinha, de resto, que a guitarra mais antiga que se conhece é portuguesa, feita em Lisboa por Belchior Diaz, por volta de 1586.

Há, por isso, toda uma grande tradição que em Portugal tem vindo a ser perdida, para espanto de António Gonçalves, de 40 anos, também professor de guitarra na Escola Superior de Música de Lisboa. Em sua opinião, «esta é uma actividade sem qualquer problema de subsistência, pois são muitas as solicitações e os músicos portugueses acabam por ter de fazer encomendas no estrangeiro».

No âmbito deste curso, António Gonçalves foi o único a optar pela construção de uma guitarra romântica, «instrumento comumas formas muito parecidas com as da guitarra actual, apesar das enormes diferenças que apresentam». Há um problema com o reportório para guitarra romântica porque, em geral, é interpretado pelas guitarras actuais, o que faz com que quase já não se conheçam as sonoridades que os compositores pretendiam expressar. O que mais surpreende António é, no entanto, o modo como conseguiu integrar-se no ambiente de oficina. Jamais tinha tido qualquer aproximação ao trabalho com madeira e isso reflectiu-se nos resultados dos primeiros dias. «Não percebia, por exemplo, que os veios da madeira têm um sentido que exige ser respeitado, senão a madeira lasca e perde-se tudo».

De qualquer forma, a tarefa começa por ser um pouco facilitada. Seria impossível, em apenas dez dias, construir um instrumento destes a partir do zero. Por isso, Angel Espejo chega acompanhado da mulher, que tem uma participação muito activa no trabalho oficinal, e de um conjunto de materiais que fazem com que 40% do trabalho venha já preparado. Ainda assim, para qualquer um dos participantes, o que falta executar tem dimensão que dá para assustar. Pouco interessado em fazer reproduções exactas dos instrumentos antigos, José Angel opta por recriar o espírito de cada uma das violas, «respeitando os limites estéticos e sonoros da época». Para isso socorre-se de múltiplas fontes de informação, que podem ir da observação de instrumentos guardados em museus, à análise à lupa de alguns quadros de Vermeer.

Eduardo Soares, de 20 anos, com o curso do Conservatório Regional de Gaia está bem consciente da importância do saber de Angel, transmitido fielmente em cada conversa. Para ele bastava, no entanto, dar corpo ao desejo de se sentir o criador de um instrumento com o qual pretende estabelecer uma relação muito especial. Por vezes quase sentiu que não seria capaz. Mas deixou-se guiar pelo entusiasmo dos progressos milimétricos, ao fim de prolongadas horas de trabalho. Sentiu uma enorme «dificuldade em fazer o braço e o cavalete, até porque o pau santo vinha em bruto e foi necessário fazer todos aqueles arredondamentos».

Com uma paisagem idílica em fundo, estes modernos «violeros» depressa se tornaram cúmplices daquilo que, para alguns, significava viver dentro do sonho alimentado ao longo de anos. Como Carlos Abreu, de 36 anos, professor de guitarra do Conservatório de Aveiro. Apesar de exausto, admite que talvez fosse vantajoso haver mais uma semana para o curso: «Seria importante poder ter a vivência de um ritmo menos intenso, até para que se criasse alguma distância no processo construtivo».

Sempre que desenvolve cursos deste tipo, Espejo espera assegurar alguma continuidade. As escolas de Música poderiam ser um bom laboratório para experiências similares, como defende Carlos Abreu. Ou pode acontecer que as Raízes Ibéricas lançadas pelo maestro José Atalaya ganhem mais profundidade e o festival possa vir a estar em condições de prosseguir um trabalho pioneiro.

PESSOAS

Construtores

Os novos Violeros

Numa quinta de Fafe, quatro professores universitários e um estudante aprendem a construir instrumentos antigos

Texto de Valdemar Cruz

FOTOGRAFIAS: RUI DUARTE SILVA Nas Escolas Superiores de Música portuguesas não há, como na Europa Central, a tradição de organizar a construção de instrumentos antigos

Jorge Ulisses, 60 anos, tem nome de herói grego. Fala com a astúcia tranquila de quem, depois de longos anos como professor catedrático na Escola Superior de Belas Artes do Porto, aproveita agora a reforma para cultivar novas paixões. Como materializar o sonho de construir uma viola antiga. Ao longo de dez dias, oito horas por dia, participou no curso ministrado em Fafe por José Angel Espejo, «luthier» espanhol de origem colombiana.

Ulisses olha para a sua «vihuela de mano», muito popular no século XVI, vê passearem-se pelos veios da madeira as horas imensas de entrega a um trabalho artesanal e quase sussurra quando diz ser o instrumento «uma escultura, por isso há que exaltá-lo».

Terá sido o que sucedeu durante esta experiência singular vivida na Quinta de Santo António do Pombal, um hotel rural a cinco quilómetros do centro de Fafe, numa iniciativa da Academia de Música José Atalaya, integrada no Festival Raízes Ibéricas. Dos cinco participantes, apenas Ulisses tinha construído já um instrumento musical. Todos os outros - três professores de guitarra, um do Conservatório de Aveiro, dois da Escola Superior de Música de Lisboa e um estudante da Faculdade de Letras do Porto - chegaram trazendo consigo uma imensa expectativa. Embora vivessem fascinados pela ideia de um dia poderem participar num curso como este, vulgar nos países do centro da Europa, não imaginavam poder fazê-lo tão cedo em Portugal.

O maestro José Atalaya, que se transferiu há algum tempo de Lisboa para Fafe por razões pessoais, observa-os e deixa-se atropelar pelas palavras que lhe saem em torrente, quando pretende descrever o entusiasmo com que ele próprio está a viver todo aquele trabalho intensivo,. Mais tranquilo, até pelo hábito de correr mundo a dirigir iniciativas deste género, Angel Espejo convive no dia-a-dia com os desafios milimétricos colocados pelo encaixe de cada nova peça nos instrumentos em construção.

Para início de conversa não gosta do termo «luthier», porque «os ibero-americanos têm uma linguagem muito rica que permite identificar com mais rigor uma profissão cujo grémio era um dos mais importantes na Península durante a Idade Média: o Grémio dos Violeros». A designação vem da viola de gamba e é como «violero» que Angel prefere ser conhecido.

Enquanto fala, há grande azáfama no salão onde alguns bilhares foram tapados para funcionarem como improvisadas mesas de marceneiros. O ambiente é descontraído, mas percebem-se réstias de tensão à medida que se aproximam os momentos mais delicados na construção do instrumento, como a colocação do cavalete. Com precisão cirúrgica se alimenta cada gesto. O resultado final, em termos sonoros, é sempre uma incógnita. No entanto, subsiste uma busca de perfeição que a todos contamina. Angel Espejo dá particular atenção à ambiência sonora e classifica como «história», um trabalho destas características. «Há aqui uma parte tão imaterial como a música, e é uma parte que tem naturalmente de ser recriada.»

Antigamente, os músicos construíam os seus próprios instrumentos ou, o que vem dar no mesmo, quem construía, tocava. João Sebastião Bach, por exemplo, interveio de forma muito decidida na construção dos órgãos mais importantes existentes na Turíngia alemã. Ia às oficinas. Falava com os construtores. Experimentava. Sugeria mudanças. No final, os resultados tinham quase sempre a celestial dimensão das criações divinas.

João Pedro Duarte, com 37 anos, professor de guitarra na Escola Superior de Música de Lisboa, não está propriamente à espera de obter resultados similares aos de Bach, mas não quis desperdiçar a oportunidade. Até porque, como diz, «estes instrumentos são muito caros e poder ter um nestas circunstâncias é extraordinário». Nas suas aulas de reportório de guitarra tenciona utilizar a sua «vihuela de mano» para efectuar demonstrações práticas dos sons possíveis ou do reportório de uma viola do século XVI. João Pedro sublinha, de resto, que a guitarra mais antiga que se conhece é portuguesa, feita em Lisboa por Belchior Diaz, por volta de 1586.

Há, por isso, toda uma grande tradição que em Portugal tem vindo a ser perdida, para espanto de António Gonçalves, de 40 anos, também professor de guitarra na Escola Superior de Música de Lisboa. Em sua opinião, «esta é uma actividade sem qualquer problema de subsistência, pois são muitas as solicitações e os músicos portugueses acabam por ter de fazer encomendas no estrangeiro».

No âmbito deste curso, António Gonçalves foi o único a optar pela construção de uma guitarra romântica, «instrumento comumas formas muito parecidas com as da guitarra actual, apesar das enormes diferenças que apresentam». Há um problema com o reportório para guitarra romântica porque, em geral, é interpretado pelas guitarras actuais, o que faz com que quase já não se conheçam as sonoridades que os compositores pretendiam expressar. O que mais surpreende António é, no entanto, o modo como conseguiu integrar-se no ambiente de oficina. Jamais tinha tido qualquer aproximação ao trabalho com madeira e isso reflectiu-se nos resultados dos primeiros dias. «Não percebia, por exemplo, que os veios da madeira têm um sentido que exige ser respeitado, senão a madeira lasca e perde-se tudo».

De qualquer forma, a tarefa começa por ser um pouco facilitada. Seria impossível, em apenas dez dias, construir um instrumento destes a partir do zero. Por isso, Angel Espejo chega acompanhado da mulher, que tem uma participação muito activa no trabalho oficinal, e de um conjunto de materiais que fazem com que 40% do trabalho venha já preparado. Ainda assim, para qualquer um dos participantes, o que falta executar tem dimensão que dá para assustar. Pouco interessado em fazer reproduções exactas dos instrumentos antigos, José Angel opta por recriar o espírito de cada uma das violas, «respeitando os limites estéticos e sonoros da época». Para isso socorre-se de múltiplas fontes de informação, que podem ir da observação de instrumentos guardados em museus, à análise à lupa de alguns quadros de Vermeer.

Eduardo Soares, de 20 anos, com o curso do Conservatório Regional de Gaia está bem consciente da importância do saber de Angel, transmitido fielmente em cada conversa. Para ele bastava, no entanto, dar corpo ao desejo de se sentir o criador de um instrumento com o qual pretende estabelecer uma relação muito especial. Por vezes quase sentiu que não seria capaz. Mas deixou-se guiar pelo entusiasmo dos progressos milimétricos, ao fim de prolongadas horas de trabalho. Sentiu uma enorme «dificuldade em fazer o braço e o cavalete, até porque o pau santo vinha em bruto e foi necessário fazer todos aqueles arredondamentos».

Com uma paisagem idílica em fundo, estes modernos «violeros» depressa se tornaram cúmplices daquilo que, para alguns, significava viver dentro do sonho alimentado ao longo de anos. Como Carlos Abreu, de 36 anos, professor de guitarra do Conservatório de Aveiro. Apesar de exausto, admite que talvez fosse vantajoso haver mais uma semana para o curso: «Seria importante poder ter a vivência de um ritmo menos intenso, até para que se criasse alguma distância no processo construtivo».

Sempre que desenvolve cursos deste tipo, Espejo espera assegurar alguma continuidade. As escolas de Música poderiam ser um bom laboratório para experiências similares, como defende Carlos Abreu. Ou pode acontecer que as Raízes Ibéricas lançadas pelo maestro José Atalaya ganhem mais profundidade e o festival possa vir a estar em condições de prosseguir um trabalho pioneiro.

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