«Avante!» Nº 1328

03-10-2000
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A TALHE DE FOICE

Frigoríficos

a esquimós

O debate de anteontem na SIC com os quatro principais cabeças de lista às eleições europeias teve duas partes distintas – uma primeira, onde a confusão fez as vezes de discussão, e uma segunda, onde a discussão se escapuliu na confusão. Parece quase a mesma coisa, mas não é.

Na primeira parte, o tempo foi quase todo gasto a deslindar a questão que Margarida Marante entendeu impor como assunto fundamental: a de se apurar se Mário Soares era, ou não, um «virtual vencedor». Se havia o objectivo de estragar o debate logo à partida, a esperteza de Marante não podia ter escolhido melhor.

Paulo Portas, é claro, engoliu de imediato isco, anzol, carreto e cana, desatando a disparar tão freneticamente em todas as direcções, que não apenas estava surdo ao que os outros diziam como não se ouvia a si próprio. Foi assim que se enfiou numa caldeirada onde andou perto de chamar comunista a toda a gente para tentar atingir a única comunista presente (cujo partido, segundo ele, «só florescia no meio da miséria»), acabando embatocado com uma réplica precisamente de Ilda Figueiredo quando esta, para alívio de todos, o informou secamente que não estava ali para perder tempo com provocações rasteiras, mas para falar de coisas sérias. A partir daí, Portas deixou de ser um malcriado confuso para descer ao tom, mais brandamente inimputável, do confuso malcriado.

O próprio Pacheco Pereira mordeu o isco, perdendo-se em divagações - tornadas intermináveis pelas frenéticas acometidas de Portas – sobre a estafada tese de que a escolha de Soares para cabeça de lista escondia a mediocridade da lista do PS.

Foi mais uma vez Ilda Figueiredo que pôs um ponto final na confusão tão absurda como penosa, quando recordou a toda a gente o óbvio que decorre da própria legislação eleitoral: o escrutínio para o Parlamento Europeu destina-se a eleger 25 deputados portugueses e não «vencedores virtuais», com o que Mário Soares concordou banhado de gozo: durante todo aquele tempo, fora o centro das atenções sem ter de puxar um neurónio.

A segunda parte até se iniciou mais promissora que a primeira, ao permitir trazer algo de concreto para cima da mesa, como a agressão da NATO à Jugoslávia, o papel de Portugal no conflito, a subserviência da Europa aos EUA, etc. Todavia, cedo a barafunda se reinstalou na discussão, mais uma vez polarizada pela tendência de Portas em querer impingir frigoríficos a esquimós. E vá de perguntar a Mário Soares se, caso fosse primeiro-ministro, impediria Portugal de participar na agressão da NATO à Jugoslávia. É claro que com «inimigos» destes Mário Soares nem precisa de amigos, pagando a generosa «deixa» oferecida por Portas com um largo exercício de retórica pacifista, no que Pacheco Pereira se voltou a enredar ao (não saber) pedir contas a Soares sobre a sua recente proposta de criação de um imposto comunitário para a União Europeia pagar uma política de Defesa «comum, credível e autónoma dos EUA». Após se desmentir a si próprio com o à vontade do costume, negando ter proposto tal coisa, Soares espraiou-se numa deliciada exposição geo-estratégica, qual cabo-de-guerra em branda aula nos pupilos do Exército. Até que, no seu entusiasmo pela «política de defesa comum», se descaiu a dizer que «as indústrias de armamento não podem estar só nos EUA, devem estar também na Europa».

Fulminante, Ilda Figueiredo retorquiu-lhe, simplesmente: «O que o dr. Mário Soares está a defender é uma corrida aos armamentos».

Aí, o «estratega pacifista» ficou sem pregões e o peixe em cabaz, reparando demasiado tarde que, afinal, não era apenas Paulo Portas, mas também ele próprio, que caía na petulante tentação de querer impingir frigoríficos a esquimós... — Henrique Custódio

«Avante!» Nº 1328 - 13.Maio.1999

A TALHE DE FOICE

Frigoríficos

a esquimós

O debate de anteontem na SIC com os quatro principais cabeças de lista às eleições europeias teve duas partes distintas – uma primeira, onde a confusão fez as vezes de discussão, e uma segunda, onde a discussão se escapuliu na confusão. Parece quase a mesma coisa, mas não é.

Na primeira parte, o tempo foi quase todo gasto a deslindar a questão que Margarida Marante entendeu impor como assunto fundamental: a de se apurar se Mário Soares era, ou não, um «virtual vencedor». Se havia o objectivo de estragar o debate logo à partida, a esperteza de Marante não podia ter escolhido melhor.

Paulo Portas, é claro, engoliu de imediato isco, anzol, carreto e cana, desatando a disparar tão freneticamente em todas as direcções, que não apenas estava surdo ao que os outros diziam como não se ouvia a si próprio. Foi assim que se enfiou numa caldeirada onde andou perto de chamar comunista a toda a gente para tentar atingir a única comunista presente (cujo partido, segundo ele, «só florescia no meio da miséria»), acabando embatocado com uma réplica precisamente de Ilda Figueiredo quando esta, para alívio de todos, o informou secamente que não estava ali para perder tempo com provocações rasteiras, mas para falar de coisas sérias. A partir daí, Portas deixou de ser um malcriado confuso para descer ao tom, mais brandamente inimputável, do confuso malcriado.

O próprio Pacheco Pereira mordeu o isco, perdendo-se em divagações - tornadas intermináveis pelas frenéticas acometidas de Portas – sobre a estafada tese de que a escolha de Soares para cabeça de lista escondia a mediocridade da lista do PS.

Foi mais uma vez Ilda Figueiredo que pôs um ponto final na confusão tão absurda como penosa, quando recordou a toda a gente o óbvio que decorre da própria legislação eleitoral: o escrutínio para o Parlamento Europeu destina-se a eleger 25 deputados portugueses e não «vencedores virtuais», com o que Mário Soares concordou banhado de gozo: durante todo aquele tempo, fora o centro das atenções sem ter de puxar um neurónio.

A segunda parte até se iniciou mais promissora que a primeira, ao permitir trazer algo de concreto para cima da mesa, como a agressão da NATO à Jugoslávia, o papel de Portugal no conflito, a subserviência da Europa aos EUA, etc. Todavia, cedo a barafunda se reinstalou na discussão, mais uma vez polarizada pela tendência de Portas em querer impingir frigoríficos a esquimós. E vá de perguntar a Mário Soares se, caso fosse primeiro-ministro, impediria Portugal de participar na agressão da NATO à Jugoslávia. É claro que com «inimigos» destes Mário Soares nem precisa de amigos, pagando a generosa «deixa» oferecida por Portas com um largo exercício de retórica pacifista, no que Pacheco Pereira se voltou a enredar ao (não saber) pedir contas a Soares sobre a sua recente proposta de criação de um imposto comunitário para a União Europeia pagar uma política de Defesa «comum, credível e autónoma dos EUA». Após se desmentir a si próprio com o à vontade do costume, negando ter proposto tal coisa, Soares espraiou-se numa deliciada exposição geo-estratégica, qual cabo-de-guerra em branda aula nos pupilos do Exército. Até que, no seu entusiasmo pela «política de defesa comum», se descaiu a dizer que «as indústrias de armamento não podem estar só nos EUA, devem estar também na Europa».

Fulminante, Ilda Figueiredo retorquiu-lhe, simplesmente: «O que o dr. Mário Soares está a defender é uma corrida aos armamentos».

Aí, o «estratega pacifista» ficou sem pregões e o peixe em cabaz, reparando demasiado tarde que, afinal, não era apenas Paulo Portas, mas também ele próprio, que caía na petulante tentação de querer impingir frigoríficos a esquimós... — Henrique Custódio

«Avante!» Nº 1328 - 13.Maio.1999

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